Por Katarina Peixoto: Em um regime legal, pode haver punição sem crime? Por que esta pergunta não faz sentido?


Há algumas semanas, em um dos jornais mais lidos do país, um blog lançou uma questão a que alguns professores de filosofia responderam. 
A questão é esta: “Numa democracia real, um juiz ou um tribunal teria legitimidade para condenar quem foi absolvido pela maioria dos cidadãos?”
A resposta, que deveria ser tão trivial quanto a pergunta, não é por isso relevante. Mas enfrentar a curiosidade que pode ter movido esta pergunta é relevante e diz respeito a todas e a cada uma de nós.
Em primeiro lugar, porque, em que pese seja intuitivo respeitar o fato de que Luís Inácio Lula da Silva tem a preferência eleitoral da imensa maioria dos brasileiros, inclusive após ter sido encarcerado, no início de abril, em um dos desfechos do atual processo político em curso, há uma incompreensão dessa escolha, na qual a maioria do povo brasileiro insiste.
Pode-se dizer que os cidadãos apoiam o candidato Luís Inácio porque ele é inocente, ou que apoiam a sua prisão porque o julgam culpado? É de fato essa a questão que está posta?
Em segundo lugar, porque este descompasso perceptivo e voluntarioso contém uma explicação possível para a destruição em curso no país. Há muitos aspectos desta destruição, mas há um que atinge a todos e que foi documentado ontem no jornal inglês The Guardian, que é o espantoso e crescente número de homicídios.

O Brasil é o país que mais mata, no continente conhecido pelos altos índices de homicídio. Este cenário devastador, como registrou o respeitoso jornal, não foi traçado nos últimos meses, está claro. A situação, no entanto, piorou.Um olhar atento e informado sobre os últimos anos, entretanto, não pode deixar de reconhecer, senão uma relação de causalidade (que seria um tanto temerária e correria o risco de se incorrer em ideologia, ao utilizá-la), uma correlação, entre o avanço da desestabilização política, que passou a dispor de métodos violentos, contra a legalidade, e o quadro de violência crescente na sociedade, entre os setores mais desprotegidos pelo estado e pelo direito. 

Essa correlação é, a propósito, diagnosticada pelos estudiosos do processo penal e dos direitos humanos, como uma característica de um processo de produção de desigualdade e proteção aos criminosos que comandam o arbítrio. O Juiz Eugênio Raul Zaffaroni, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, tem um diagnóstico e uma experiência que podem esclarecer um pouco os descompassos perceptivos e voluntariosos em que estamos.

Zaffaroni, em foto de Joana Berwanger, para o Sul21
Assim, à questão “pode um juiz punir um líder popular?” a resposta única e admissível é: é claro. Líderes políticos, populares ou bancários, em uma república, sob uma constituição, são cidadãos. Cidadãos são iguais perante a lei, no Brasil — em tese -, portanto, podem e, em caso de mal feito, devem ser julgados e punidos. A pergunta feita no jornal da família Marinho parece querer se destinar a outra questão, a saber, se a prisão de Lula é defensável, racionalmente. A resposta é: não. Por algumas questões materiais e por outras questões formais. Dentre as questões materiais, a mais elementar a ser anotada é esta: não houve crime. Porque, em primeiro lugar e antes de mais, não há, no direito positivo brasileiro, portanto, na lei, o conceito de “propriedade atribuída”, assim como não pode um juiz julgar para além do que a demanda do parquet requer, ao tempo em que não se pode, ao longo do processo, denunciar e condenar sem o oferecimento, a demonstração e o reconhecimento de prova. A filosofia se alimenta e deve se alimentar de questões elementares, porque a verdade, a moralidade, a racionalidade e outras expressões da mobília filosófica são e devem ser tão difíceis como simples. Vamos então nos ater à questão elementar: se não houve crime, pode haver punição? Não. E nem precisa de filosofia para isso, ou não deveria, não é mesmo?

