O FIO DA NAVALHA DECOLONIAL








É um fio de navalha o conceito gênero... Pode virar prisão até mesmo quando há a intenção de lutar contra a opressão. Desde a década de 1970, Angela Davis já chamava a atenção para que as lutas por direitos não hierarquizassem as lutas contra a opressão, como acabou acontecendo nas lutas, nos EUA pós-guerra civil, por direito ao voto de mulheres brancas (apoiadas pelos democratas da época que não queriam o voto dos negros) e de homens negros (apoiados por republicanos de antanho, que não queriam o voto das mulheres). A aliança inicial entre as sufragistas brancas e os abolicionistas negros foi então rompida quando o sufrágio feminino foi adiado como “menos prioritário” do que o direito ao voto dos homens negros. Desde então, inclusive nos estudos literários nos EUA, os temas “raça” e “gênero” pareciam temas polares e para especialistas distintos, algo que foi apenas tentativamente superado a partir da década de 1990, com muitos recuos pontuais.

Alegar um lugar neutro para gênero pode criar o esvaziamento de lutas necessárias de visibilização de novos códigos sociais inclusivos de direitos e dignidade, os quais ficariam invisibilizados por hábitos de categorização hegemônicos na vida social-institucional. Então, temos o desafio de jogar com tal paradoxo constitutivo das relações de gênero para afirmar uma epistemologia de deslocamento ‘decolonialista’, ou seja, não generalizar ideias com anseio universalista, não normatizar códigos de passabilidade social para manifestações de gênero, não hierarquizar as lutas contra opressão, não se colocar num lugar de perfeição, nem almejar absolutos categóricos, porque perigam se tornar Estados fascistas.

Esses são venenos contra um ambiente de “dia-logus”, o qual deveria ser a ágora na política formada por um efetivo desejo de ponto de partida não absoluto, para que o diálogo de ideias não caia em monólogos gritados entre obtusos. Meu lugar relativo inessencial tem possibilidade de aprender, ensinar, configurar e desfazer-se de premissas que habitam minhas formas de ver e cegar(-me) na vida social. Entretanto, ultimamente, a ágora anda bem combalida por escalas moralinas domésticas de afirmação de premissas absolutas, com suas urgências cruéis e medrosas de estabelecer definições últimas para assuntos complexos da “res publica”.

Opera-se o horror toda vez que se estabelece alguma hierarquia (tácita ou não) de validação sobre identidades de gênero e raça na vida social. Muitos assuntos sequer têm existência epistemológica na constituição de políticas públicas por conta da absolutização de alguns códigos de validação social, a ponto de questões sociais sérias serem tratadas como casos de polícia, com o estado transferindo apenas para a instituição policial todo o seu papel protetivo, particularmente quando se refere a determinadas topografias sociais-raciais e certas cartografias de afeto.

Nas favelas do Rio de Janeiro, sob intervenção militar, uma porta não define um lar com direito. O treino de uma força policial feita de periféricos é para a contenção dos periféricos, para os quais a formalidade do estado custa caro, exclui ou mata porque não chegou, oitenta anos antes, com contínua política pública de inclusão social digna. Muitas pessoas se acostumaram a improvisar soluções em meio à precariedade. Com o passar das décadas, as sobrevivências na precariedade tornam-se estruturas e dinâmicas de vida, assim como, formas e lógicas de ser. Um paradoxo colonial!

Uma forma de ser colonial-periférica (de gênero, raça, cultura, etc) é estruturalmente relacional e referida à lógica social que a forma e cerca – e que lhe impõe cercos! Portanto, é falar de dentro da província moralina neoliberal e com crueldade colonialista simplificadora culpar o periférico (i.e., o colonizado) pela violência que sofre e pratica nos marcos do seu lugar no sobreviventismo colonialista. As identidades construídas como sobrevivência ou como reação à desigualdade colonial (social, racial e de gênero) não podem ser abordadas apenas por concepções moralinas domésticas de validação de pertencimento à cidadania.

A política colonial é uma polícia do medo. A sua proposta de civilização justifica o aparato de opressão que quer garantir subalternos funcionais e conformados à desigualdade que os subalterniza social, cultural e epistemicamente. O treino da polícia colonial envolve um paradoxo: Estigmatização e desumanização do alvo subalterno para justificar o estado de exceção e suspensão de direitos em nome da ação repressiva que protege direitos plenos de poucos.

Quando esses poucos acreditam que seus direitos não são feitos de violência estrutural colonialista, reagem facilmente contra a vítima subalterna dizendo “para de mimimi”, escolhendo exemplos moralinas conspurcadores contundentes, operados em paralelos retóricos, para evidenciar “recorrências” que demonstram que o subalterno merece o tratamento que tem, como se alguém tivesse de ser “inocente” ou moralmente puro – sabe-se lá como – para ter passabilidade social de vítima das relações sociais colonialistas.

