Função expressivista e responsabilidade coletiva: o direito entre répteis e homens, segundo Joel Feinberg




Por Katarina Peixoto [*]

O criminoso deve ser punido pela única razão de que cometeu um crime. Isso é o que diz Kant, na Doutrina do Direito (i). O entendimento segundo o qual a tipificação é instituída pela lei está presente nas teorias da pena desde antes de Kant, e se pode encontrar suas expressões tanto no Antigo Testamento como em Paulo. Trata-se de uma conexão lógica e intuitiva um tanto trivial que pode conter, no entanto, uma série de problemas práticos. Os aspectos lógico e intuitivo não são suficientes, embora sejam necessários, em questões de justiça. Voltar a atenção para essas questões pode desvelar um quadro surpreendente, em que essa conexão é mais ou menos enfraquecida e em que seus pressupostos deslocam-se, de acordo com o contexto do direito.

Dois desses pressupostos são: a pessoa de direito que comete o crime e a autoridade que julga (e também a que aplica a pena, que nem sempre é a mesma que julga). Esses aspectos são elementares e condicionam a vigência dessa conexão e também a sua percepção pela comunidade de regras em que esse tipo de preceito é positivado na lei penal. A personalidade de direito supõe um sujeito de direitos e as autoridades judicial e autoridade administrativa ou política supõem um processo de legitimação sem o qual a punição é pura atrocidade. Por que punimos determinadas práticas, afinal? O que a punição disciplina e por que é preciso disciplinar a punição? Como tentarei deixar claro a seguir, não há resposta simples que esclareça a conexão, interna e necessária, entre crime e castigo.

Dois exemplos permitem lançar luz sobre dificuldades que essa relação lógica e interna pode acarretar. Há poucos dias moradores de uma região da Indonésia massacraram 292 crocodilos (ii), que estavam em uma área para eles reservada. O massacre foi precedido por um ataque: um crocodilo matou um morador do vilarejo que invadiu a área dos crocodilos para pegar capim a fim de alimentar suas vacas. Os moradores, abalados pela morte de seu vizinho, dirigiram-se à delegacia de polícia para solicitar proteção contra aqueles animais. Diante da falta de ações por parte da polícia local, os moradores, enfurecidos, pegaram facões e pedras e pás e mataram 292 animais. Quase todos os que estavam nessa área foram mortos. Não parece razoável afirmar que esses moradores acreditassem que os crocodilos eram assassinos que mereciam ser julgados e mortos. Eles mataram os animais para se sentirem seguros, na sua região. A raiva que parece requerida para perpetrar um massacre, no entanto, expressa um sentimento coletivo de autopreservação que reconhece, nos crocodilos, uma ameaça e, nas autoridades locais, a ausência de representação de seus interesses. A imagem bestial dos animais massacrados não deve nos confundir quanto ao fato de que nem os moradores dessa região culparam os crocodilos, nem os animais foram assim tomados, como muitos, em tribunais medievais, réus.

Os crocodilos são um bem jurídico cujo massacre deva ser punido? É possível que sim, e que a existência dos crocodilos preencha requisitos para a exigibilidade de sua tutela jurídica pelo sistema constitucional e civil da Indonésia. O que salta aos olhos nesse peculiar ato de justiçamento é que 1) não há como negar o aspecto de justiçamento (quer dizer, não há como negar a presença da conexão entre crime e castigo) e 2) não há um requisito fundamental da justiça penal, que é a transitoriedade entre agente e paciente do crime. Não há como negar, na fúria e no seu resultado (o massacre de 292 crocodilos), que há uma expressão, uma espécie de comunicação simbólica, gestual, de uma ferida que se distribuiu pela comunidade, e que deve ser devolvida para quem a causou. No entanto, como não há um homem assassino e como não há um réu ou mais de um réu possível, dado que estamos diante de répteis, essa retribuição soa absurda. Ela prescinde dos marcos jurídicos e denega a existência e a legitimidade de quem autoriza as regras de direito. Os moradores mataram os animais que, nas suas cabeças e por conta de um acidente, ameaçavam-lhes. Diante da brutalidade e da extensão das mortes, no entanto, é difícil não levar a sério o elemento expressivo do gesto, a ira e a raiva, em relação à experiência da perda de seu vizinho, por um lado, e à inação das autoridades, em responderem à altura das demandas da comunidade. O massacre dos animais foi um gesto para a comunidade, frente a si mesma e frente às autoridades que deveriam representá-la.

