Assata Shakur sobre socialismo e comunismo:
Esta passagem foi retirada do livro "Assata: Uma Autobiografia" (páginas 189-192)
"Haviam muitos grupos comunistas no campus [1]. Na época, eu não fazia ideia de que existiam tantos tipos diferentes de comunistas e socialistas, que existiam marxistas, leninistas, maoístas, trotskistas etc. Minha lavagem cerebral foi tão forte que eu pensava que todos os comunistas eram iguais. A maioria dos comunistas que conheci não faziam parte de nenhum partido, apenas se identificavam com a filosofia do comunismo. A maioria seguia linhas políticas e ideias bem diferentes e era muito difícil para eles sentarem e concordarem em alguma coisa, muito menos conspirar um “plano comunista.”
Eu fiquei surpresa em saber que havia todo tipo diferente de países capitalistas e diferentes tipos de países comunistas. Eu ouvia “bloco comunista” e “atrás da cortina de ferro” tanto na imprensa que eu naturalmente criei a impressão que esses países eram todos iguais. Apesar de serem todos socialistas, a Alemanha Oriental, Bulgária [2], Cuba e Coreia do Norte são tão diferentes quanto noite e dia. Todos eles possuem histórias diferentes, culturas diferentes e diferentes jeitos de aplicarem a teoria socialista, mesmo tendo o mesmo sistema econômico e sistemas políticos similares. Sempre me impressionou a quantidade de pessoas que podem ser enganadas e levadas a odiar pessoas que nunca fizeram nada para machucá-las. Você simplesmente menciona a palavra “comunista” e muitos desses idiotas vermelhos, brancos e azuis [3] estão prontos para matar.
Eu não era contra o comunismo, mas também não posso dizer que apoiava. Inicialmente, eu achava suspeito, como se fosse tipo uma invenção de homem branco, até que eu li trabalhos de revolucionários africanos e estudei os movimentos de libertação africanos. Os revolucionários na África entenderam que a questão da libertação africana não era só uma questão de raça, que mesmo que eles conseguissem se livrar dos colonialistas brancos, se eles próprios não se livrassem da estrutura econômica capitalista, os colonialistas brancos simplesmente seriam substituídos por neocolonialistas pretos. Não houve um movimento de libertação na África que não estivesse lutando pelo socialismo. Na verdade, não há um movimento de libertação se quer no mundo que tenha lutado pelo capitalismo.
A coisa toda se resume a uma simples questão: qualquer coisa que tenha algum tipo de valor é feito, extraído, plantado, produzido e processado pelos trabalhadores. Então, por que os trabalhadores não deveriam coletivamente possuir essa riqueza? Por que os trabalhadores não deveriam possuir e controlar essa riqueza? Capitalismo significa que os empresários ricos possuem a riqueza, enquanto que o socialismo significa que o povo que fez aquela riqueza a possui.
Eu entrei em acaloradas discussões com irmãos e irmãs que falavam que a opressão do povo preto seria apenas uma questão de raça. É por isso que você tem pretos apoiando Nixon [4] ou Reagan [5] ou outros conservadores. Pessoas pretas com dinheiro sempre tenderam a apoiar candidatos os quais eles acreditavam que iriam proteger seus interesses financeiros. Na minha opinião, não precisou de muita inteligência para perceberem que o povo preto é oprimido por causa da classe, assim como da raça, porque somos pobres e pretos. Sempre me incomodava quando alguém falava sobre uma pessoa preta subindo a escada do sucesso. Sempre que você fala sobre uma escada, você está falando sobre o topo e o fundo, uma classe superior e uma classe inferior, uma classe rica e uma classe pobre.
Se você tiver um sistema com um topo e um fundo, o povo preto sempre vai terminar na parte de baixo porque somos mais fáceis de sermos discriminados. Por isso que eu nunca consegui enxergar a luta por dentro do sistema. Tanto o partido dos democratas quanto o partido republicano são controlados por milionários. Eles estão interessados em se manter no poder, enquanto que eu estava interessada em tirar o poder deles. Eles estavam interessados em apoiar ditaduras fascistas na América do Sul e Central, enquanto que eu queria vê-las derrubadas. Eles estavam interessados em apoiar regimes fascistas e racistas na África, enquanto que eu queria vê-los derrubados. Eles estavam interessados em derrotar os Vietcongues [6] e eu estava interessada em vê-los ganhar sua libertação. Um cartaz do massacre de My Lai, mostrando mulheres e crianças amontoadas em uma pilha com seus corpos perfurados por balas, pendurado na minha parede era um lembrete diário da brutalidade que existia no mundo.
A Faculdade Comunitária de Manhattan não oferecia nenhum curso sobre a história de Porto Rico [7]. As irmãs e irmãos porto-riquenhos que sabiam o que estava acontecendo se tornaram nossos professores. Eu andei toda a minha vida com porto-riquenhos e eu nem sabia que Porto Rico era uma colônia. Eles nos falaram da longa e valente luta contra os primeiros colonizadores espanhóis e depois contra o governo dos EUA e sobre seus heróis revolucionários, os Cinco Porto-Riquenhos – Lolita Lebrón, Rafael Miranda, Andres Cordero, Irving Flores e Oscar Collazo, cada um tendo passado mais que um quarto de século atrás das grades por lutar pela independência de Porto Rico. Uma vez que você entende algo sobre a história de um povo, seus heróis, suas dificuldades e sacrifícios, é mais fácil lutar com eles, apoiar sua luta. Para muitas pessoas nesse país, as pessoas que vivem em outros lugares não têm rostos. E esse é o jeito que o governo dos EUA quer que seja. Eles pensam que enquanto as pessoas não tiverem rostos e o país não tenha forma, os amerikanos não iram protestar quando eles enviarem a marinha para destruí-los.