O “mimimi vitimista” é produto da própria lógica colonial que deixa esses poucos confortavelmente num estado moral preventivo de medo acusatório. Por meio do alvo e do modo da ação repressiva, o colonialismo hierarquiza quem é ou não cidadão válido. Portanto, cria dialeticamente vítimas subalternas da cidadania válida. Tal código de validação social pode formar políticas de estado que redundam, por exemplo, em intervenção armada em áreas pobres e negras das grandes cidades, tal como as “guerras justas” de escravização do passado precisavam convencer os conselheiros do rei em Portugal que os índios eram bárbaros bravios. Desumanizar para dominar – e, se sua insistência em se revoltar atrapalhar, exterminar! Além de físico, o extermínio pode ser cultural e/ou epistêmico, como demonstram os documentários “Nosso Sagrado” (2017, https://www.facebook.com/nossosagradofilme/) e “Nossos Mortos têm Voz” (2016: https://www.facebook.com/NossosMortosTemVoz/), de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa.

Atualmente, com mais inclusão de agendas críticas sobre repressão a periféricos, algumas epistemologias ‘trans decolonial’ – como aquelas nas experiências e vozes do livro "GÊNERO EXPANDIDO: PERFORMANCES E CONTRASSEXUALIDADES"(2018) – lembram-nos dos vários deslocamentos referenciais que precisamos exercitar para conceber matérias públicas, porque isso interfere no que se faz, no que nunca se fez ou no que se fez descontinuadamente e, portanto, com precariedade de resultados em políticas públicas de expansão de cidadania. A cidadania é bem pouca e para poucos quando o Estado se reduz a ações policiais de contenção de subalternos e sua invisibilização social, cultural e epistêmica.

A assunção do transitório nas epistemologias ‘trans decolonial’ resiste a absolutos, assumindo a processualidade (ensaísta e inacabada) do próprio discurso de poder e dos meios de luta; enfrenta erros e acertos, desistindo de categorias e formas de percepções que evidenciam o seu potencial de exclusão subalternizante; exercita a abertura de juízo e compreensão, porque entende que ninguém está no final da evolução para se colocar como ponto arquimediano de certezas normativas absolutas. E tem um compromisso fundamental com a igualdade (não com a uniformidade forçada) de acesso a recursos materiais e imateriais na vida social.

Muitas matérias de direitos ficam invisibilizadas por uma conduta institucional cisgênere, binária, machista, patriarcal e racista que se toma como universal sem perceber, simplificando possibilidades de ser/desser toda vez que se normatizam passabilidades sociais para reconhecer alguém como mulher, homem, trans, negro, índio, etc. Enfim, os gatilhos colonialistas precisam ser desarmados sem almejar campos neutros ou universais para os enunciados, caso contrário, cai por terra o próprio processo crítico de vislumbrar aprendizagens dialógicas com diversidades inessenciais.

Trata-se de um processo de enfrentamento e compreensão estrutural das questões sociais, culturais e políticas que configuram dialeticamente pessoas periféricas e relações subalternas. Falo em relações subalternas para chamar a atenção à constituição dialética de dois sujeitos estruturais/estruturantes: O sobreviventismo do periférico subalternizado e o paradoxo do enriquecimento que o cria e quer contê-lo, seja com aparato policial, seja com essencializações identitárias e fixismos topográficos, muitas vezes esvaziando ou discriminando a percepção das questões sociais e violências estruturais formativas das suas expressões culturais e identitárias.

Que fique claro, aqui, que penso as “expressões subalternas” como algo que se refere à relação social formativa de sujeitos sociais em situações estruturais marcadas pelo colonialismo do corpo, subjetividades, identidades e capacidades e, portanto, não se refere a julgamento de gosto centrado em hierarquias normativas de valor. Falar em “expressões subalternas” sem apagar as questões sociais que as formam significa permanecer aberta a aprendizados com/por diversidades inessenciais que favoreçam o aperfeiçoamento sociopolítico da cidadania em contextos de lutas culturais e políticas decoloniais. Eis o nosso grande desafio.

Contudo, as pressas de afirmar premissas que se absolutizam em ambientes políticos polarizados, os argumentos compensativos sobreviventistas na pragmática política, os credos compensativos perante precarizações existenciais e medos, os clichês políticos que esvaziam a densidade da crítica decolonial, a mercantilização do corpo, da dor e dos afetos, a linguagem de melodrama para assuntos públicos predominando sobre a necessária politização das dores das vítimas coloniais, assim como, as pragmáticas teleológicas fundamentalistas que prometem seguranças epistêmicas absolutas (com consequências, por vezes, exterministas quando se tornam matéria de Estado), etc, mantêm-nos no mesmo jogo cego de horrores que não cria uma nova cultura política que supere dispositivos colonialistas de Estado – e aqueles dispositivos colonialistas que nós mesmas pulverizamos nos olhos miúdos umas das outras toda vez que é desafiada a zona de conforto (que nem percebíamos ter) no interior da ordem colonial.


Não há lugar puro e último para a fala e a prática de lutas por direitos que emergem como reação decolonial, mas é preciso que se fale, se reaja, se teste e se dialogue, sem polarizações obtusas e verdades últimas, sobre nossas imperfeições formativas e hábitos referenciais configurados por lógicas coloniais, para que os fascistas não produzam crias moralinas que nos calem. É fácil cair em seu moralismo e no seu senso melodramático de vida política – ambos desqualificam e despolitizam a dor efetiva das vítimas. Só fascistas se creditam como os últimos puros no mundo compensativo feito de medos sobreviventistas e de violências que (n)os estruturam.
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