Um dos elementos mais desconcertantes e enigmáticos desse caso é o lugar que a culpa e a culpabilidade desempenham aí. Em primeiro lugar, podemos afirmar que houve um crime (deixando em suspenso o aspecto ambiental, para fins de argumentação) de homicídio? Não. Homicídio é o assassinato de um homem por outro. Em segundo lugar, há culpa nas autoridades ou nos moradores, pela morte do morador? É possível que haja, e um devido processo legal deve apurá-lo, mas a culpa, em qualquer caso, não é dos crocodilos, nem mesmo daquele que de fato matou o morador do vilarejo. A conexão entre crime e castigo parece simplesmente ausente desse episódio, que contém um cadáver humano e quase 300 de animais, em um encadeamento intencional e vingativo, ao mesmo tempo. Este é o aspecto mais relevante do exemplo.

O segundo caso que gostaria de registrar é uma hipótese kantiana, também da Doutrina do Direito, que comporta a possibilidade de um massacre, desta feita, não de crocodilos, mas de seres humanos. Segundo Kant,

“…mesmo que a sociedade civil se dissolvesse com o consentimento de todos os seus membros (se, por exemplo, um povo que habitasse uma ilha decidisse se separar e dispersar no mundo inteiro), o último assassino que estivesse na prisão deveria antes ser executado, a fim de que cada um experimente o valor de seus atos, e que o sangue vertido não recaia sobre o povo que não teria querido o castigo, pois assim teria sido considerado cúmplice dessa violação da justiça pública” (iii).

Todos os assassinos condenados devem ser mortos antes que se possa tomar conhecimento de que, na sociedade que os condenou, havia cúmplices do crime de assassinato. Em que pese a relação entre pacientes e agentes esteja bem estabelecida na hipótese kantiana, de maneira que os assassinos já foram condenados e não são animais inocentes em seu local natural, reservado, o elemento expressivo lastreia a justificação do gesto punitivo como devolução comunicada de um dano sofrido. Há muito o que se dizer e pesquisar sobre motivações e estatuto biológico, evolutivo e antropológico desse expressivismo, em ambos os exemplos.

Do ponto de vista da filosofia penal, sobressai reclamando atenção a constatação da sua presença, que configura aquilo que Joel Feinberg chamou de “A Função expressivista da punição”, no artigo seminal de 1965 (iv). A punição envolve mais do que uma mera retribuição de um dano, de maneira que não pode ser confundida com uma multa de estacionamento, nem com uma cobrança de tributos devidos porque sonegados. O que torna a punição “teoricamente enigmática e moralmente inquietante”, nas palavras de Feinberg, é que se trata de um

“dispositivo convencional para a expressão de atitudes de ressentimento e indignação, e de juízos de desaprovação e reprovação, seja da parte da própria autoridade punitiva, ou daqueles ’em cujo nome’ a punição é aplicada. Em uma frase, a punição tem um significado simbólico majoritariamente ausente nos outros tipos de penalidades. (…) Trata-se também de uma maneira simbólica de devolver ao criminoso, de expressar um tipo de ressentimento vindicado” (v) .