Como se pode afirmar que não houve crime? No direito penal e no processual brasileiros, o crime não é uma questão retórica, mas prática e muito concreta. E sua determinação depende da previsão legal que tipifica uma conduta delituosa a ser provada por um processo legal, que limita o arbítrio persecutório por parte dos agentes legais responsáveis por isso. Essas questões processuais podem ser chamadas de quesitos formais, os instrumentos legais que interditam o arbítrio do estado sobre cidadãos, dada a igualdade destes perante a lei. Pois bem, estas questões formais dão a ver o que existe e o que é inexistente, em uma determinada conduta. É claro que tomar suco de laranja, por exemplo, não é crime, e que a acusação de que alguém tomou um suco de laranja não requer a instauração de um processo penal (crimes impossíveis não são, por óbvio, passíveis de investigação e punição). Mas nem sempre as acusações são absurdas. É possível que se trate da acusação da aquisição de um imóvel com dinheiro sujo, oriundo do crime (ou da lavagem de dinheiro em paraísos fiscais). Neste caso, será preciso, para determinar que houve o crime, que haja um nexo causal entre a origem do dinheiro e a aquisição do imóvel (a vantagem indevida). E, sobretudo, segundo a lei, esse processo deve garantir a quem é acusado o direito ao gozo irrestrito de todas as garantias e princípios fundamentais, antes, durante e após a condenação, caso esta venha a acontecer, legalmente.


Teori Zavascki e Sério Moro, montagem de autoria da Revista Veja
Pois bem, pode-se dizer que esses requisitos foram e são respeitados pelo juiz de piso, responsável pela Operação LavaJato? Não. Aliás, saber disso é uma questão de informação, não de formação em direito ou em filosofia. Em 22 de março de 2016, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, anulou um ato criminoso cometido pelo juiz de piso, como se pode ler aqui. Não é apenas a inconstitucionalidade, por incompetência, o que contaminou o delito. Vale dizer que, segundo o dispositivo legal que regula a interceptação telefônica, a Lei 9296, de 24 de julho de 1996, que regulamenta o inciso XII, parte final do artigo quinto da Constituição Federal (o artigo que dispõe sobre as garantias individuais e direitos fundamentais), em seu artigo 10: “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados por lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa”. Será que, diante dessas violações, de natureza constitucional e penal, pode-se ainda encontrar alguma fumaça de bom direito que possa justificar racionalmente a legitimidade da prisão de algum cidadão brasileiro?

Também é o caso lembrar que aquilo a que os servidores públicos responsáveis pela Lava Jato chamam de prova, no caso desta perseguição processual, é, pela lei, considerado como meio de prova, e não prova. Delações ou colaborações premiadas são meio, instrumento para a produção de prova, e não a prova. No artigo terceiro da Lei 12850 de 02 de agosto de 2013, pode-se ler: “Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção de prova: inciso I: colaboração premiada”. Meios de provas não são provas. Nem no direito, nem na filosofia. Esta não é uma distinção à toa, porque, no direito penal e no processo penal, o que está em jogo é a vida e a integridade da vida humana, no mais das vezes. Desprezar este aspecto é desprezar requisitos morais elementares de uma sociedade entre cidadãos presumivelmente iguais perante a lei. Não há prova, tanto que, na sentença cometida pelo juiz de piso e reiterada pelo segundo piso, foi requerida a invenção de um novo conceito de propriedade, injurisprudenciável: “a propriedade privada atribuída”, quer dizer, sem registro em cartório de registro de imóveis. É notável que o movimento dos trabalhadores rurais sem terra e o movimento dos trabalhadores sem teto ainda não tenham feito uso dessa novidade, a fim de reivindicarem a propriedade privada.

Esta ironia só tem cabimento porque é preciso um grau elevado de cinismo para se julgar na prerrogativa de inventar conceitos de direito material no curso de processos. Nem o Common Law admite isso. Não é o processo que faz o crime, nem a propriedade. A lei o faz. Não há, portanto, crime. Agora, há nexo causal que aponte para algum crime? Como sabê-lo, se não há provas e se as afirmações do delator não sobrevivem a fotografias do apartamento, que não guardam a menor relação com o divulgado a respeito de custos de uma suposta reforma, em apartamento que jamais, repito, jamais foi de quem está preso por tê-lo adquirido?

Que fique claro: quem comete crime deve responder por isso. O que se passa é que, assim como não há crime sem tipificação, não pode haver punição. Não inventaram, ainda, nem mesmo em expedientes cínicos como os que temos visto, para assombro de quem leva informação e legalidade a sério, o conceito de punição sem crime. Punir sem crime não é, portanto, punir, mas incorrer em crime. Não parece portanto sem cabimento refazer a questão inicialmente feita. Afinal, quem é o criminoso, nessa história? O juiz de piso cometeu delito, em flagrante, em cadeia nacional, e foi assim recepcionado, quer dizer, autorizado a seguir delinquindo, mediante decisão exuberante da corte de segundo piso, que inventou uma noção de “exceção jurídica” para autorizar o arbítrio da operação. Crime cometido e autorizado a ser cometido, visto que ele segue solto e em pleno gozo de suas funções. Um juiz de piso atenta contra a segurança nacional, comete crime passível de cárcere e multa, e a corte constitucional do país emite uma repreensão que se seguiu à anulação das gravações que levaram as classes crentes no Jornal Nacional ao delírio persecutório e panelar, recusando qualquer nível de explicação, justificação e fundamentação racional. A pergunta que cabe ser feita, portanto, é esta: por que o juiz de piso está solto?

