O candidato oculto às eleições de outubro
No espaço de apenas quatro meses, o Brasil recebeu visitas oficiais de três elevadas autoridades do governo norte-americano. A movimentação intensa na ponte aérea Washington-Brasília, inaugurada por Temer e por um Itamaraty em mãos do PSDB, se dá às vésperas do início da campanha eleitoral. E não é por acaso.
Ilustração: Tainan Rocha |
No fim de maio, chegou a Brasília o subsecretário de Estado, John Sullivan. Na pasta, ele trazia os papéis para formalizar a criação de um foro reunindo os governos de Brasil e Estados Unidos. O objetivo declarado foi manter e ampliar a cooperação entre órgãos e agências de segurança dos dois países. O texto formal não veio acompanhado de um glossário, mas por “cooperação” entenda-se os “atos pelos quais funcionários do Estado brasileiro se prestam a trabalhar sob a direção e influência dos interesses norte-americanos”.
Para usar outra palavra cujo real significado escapa ao uso comum, os EUA tem atuado em “colaboração” com os órgãos policiais e o Ministério Público do Brasil. Trata-se de uma atuação que claramente integra uma estratégia mais ampla de defesa dos interesses comerciais norte-americanos, pois está voltada a enfraquecer e mesmo destruir concorrentes desses interesses. Não foi o amor à honestidade que orientou a espionagem da Petrobrás, para citar apenas um exemplo. E, até agora, não se tem notícia de agentes do Estado brasileiro oferecendo matéria para que empresas norte-americanas sejam processadas e punidas em seu país.
O ex-Procurador Geral da República (do Brasil) Rodrigo Janot, já disse a quem quisesse ouvir, em evento do conservador “Atlantic Council”, em Washington (não em Brasília), que houve “cooperação” entre os EUA e a Lava Jato, visando também atingir o presidente Lula. Nesse mesmo evento, Kenneth Blanco, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, enalteceu a condenação de Lula. Também deixou clara, em sua fala, que o modus operandi utilizado desobedeceu os tratados que instruem a cooperação internacional, já que o Ministério da Justiça, que deveria centralizar todo o processo desde o início, foi ignorado.
Sullivan deixou o Brasil satisfeito com o respaldo do governo Temer a esse Foro Permanente de Segurança Brasil-Estados Unidos, cuja agenda não estava restrita apenas à “cooperação”: comércio, defesa e, especialmente, um acordo no âmbito da tecnologia espacial também viriam no pacote. Quando propõe ampliar a cooperação espacial, os EUA querem, na verdade, dizer que tem interesse em estabelecer uma base sua em Alcântara, no Maranhão, onde o Brasil mantém sua estação de lançamento de foguetes.
A base aeroespacial de Alcântara foi estabelecida em 1983 e é cobiçada por sua privilegiada posição geográfica: a proximidade com a linha do Equador permite que seja melhor aproveitado o movimento de rotação da Terra, o que possibilita enorme economia de combustível para o lançamento de foguetes. Mas isso não atrai os norte-americanos tanto quanto a possibilidade de instalar forças próprias em território brasileiro. Um acordo de cessão da base para uso pelos EUA já foi tentado e barrado no Congresso Nacional mais de uma vez, para desalento da histórica posição do PSDB, favorável à entrega da base.
No fim de junho, foi a vez da visita do vice-presidente Mike Pence. Ele desembarcou em Brasília, onde se sentiu no direito de cobrar uma atuação ativa contra o governo venezuelano. Ora, o governo instalado no Brasil pelo golpe de 2016 tem executado com rigor as orientações de Washington: atacou sem meias palavras o governo da Venezuela, agiu para excluir esse país do Mercosul e ainda esvaziou a Unasul, um obstáculo à tradicional hegemonia hemisférica dos EUA.