Esse dispositivo envolve elementos enigmáticos e moralmente inquietantes porque punir não é apenas, em que pese sempre seja, uma expressão simbólica de devolução de um dano injusto. A punição requer um grau de equiparação que permite conectar crime e castigo não apenas causal, mas normativamente. E essa conexão, associada ao caráter expressivo descrito nos dois exemplos acima, precisa ser levada a sério, porque a tese de que as comunidades de alguma maneira detêm algum direito à vingança é não apenas bestial, como temerária. Reconhecer o expressivismo não é, em primeiro lugar, defendê-lo e menos ainda reconhecer o direito à vingança. Desde a segunda metade do Século XVIII, com Cesare Beccaria, o processo penal e a imposição de sofrimentos físicos e psicológicos a seres humanos passaram a ser reconhecidos em seu caráter dramático e eventualmente trágico. No rastro do iluminismo e das demandas por Esclarecimento, o jurista Beccaria buscou enfrentar o problema do exercício de atrocidades pelas autoridades. Em Dos delitos e das penas (1764), o que entra em cena como problema jurídico é o problema do que autoriza e justifica causar dor, privação e eventualmente morte de um outro membro da comunidade. É preciso, como observa Feinberg, que seja possível pôr em questão a legitimidade do poder e da autoridade, para que se pense a natureza do direito; e é esse tipo de discussão conceitual que a punição e a teoria da pena acarretam. E é também por isso que a natureza categórica da punição criminal, como Kant reconhece, torna-se parasitária ou passa a ser reconhecida como parasitária de uma concepção de poder político devido e legítimo.

Esse deslizamento que Kant apresenta na Doutrina do Direito, contra Beccaria, tem implicações graves, não somente de método. É o que se torna claro com o exemplo extremo do tratamento da pena de morte, em que o limite do que está em jogo na autoridade para infligir sofrimento a alguém da sua comunidade jurídica é apresentado como parasitário de um pacto presssuposto. Diz Kant a propósito de Beccaria:

“…aqui, contra o marquês de Beccaria, a partir de um sentimento de humanidade afetada (compassibilitas), estabeleceu sua tese segundo a qual a pena de morte é ilegal, porque ela não poderia estar compreendida no contrato civil originário; com efeito, cada um no povo poderia ter consentido em perder a sua vida, caso viesse a matar alguém (deste povo); ora, um tal consentimento seria impossível, porque ninguém pode dispor da sua vida. Tudo isso não passa de um sofisma e de argúcia jurídica” (vi) .

Ninguém é punido porque quis a pena, mas porque quis cometer uma ação punível. Para entender isso é preciso, obviamente, considerar que o colegislador e o delinquente atual não sejam a mesma pessoa ou as mesmas pessoas empiricamente dadas em um determinado contexto histórico. O que Kant requer é apenas que seja possível que possamos atribuir responsabilidade como se essa atualidade entre crime e legislador possa ser justificável — inclusive, atualmente.

“Quando, portanto, eu uso uma lei penal contra mim enquanto criminoso, trata-se então em mim da pura razão jurídica legislativa (homo noumenon) que me submete a essa lei penal, como ser capaz de um crime, por consequência, como uma outra pessoa (homo phaenomenon) assim como todos os outros na união civil” (vii).

Porque, nessa possibilidade está a justificação da autoridade, a qual então, legitimamente, aplicará penas, inclusive a de morte, sobre os pactuantes. Se deixarmos de lado a possível inconsistência em tomar o homem como fim em si mesmo e considerar legítima a pena de morte, na filosofia prática de Kant, podemos analisar o seu embate com Beccaria como derivado, sobretudo, de um problema não da igualdade entre as partes, entre homens que cometem crimes e que podem pactuar entre si, inclusive quanto ao próprio destino em caso de crimes cometidos, mas do poder de punir.

Segundo Kant, a razão por que punimos é o que nos permite identificar o crime cometido, em primeiro lugar. A aplicação da pena se justifica na razão jurídica prática e isso é o bastante. Com mais força, aplicar a pena é tratar o criminoso segundo a dignidade que, na medida em que é racional, ele tem de ter, afinal, para delinquir, é preciso poder ter contratado. Em que pese a possível inconsistência da defesa da pena de morte, frente ao programa filosófico crítico, a igualdade entre os homens é assegurada como uma questão de consistência do fundamento da punição. O argumento de Kant contra Beccaria parece derivar unicamente de uma diferença de método tal que ambos se referem em concepções incomensuráveis de contrato social. Dado o projeto crítico kantiano, é possível afirmar que há uma questão de método que Kant reivindica, em defesa do seu retributivismo duro, contra o que seria uma posição consequencialista de Beccaria. Ao dizer que a razão da pena é o crime, Kant está dizendo algo como: ninguém é punido porque precisa se emendar e ser educado ou curado ou trazido à luz da vida em sociedade, com regras bem estabelecidas. O problema da humanidade da violência infligida contra o criminoso, em qualquer caso, é externo à fundamentação do direito e da autoridade de punir. Assim, a compaixão que move a perspectiva de Beccaria, quanto à função da pena, é para Kant uma questão heterogênea e que cai fora da conexão entre crime e castigo, no que concerne à razão prática.