Há um outro tipo de resposta possível, feita à questão presente em O Globo: uma que nos leve a considerar tal coisa como direitos individuais, princípios fundamentais e grande elenco de prerrogativas aniquiladas por meio da operação espetacular em curso. É nota característica dos processos penais sob ordens constitucionais modernas a limitação do poder estatal de opressão e violência imposta pelos direitos fundamentais. Entre tais direitos estão, na nossa constituição, que ainda é o instrumento legal positivo de que dispomos: a presunção de inocência, o respeito aos graus de jurisdição para a condenação, o direito à plena defesa, a transparência do juízo, juízo imparcial, a igualdade perante a lei, o devido processo legal, a liberdade de expressão, a liberdade de ir e vir. O cidadão Luíz Inácio Lula da Silva tem, evidentemente, várias dessas prerrogativas violadas a olhos vistos, e não à toa teve suas denúncias acolhidas pela ONU. Não há informações, salvo melhor juízo, de que o Sistema ONU seja um órgão partidário, totalitário, comunista e que tenha sido delatado por algum empreiteiro liberado pela LavaJato após denunciar os alvos da operação.

Pode-se dizer que Lula, assim que o Brasil voltar a ter um governo legítimo, será indultado. Um preceito kantiano, que mede a moralidade de nossas ações pelo seu caráter universalizável, recomendaria a quem considera irrelevante o enjaulamento arbitrário e criminoso de adversários políticos, que se dispusesse, em caso de uma ditadura com a qual discorde, a ficar enjaulado. Não há notícias de que o cidadão Luís Inácio seja kantiano, nem, tampouco, de que esteja satisfeito e resignado com a bestialidade a que foi submetido, em um dos processos cuja sordidez antijurídica só é superada pela covardia de quem tem medo da democracia e dos pobres deste país brutal, de assassinatos estúpidos e de violência crescente. Não há simetria nem sistema de pesos e contrapesos onde há poderes sem limites e onde há agentes sem accountability.


Esta segunda resposta pode ser encontrada aqui , como eu tentei dar, também buscando levar a sério a sentença cometida por um outro elemento, contra vários militantes. Mas eu não vou nem bater boca com exímios professores, nem, muito menos, publicar no Diário Oficial do golpe de estado em curso.

Não há mundo possível, e com isto concluo, em que sejam justificáveis racionalmente prisões políticas. Prisões políticas são requeridas por processos injustos. Em que pese a aparente complexidade espetacular que transformou um juiz partidário em herói nacional dos vingadores contra a chegada dos pobres ao mundo dos direitos e das oportunidades, há aspectos intuitivos e epistêmicos que são inescapáveis a quem se dispõe a reconhecer a cidadania. Lula representa e se fez representar aqueles e por aqueles que, hoje, seguem percebendo (e eventualmente entendendo) o que é a perseguição policial, a injustiça judicial e o ódio de classe. Em um país que, como observa Zaffaroni, aproximadamente 20 milhões de pessoas estão familiarizadas com o processo penal e em que o crime e o processo penal se tornaram os modos únicos de relação do estado com os desvalidos, a injustiça é intuitiva.

Lula não é um preso político porque é popular; Lula é um preso político porque ser popular, sob uma ordem ilegal e autoritária, tornou-se criminoso, em um país onde a legitimidade, a legalidade e a constitucionalidade foram solapadas por poderes assimétricos e sem controle. Covardes raramente perdem a vergonha, que é o que os protege no seu delírio de impunidade. Isso não deveria ser impedimento para tomarem um pouco mais de vergonha e disputarem o poder segundo regras universais, e não dando golpes.

Foto de multidão, escondida pela cortina de ferro familiar brasileira, em defesa da liberdade de Lula, na Lapa, Rio de Janeiro, no dia 28 de julho de 2018, de autoria de Ricardo Stuckert.

E aqui, dois dos maiores artistas, compositores, poetas e músicos brasileiros, que participaram e participam, enquanto for possível expressar essa participação, da defesa da liberdade e da justiça, a Lula: https://www.youtube.com/watch?v=IG9ZUYQqTyU

Fonte: Medium





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