Eu comecei a me enxergar como socialista, mas de jeito algum eu poderia me ver integrando em nenhum do grupos socialistas com os quais tive contato. Eu adorava ouví-los, aprender com eles e debater com eles, mas de forma alguma eu me enxergava tornando-me uma membra. Primeiramente, eu não aguentava as atitudes condescendentes e paternalistas de algumas pessoas brancas desses grupos. Alguns dos membros mais antigos pensavam que porque eles estavam na luta pelo socialismo há muito tempo, eles sabiam todas as respostas para os problemas do povo preto e todos os aspectos da luta pela Libertação Preta. Eu não me identificava com a ideia de um grande pai branco na terra assim como não me identificava com um grande pai branco no céu. Eu estava disposta e pronta a aprender de tudo que eu podia com eles, mas eu com certeza não estava disposta a aceitá-los como líderes da luta pela Libertação Preta. Alguns poucos achavam que tinham o monopólio sobre Marx e agiam como se os únicos experts sobre socialismo no mundo vieram da Europa. Em muitos casos, eles rebaixavam as contribuições teóricas e práticas de revolucionários do Terceiro Mundo como Fidel Castro, Ho Chi Minh, Augustino Neto e outros líderes de movimentos por libertação do Terceiro Mundo.
Outra coisa que ia contra o que me era natural era a arrogância e o dogmatismo que eu encontrei em alguns desses grupos. Um membro de um grupo me disse que se eu realmente estava preocupada sobre a libertação do povo preto, eu deveria largar a escola e arranjar um emprego numa fábrica, que se eu queria me livrar do sistema, eu deveria trabalhar numa fábrica e organizar os trabalhadores. Quando eu perguntei por que ele não estava trabalhando numa fábrica e organizando os trabalhadores, ele me disse que estava ficando na escola para organizar os estudantes. Eu disse que eu estava tentando mobilizar os estudantes também e que eu sentia perfeitamente que os trabalhadores poderiam se organizar por eles próprios sem nenhum universitário fazer isso por eles.
Alguns desses grupos vinham com teorias abstratas e intelectuais, totalmente destacadas de aplicações práticas e juravam que tinham as respostas para os problemas do mundo. Eles atacaram os Vietnamitas por participarem nas palestras pela paz em Paris, alegando que negociando, os Vietcongues estavam se vendendo para os eua. Eu acho que eles se sentiram insultados quando eu perguntei como um grupo de garotos brancos gorduchos e fracotes tinham a audácia de pensar que podiam dizer aos Vietnamitas como eles tinham que agir.
Arrogância foi um fator predominante para manter a esquerda branca tão rachada. Eu sentia que ao invés de lutarem juntos por uma causa comum, eles gastavam tempo brigando uns com os outros sobre quem tinha a melhor teoria.
Mesmo respeitando o trabalho e posições políticas de muitos grupos da esquerda, eu sentia que era necessário para o povo Preto que se juntasse para organizar nossas próprias estruturas e nossa própria organização revolucionária. Amizade é baseada em respeito. Apesar de boa parte da esquerda branca ver seu papel enquanto organizar, educar, recrutar e direcionar revolucionários Pretos, eu não conseguia ver como alguma amizade poderia ocorrer. Eu sentia, e ainda sinto, que é preciso que revolucionários Pretos se juntem, analizem nossa história, nossa situação atual e defina nós mesmos e nossa luta. A autodeterminação Preta é um direito básico e se nós não tivermos o direito de definir nossos destinos, então quem tem? Eu acredito que para conseguir nossa libertação, nós precisamos partir da posição de poder e de unidade e que uma organização revolucionária Preta, liderada por revolucionários Pretos, é essencial. Eu acredito na união com revolucionários brancos para lutar contra um inimigo comum, mas eu estava convencida de que precisava ser na base de poder e unidade do que da fraqueza e unidade a qualquer custo."
[1] Manhattan Community College (Faculdade Comunitária de Manhattan).
[2] Tanto a Alemanha Oriental quanto a Bulgária deixaram de ser comunistas em 1990.
[3] Vermelho, branco e azul são as cores da bandeira dos Estados Unidos.
[4] Richard Nixon (1913 – 1994) foi presidente dos Estados Unidos entre 1969 e 1974.
[5] Ronald Reagan (1911 – 2004) foi presidente dos Estados Unidos entre 1981 e 1989.
[6] A Frente Nacional para Libertação Vietname, também chamada de Vietcongues, foi um exército de pessoas do Vietnã do Sul que lutou junto ao exército do Vietnã do Norte contra o governo do Vietnã do Sul que contava com a ajuda dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, de 1955 a 1975. O Vietnã do Norte venceu a guerra, sendo o Vietnã do Sul incorporado, sob governo socialista.
[7] Porto Rico ainda hoje é um território pertencente aos Estados Unidos.
Comentários
Postar um comentário
Comentários