De novo, sobressai o elemento expressivista. Para o filósofo alemão, assim como para o humanista Beccaria, entretanto, o que conduz a argumentação das suas concepções de punição é a relação contratual. Crime e castigo são conectados normativamente porque as partes envolvidas são ou devem ser membros contratantes de um contrato social. E o modo como cada um compreende a contratação determina o modo como fundamentam a punição e até mesmo o direito ou a sua ausência, no que concerne à morte de criminosos. Em ambos os casos, no entanto, entra em cena, pela primeira vez entre os modernos, uma reflexão sobre a relação interna, não apenas entre crime e castigo, mas entre crime, castigo e autoridade para punir. É isso o que faz com que teorias sobre o fundamento do direito e do estado sejam visitadas(e tenham sido reimaginadas) a fim de justificar como se inflige sofrimento a alguém que é, como criminoso, necessariamente parte da comunidade jurídica. E pouco adianta que Kant diga que o criminoso rompeu com o contrato social e por isso cai for dessa comunidade. Esse é um outro problema. O fato é que em qualquer regime jurídico moderno o criminoso tem de pertencer em alguma medida à comunidade contra a qual comete o crime. E esse pertencimento é, em termos kantianos, dado pelo fato da razão.

Ser criminoso é, assim, uma prerrogativa e, como Hegel dirá depois, um status social digno de uma punição. Torna-se assim intuitiva a afirmação hegeliana segundo a qual a pena é um direito do criminoso, na sua Filosofia do Direito (§ 100) (viii). O que esses arranjos dão a ver é que não é mais trivial o poder de fato de cometer atrocidades e exercer a violência sem fundamento legitimado pela comunidade racional submetida à autoridade. É, em uma frase, a exigência da legitimidade para o exercício da prática punitiva. Cometer a violência passa a ser pensado como um problema não apenas enquanto questão prática imediata, de segurança pública, digamos (pensemos no caso do massacre de crocodilos, acima mencionado), mas como uma questão de natureza política, vinculada ao poder e à legitimidade do poder. Entre os modernos, pode-se dizer que o problema da culpa e da moralidade nos delitos é transportado dos confins do sujeito obediente e crente em uma ordem sobrenatural de autoridade para o poder instituído, possivelmente, pelos mesmos sujeitos que cometem crimes.

Essa transitividade desloca o problema moral de punir, do indivíduo, para o poder político em exercício. Não se enfrenta o crime apenas olhando para o criminoso, mas também, e talvez sobretudo, para quem pune o criminoso, para quem o julga. A mudança dos critérios de imputação está em que eles passam a depender de um crivo externo ao indivíduo e interno à vida normativa de toda uma comunidade. É por isso que ainda hoje se pensa o problema penal, para além da obscenidade do sistema prisional e das bestialidades nos discursos midiáticos e populistas, como um problema diretamente vinculado ao poder político. E é por isso que a filosofia penal é, em acepção rigorosa, filosofia política. O legado de Beccaria não está tanto no seu tratamento da conexão entre pena e punição, mas em pôr em questão a punição como um problema real, vinculado à legitimidade do poder político. O caráter moralmente inquietante da punição, como observa Feinberg, aparece pela primeira vez como um problema ou como uma inquietação política, em Beccaria. E quanto a isso, a essa transitividade do problema moral da culpa para o problema político da fundamentação da autoridade de punir, Kant apenas leva adiante uma reflexão iniciada pelo humanista.