Não obstante, qual um chefe irritado, Pence cobrou mais: quer que o Brasil faça o serviço sujo, agindo como policial da ordem imperial. O vice-presidente ainda visitou Manaus para fazer fotos ao lado de venezuelanos que deixaram seu país. Sobre as mais de cinquenta crianças brasileiras separadas de suas famílias pelo Estado norte-americano, poucas palavras, quase nenhuma. Os temas das reuniões privadas não foram divulgados, mas certamente a questão de Alcântara continuava na pauta.
Por fim, no último dia 13, chegou ao Brasil o Secretário de Defesa dos EUA, Jim Mattis, um ex-comandante dos fuzileiros navais e responsável pela atuação militar dos EUA no Oriente Médio , na Ásia e na África, que Donald Trump levou para o Pentágono.
Mattis reuniu-se com o chanceler Aloysio Nunes, o mesmo que, ainda senador, viajou aos EUA, com agenda de encontros mal esclarecida, um dia depois de consumado o impedimento da presidenta Dilma Roussef. O chefe do pentágono também se reuniu com o Ministro da Defesa, o general Silva e Luna. Com ambos, reforçou o anseio norte-americano de ver o Brasil ainda mais engajado na desestabilização da Venezuela.
Além disso, voltou também a insistir na questão da cessão da base de Alcântara. Dessa vez, o pronunciamento do governo brasileiro, pela boca de Silva e Luna, foi explícito e preocupante: o Brasil aceita conversar sobre o assunto e aguarda até o fim de 2018 por uma proposta concreta dos EUA. Ou seja, há pressa para atender os interesses norte-americanos, já que é possível a vitória de forças populares e nacionalistas nas eleições de outubro.
Em conferência na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, Mattis ainda aproveitou para defender a criação de uma nova “arma” na máquina militar norte-americana, exclusivamente voltada para o espaço, um projeto pelo qual Trump se bate desde o início deste ano. É de se supor que a base de Alcântara teria seu papel na consolidação desse projeto de garantir aos EUA a hegemonia espacial, contra a China e a Rússia.
Uma das interpretações diante dessa constante presença do primeiro escalão do Washington entre nós é justamente a necessidade de se contrapor à presença chinesa na América Latina. De fato, ela existe e tem crescido cada vez mais em volume de comércio e investimentos. Hoje, a China é o principal parceiro comercial do Brasil (como também é a principal origem das importações dos EUA). É evidente que Washington não pretende ceder a pressões alheias em uma região que considera parte de sua zona de influência. Para manter essa ordem, patrocinaram a onda conservadora recente (e as passadas). Para mantê-la, irão também enfrentar a China.
Mas não se trata apenas disso. Mais que barrar qualquer desafiante de outro continente, os EUA querem conter os próprios brasileiros e uma política autônoma. A eles não interessa uma Alcântara com soberania brasileira porque não interessa um programa espacial brasileiro. Ou melhor, porque não lhes interessa um Brasil de fato soberano. É por isso, e não por um desejo de cooperação (sem aspas) que os homens de Washington vêm tanto pra cá. É por isso que eles também têm suas opções para as eleições que se aproximam.
O que se vê a partir dessas três visitas é a apresentação de um verdadeiro programa: desarticulação da economia nacional, impedimento a um novo projeto de desenvolvimento, ataque à integração regional e atuação para impedir a candidatura de Lula à presidência. Esse programa tem representantes no país e estará nas urnas em outubro.
Os dois primeiros debates com os candidatos à presidência foram marcados por uma ausência e um candidato oculto. A ausência, gritante, foi a da democracia, já que Lula foi arbitrariamente impedido de participar e exercer seus direitos políticos, contrariando inclusive decisão do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Já o candidato oculto, o interesse norte-americano, esteve ali devidamente representado por Alckmin, Bolsonaro e outros.
Nas eleições se aproximam, o Brasil terá diante de si a escolha entre o projeto nacional e popular e esse outro programa, representado por vários “procuradores” que, mesmo falando português e usando o verde-amarelo, expressam a entrega da soberania nacional.
* Advogado, bacharel em História e doutor em Integração da América Latina pelo PROLAM (Program de pós-graduação em Integração da América Latina) da Universidade de São Paulo (USP).
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