A conexão entre crime e castigo passa a depender, assim, de um terceiro elemento, que é a autoridade de punir. Como eu disse no começo deste texto, entretanto, há um outro elemento que é requerido e que está suposto no modo como fazemos esta conexão, hoje: trata-se dos direitos da personalidade de direito, do sujeito de direitos que é capaz de contratar e que é digno ao ponto de ser punido, como um — mesmo que peculiar — reconhecimento jurídico de seu pertencimento a uma comunidade de regras. Afinal, dizer que a reflexão sobre a punição penal é um problema político não é dizer, como uma leitura apressada e ideológica pode dizer, que os crimes ou que (de maneira entusiasmada e falsificadora), pior, todos os crimes são políticos. A razão por que o poder político passa a sofrer a limitação de seu poder de reprimir e exercer violência sobre seus cidadãos, inclusive criminosos, é também o que fundamenta a teoria da responsabilidade penal, a saber: a racionalidade dos agentes morais e sociais em uma comunidade jurídica, na qual desfrutem e arquem com as implicações da igualdade e da transitividade do direito e do poder.

À limitação do poder de punir corresponde a determinação da extensão da punibilidade ao indivíduo criminoso. Quem pode exigir legitimidade do poder tem de poder responder por suas ações no âmbito da legitimidade, o que inclui o domínio das ações jurídicas. O deslocamento do problema da culpa moral para a responsabilidade jurídica tem contrapartida no modo como se passa a distinguir a imputabilidade: são as ações, antes que as intenções, que determinam a responsabilidade. Claro que o domínio intencional importa, a moralidade não morreu; mas a sua medida para fins de punição passa a ser jurídica. Essa medida não é sempre clara e nem fácil de ser estabelecida e experimentos ficcionais como o contrato social, em que pese sua força analítica, não permitem esclarecer os pressupostos de método e de fato, ou mesmo históricos, que condicionam o modo como a conexão lógica entre crime e castigo se dá, entre sistemas acusatórios recepcionados pelo direito positivo e pessoas de carne e osso. A prioridade da ação determinada por uma tipificação penal sobre o agente que a comete não elimina, vale dizer, o incontornável primado de que a ação criminosa sempre é praticada por um indivíduo e, mesmo quando há crimes praticados por vários cidadãos e cidadãs, a responsabilização, por uma questão lógica e conceitual, deve ser medida individualmente. Não há, rigorosamente falando, crime coletivo, na medida exata em que não há sujeito coletivo. Fora da retórica e dos delírios ideológicos, esse tipo de categorização não existe e não pode ter cabimento quando se consagra o direito individual e os direitos fundamentais.

Exigir a individuação da imputação penal, no entanto, é mais do que uma mera contrapartida lógica da conexão entre crime e castigo em comunidades jurídicas modernas, pós-kantianas. É uma limitação imposta ao poder acusatório e julgador pelo sistema de liberdades individuais reconhecidas como tal, e positivadas na lei. É uma contrapartida, claramente presente no artigo 5 da Constituição Federal do Brasil, portanto, também jurídica. Além disso, é uma consequência ética, que interpela a natureza legalista ou arbitrária de um sistema legal em seu aspecto institucional. Quem comete crime comete uma ação punível penalmente e tem, além do direito à pena, o direito a um devido processo legal, à defesa, e tem as suas prerrogativas elementares de cidadania preservadas, em quase todos os quesitos. Ao se reconhecer a esfera dos direitos individuais e seu escopo tanto na ordem de fundamentação, como de justificação da coerção, do poder estatal, visa-se a limitar a possibilidade do cometimento de atrocidades e a limitar a injustiça.

É por isso que a responsabilização coletiva em matéria penal é tão problemática e difícil de ser estabelecida. E é por isso, também, que o arbítrio acusatório tende a coletivizar a imputação de crimes, a fim de apostar no estigma e de disseminar o privilégio da função expressivista da pena. Aqui, uma vez mais, Feinberg ilumina a análise do problema penal, quando examina a responsabilidade coletiva de maneira nuançada. Porque, em que pese o tema seja de natureza material, a sua clareza depende do que se passa em um processo e de como, no estado das coisas reais de um processo, a determinação das condutas delituosas se dá. Essa perspectiva só pode garantir esclarecimento ao lançar luz sobre a nuance. É isso o que podemos ler no seu ensaio sobre Responsabilidade Coletiva, publicado originalmente em 1968 (ix). Em um caso típico que envolve a imputação de vários agentes no cometimento de um ou mais delitos, sob um mesmo processo, os seguintes requisitos devem ser observados:

“1) deve ser verdade que o indivíduo responsável fez a coisa prejudicial em questão, ou ao menos que sua ação ou omissão deu causa a uma substancial contribuição para tanto; 2) a conduta que contribuiu causalmente deve ter sido de alguma maneira culpada [faulty] e, finalmente, 3) se o resultado danoso foi verdadeiramente sua falta, o requisito da conexão causal deve estar situado entre o aspecto culposo de sua conduta e o resultado. Não é suficiente ter causado dano e ter sido culpado, se a culpa for irrelevante para o dano causado” (x).

A essa série de requisitos para a responsabilidade individual se chama “falta (ou culpa) contributiva” e no caso da responsabilidade coletiva a distinção entre esses aspectos é central. Porque o caráter coletivo da imputação requer o reconhecimento de que a responsabilidade, tanto civil como penal, não deriva exclusivamente da culpa e, ainda assim, há fundamento, há racionalidade, na atribuição desse tipo de responsabilidade. A responsabilização coletiva sem culpa requer relações contratuais de direito civil disciplinando a medida da responsabilidade por dano eventual (que Feinberg chama de “responsabilidade estrita”), ou relações de autorização (caso da responsabilidade indireta, “vicarious responsibility”), que vão da delegação para representação de advocacia à noção forte de autorização, hobbesiana, do poder soberano e, finalmente, a noção de responsabilidade coletiva senso estricto, que é a mais problemática e difícil de mensurar. E é notável que, para Feinberg, a perspectiva que tenha de ser priorizada seja a da busca da determinação da medida de atribuição de culpa a cada um, dentre uma coletividade. O ponto de vista não é descarnado, se assim posso dizer, mas realista; por isso, a responsabilidade coletiva parece, no mais das vezes, um caso particular da responsabilidade indireta. No terreno das aplicações das regras as dificuldades aparecem e podem tornar clara a complexidade acarretada pela imputação de penas a uma coletividade. Por exemplo, se e em que medida devemos responder por erros morais de nossos antepassados (caso do racismo), é uma questão clássica de responsabilidade indireta que requer um arranjo normativo tal que seja adequado para reparar os danos passados sem acarretar culpa aos envolvidos no presente. Políticas de cotas constituem um exemplo de arranjo normativo que acolhe essa concepção de responsabilidade indireta, envolvendo um entrelaçamento de esferas jurídicas e sociais das sociedades contemporâneas, que contemplam nos seus direitos positivos o reconhecimento da complexidade das figuras da responsabilidade coletiva.

No caso penal, porém, as coisas se tornam mais obscuras, quando se considera tal coisa como responsabilidade coletiva em matéria penal. Nas palavras de Feinberg, “a responsabilidade coletiva é mais provável de incomodar nossa sensibilidade moderna quando está em jogo a punição penal” (xi). Por que? Porque a responsabilidade criminal sempre é direta e é preciso que se cumpram requisitos no mais das vezes ausentes em sociedades regidas juridicamente por uma constituição e por um sistema positivo de regras infraconstitucionais, inclusive, processuais. É preciso ou o fracasso do sistema de garantias individuais, ou a ausência, simplesmente, de mecanismos responsáveis de investigação e determinação do crime. Como observa Feinberg,

“…responsabilidade penal coletiva sobre grupos como um dispositivo político coercitivo só é razoável quando há um alto grau de solidariedade antecedente no grupo e onde o policiamento efetivo e profissional é improvável. Mais ainda, a justiça requer a expectativa de um certo nível de controle sobre quem se imputa responsabilidade. É porque dificilmente essas condições são satisfeitas na vida moderna, (…) que a responsabilidade criminal coletiva não é mais uma forma aceitável de organização criminosa” (xii).

Isso quer dizer que não há formação de quadrilha e não há conspirações penalmente imputáveis? Não. Isso quer dizer que a imputação penal coletiva requer um reconhecido fracasso nas funções investigativas e nas atividades policiais. Trata-se de um fracasso em responder a exigências elementares de uma teoria da pena moderna, sob uma ordem constitucional que garante direitos fundamentais. O que está em jogo na imputação deve ter estado provado ao longo da investigação e se trata, tanto no Common Law como no direito brasileiro, de acessar a extensão de cada ação individual que tenha contribuído para o efeito coletivo de um delito. A improbabilidade e o estranhamento com essa figuração é tal que como Feinberg observa:

“envolve o enfrentamento de várias dimensões incomensuráveis de contribuição — graus de iniciativa, dificuldade ou caráter determinante de sub-tarefas atribuídas, graus de autoridade, percentual de ganho derivado, e por aí vai. Embora esses aspectos não possam ser determinados de nenhuma maneira matemática, respostas prontas e efetivas têm sido oferecidas ao senso comum, e as categorias legais de cumplicidade provaram-se bastante funcionais” (xiii).

Por que é assim? A resposta rápida é: por que os direitos fundamentais exigem, logicamente, rigor acusatório e legalidade. Uma resposta mais cuidadosa pode ser esta: a culpa não é transmissível, somente a responsabilidade o é e, em que pese essa seja uma regra civil, ela se aplica ao problema da responsabilidade coletiva, tout court. Ninguém pode responder por crime indeterminado, não legalmente.

Agora, qual o sentido dessas considerações, neste momento em que vivemos, no Brasil? Tudo parece perdido, ao menos para quem leva o direito processual penal a sério. A ausência de respeito que se seguiu às práticas arbitrárias e espetaculares da Operação LavaJato arruinaram requisitos elementares dos direitos fundamentais e resultaram em um profundo desequilíbrio entre os poderes do estado, em que um dos poderes se autoriza ao arbítrio e, para o estarrecimento das pessoas esclarecidas, ao crime. Advogados de defesa têm seu escritório grampeado e cortes autorizam a que uma operação judicial se torne paralegal, para tanto, inventando uma concepção de exceção jurídica. Os sistemas penais e processuais penais nunca são totalmente isolados entre si, aprendemos na faculdade, mas eles não podem ser reduzidos um ao outro, sob pena de se ter o direito como pura processualidade ou como pura materialidade. Em quaisquer dos dois casos, o resultado é arbítrio e, portanto, injustiça.

Qual o limite dos agentes públicos que estão deliberadamente legislando para si mesmos, como se fossem os contratantes sociais da própria ordem jurídica? Podemos imaginar que não são suicidas, caso se alinhassem com o método humanista de Beccaria, que jamais conceberia a bestialidade processual como admissível, nem o cometimento de atrocidades contra cidadãos supostamente contratantes da mesma ordem social. Se não se alinham com Beccaria, estariam alinhados com Kant e com a agenda do Esclarecimento? Estas não são questões retóricas, apenas. É preciso levar a sério que direitos e direitos fundamentais não são elementos celestiais, nem eternos, nem alheios ao direito positivo. A natureza dessas questões elementares que me moveram neste texto está, inacreditavelmente, apresentada nos nossos cotidianos, na exata medida do colapso da nossa ordem constitucional. Há milhares de pessoas presas sem o devido processo penal, mundo afora e o Brasil tem uma população carcerária tão gigantesca e crescente que somente um bloqueio epistêmico pode permitir a afirmação, séria, de que aqui ninguém “paga pelos crimes”. Em uma frase, é preciso mais expressivismo que direito.

Que a punição tenha uma função expressivista não é uma afirmação normativa e não quer dizer que penas possam cair fora do direito. Assim como não há crime onde não há determinação legal, tampouco há pena onde não há direito. Esses truísmos caem por terra quando temos não somente milhares de condenados sem direito a advogados para redigirem seus Habeas Corpus, como o maior líder popular e democrata da história do Brasil é arbitrariamente posto atrás das grades, em um processo que culminou em uma sentença e em uma confirmação de sentença sem uma só tipificação! Não há tal coisa como propriedade atribuída de imóvel, pois, se houvesse, não haveria por que ainda existir movimento social pela busca de teto. Não existe legalidade em prisões onde não há o elemento civilizatório do devido processo legal, que ganha sua robustez dramática no processo penal. E para quem pensa que o problema é o Lula, vale olhar para o lado e perguntar pelo seu colega professor universitário, ou para a amiga que saiu do Brasil para assumir um posto no exterior, onde poderá pesquisar sem medo e sem ameaças de morte, caso queira defender a igualdade das mulheres em relação aos homens. Leiam a sentença cometida por um juiz do Rio de Janeiro, que viola todas os requisitos lógicos e conceituais da teoria da pena recepcionados pelo direito brasileiro, para, vejam só, acusar um crime coletivo!


A sociedade brasileira não é uma comunidade de aldeões desamparados em pânico com uma população de crocodilos no seu entorno (pelo menos, não ainda). Nem é uma hipótese transcendental de uma ilha em que um massacre de condenados e aprisionados seja defensável, para que ninguém se iluda do caráter expressivista desses exemplares da razão pura prática. Não é por que estão violando o direito penal e processual penal que os crimes sejam políticos e que haja heróis e santos, ídolos e mártires. Estado de direito não produz nem reconhece essas figuras da exceção. O que Joel Feinberg nos ensina é que nada há de trivial na prática de violência, sobretudo quando ela é legitimada na figura do monopólio estatal do seu exercício. O contrário ocorre: a transitoriedade acarretada pelos direitos fundamentais não é uma licença para juízes nem quaisquer autoridades praticarem atrocidades nem para fazerem as vezes de psiquiatras adhoc. A perspectiva adotada pelo filósofo americano nos ilumina em questões de método mas chama a atenção pela generosidade com que mira o drama da responsabilização penal, em um mundo que não aceita a coerção injustificada porque, em primeiro lugar, isso acarretaria dano contra si mesmo, seja contra um requisito de sua dignidade como fim último das demais ações humanas, seja contra a própria vida. Mas também chama a atenção porque esclarece, sem boçalidade, como nada é simples nessa conexão lógica e conceitual, entre crime e castigo, em primeiro lugar, porque não deve sê-lo.


As citações eu traduzi.

i Kant, E. Métaphysique des moeurs — Première Partie: Doctrine du droit. Paris, Vrin, 1993, p.216


iii Kant, E. Op cit, p. 216

iv Este artigo e os demais citados a seguir, de Joel Feinberg, estão na coletânea Doing and Deserving: essays in the theory of responsibility, Princeton University Press, 1970. O texto A Função Expressivista da Punição [The Expressive Function of Punishment] está entre as páginas 95 e 118 desta coletânea.

v Op cit, pp. 98 e 100.

vi Kant, E. Op cit, p. 218

vii Idem.

viii Hegel, G.W.F. Principes de la philosophie du droit ou Droit Naturel et Science de L’État em Abrégé — Texte présenté, traduit et annoté par Robert Derathé. Paris, Vrin, 1975, p.143. Diz Hegel neste parágrafo mencionado acima: “A repressão que se destina à figura do criminoso não é apenas justa em si — na medida em que é usta, ela é ao mesmo tempo sua vontade em si, a existência empírica de sua liberdade, seu direito -, mas ela é também um direito próprio do criminoso ele mesmo, quer dizer, um direito posto em sua vontade sob a forma de sua existência empírica ou de sua ação. Pois, na sua ação, na medida em que é a ação de um ser racional, está implicada que ela é algo de universal, que, para ela, uma lei está estabelecida, e deve subsumir-se, como sob um direito próprio”.

ix Feinberg, J. Doing and Deserving…Op cit, pp. 222–251

x Ibid, p. 222

xi Ibid, p. 238

xii Ibid, p. 241

xiii Ibid, p. 246




Philosophy researcher full time. PhD. Sometimes I write. Tags: Early Modern Philosophy, Democracy, Dogs, Paleo, Political Philosophy. I do live in truth.

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