QUASE 9 MIL CARTAS DE PRESOS – A DESTINATÁRIOS COMO TEMER E STF – EXPÕEM OS HORRORES DO CÁRCERE



Por Juliana Gonçalves[*}

“TEMOS UM MÉDICO na unidade, […] a gente chega lá com problema no coração, na cabeça, no peito, ou qualquer outra parte do corpo, o único diagnóstico que ele passa é ‘problema de ansiedade’, e receita clonazepam, ou seja, remédio para dormir”, relata um preso de Minas Gerais em uma carta enviada ao Supremo Tribunal Federal. A correspondência é uma das 8.818 escritas ao longo de 2016 e analisadas pelo projeto Cartas do Cárcere, que mapeia as demandas e as narrativas do presos no Brasil.

“Geralmente, as análises produzidas sobre o sistema prisional são feitas por pessoas que estão fora das grades. Com as cartas escritas pelos presos, a gente tem a oportunidade de entender os efeitos dessa decisão política de manter o cárcere nos termos em que ele é hoje através de quem vive essa realidade”, explica Thula Pires, coordenadora do projeto. O Cartas do Cárcere foi uma demanda da Ouvidoria Nacional de Serviços Penais, e acontece em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD, e a PUC-Rio.

Todos os brasileiros podem se reportar a qualquer instituição pública, mesmo os que estão presos. O que é garantido pelo direito de petição da Constituição Federal. A Lei de Execução Penal também prevê que as pessoas em privação de liberdade tenham garantias de contato com o mundo externo.

No entanto, quem vive no cárcere tem dificuldades para encaminhar essas correspondências. Um dos presos relata, em uma das cartas às quais The Intercept Brasil teve acesso, que chegou a ficar sem café da manhã por uma semana para conseguir papel e caneta com outro detento. Ele trocou a comida pelo direito de escrever.

“Venho através desta, em nome de todos os reeducandos que se encontram cumprindo pena na penitenciária de segurança máxima, pedir ajuda à vossa excelência, ou até mesmo socorro, pois a situação aqui está crítica.”

Das mais de 1418 unidades prisionais do país, 610 tiveram cartas analisadas. Existem ainda correspondências que são censuradas e recebem um carimbo de inspeção da administração penitenciária, as quais não pudemos ler.

Das quase 9 mil cartas que romperam os filtros, boa parte exige direitos como acesso à assistência jurídica, saúde, educação e trabalho. Outra parte pede remissão de pena e regressão de regime, direitos legais que vêm sendo negligenciados em um país de presos provisórios. Do total, 48% das correspondências são destinadas à Ouvidoria, 28% ao STF e 11% a Presidência da República.

“Não são cartas pedindo perdão ou alegando inocência. São cartas no sentido de fazer valer a Lei de Execução Penal. Se a Justiça foi aplicada para garantir a condenação, que ela seja aplicada em todas as suas dimensões. Se o preso tem o direito à progressão de regime pelo tempo de cumprimento de pena, ele quer ter a remissão da pena”, diz Thula.

Os escritos são ricos e revelam de dentro do sistema a situação de um dos maiores complexos carcerário do mundo. Relatam abuso de autoridade, violência física e psicológica, falta de acesso à saúde, educação e assistência médica. Em 8% das cartas há referências a enfermidades que foram desenvolvidas na unidade prisional. As mais comuns são HIV, hepatite C, tuberculose e depressão.

Nos próximos 40 dias, a página Cartas do Cárcere irá divulgar correspondências dos presos. Com esse mapeamento, a Ouvidoria vai buscar agora criar estratégias de sensibilização da sociedade e políticas públicas que possam enfrentar a situação. Será possível acompanhar a divulgação dos materiais nas redes sociais do projeto. “Não queremos fazer a mediação dessas vozes, porque uma das formas de a gente silenciar essas pessoas é mediar”, diz Thula Pires. Eles querem dar o microfone (ou a caneta) nas mãos dos apenados.

Leia a seguir, na íntegra, uma dessas cartas, enviada ao então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski. Clique na imagem para abrir o original, ou siga para a transcrição abaixo.

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Excelentíssimo senhor presidente do Supremo Tribunal Federal, senhor Ricardo Lewandowski,

Venho através desta, em nome de todos os reeducandos que se encontram cumprindo pena na Penitenciária de segurança máxima de […], pedir ajuda à vossa excelência, ou até mesmo socorro, pois a situação aqui está crítica. Quero deixar claro para o senhor que não estamos querendo mordomia e nem regalias não, só estamos querendo os nossos direitos. Direitos esses que nós que nos são garantidos por lei, mas que em pleno século 21 estão sendo usurpados, pois estamos jogados aqui igual bicho. 

E quando cobramos os nossos direitos, o que ouvimos da direção é que os nossos direitos são apenas os nossos deveres. Creio eu que o senhor não pensa dessa forma, pois uma vez que erramos e estamos pagando nossa pena, não cabe a ninguém nos julgar pois já fomos julgados e condenados. E com isso só perdemos o nosso direito de ir e vir, mas a nossa integridade física e moral e nossos direitos como ser humano e cidadão nós não perdemos.

Vou relatar para o senhor algum dos nossos problemas. A falta de respeito com a nossa família, a negligência médica e a omissão de socorro, onde viemos a ter cinco mortos na unidade por omissão de socorro só no ano de 2015. Não temos dentistas na unidade e nem medicamentos. Onde estamos sofrendo dia e noite com dor de dente. Não temos psicólogo e psiquiatra na unidade. Onde quando um reeducando chega a demonstrar algum problema psicológico, devido às operações da unidade e por falta desses profissionais, acaba cometendo suicídio. Fora as agressões físicas e verbais.

A alimentação é precária. Onde já veio e vem acontecendo de estarmos achando pedras e pedaços de ferro na comida. E quando vamos reclamar, o que escutamos é o seguinte: se quiser é essa que tem.

Vivemos em cenas inadequadas, pois não temos ventanas na cela, ou seja, abertura de um fundo para o ar circular. E aqui sendo norte o calor é sobrenatural. Não temos água potável pois a água que é fornecida para nós é puro calcário. Isso vem causando vários problemas renais e estomacais em nós. Se pedir a secretaria de saúde para fazer uma análise da água o senhor pode ter certeza que vai dar imprópria para consumo. E se medir a temperatura das celas, pode ter certeza que vai dar acima do normal. E fora o excesso de execução que vem sendo cometido nesta comarca, pois temos vários reeducandos no direito de semiaberto, mas continua no fechado.

Outro problema é o rdd que é para os reeducandos que estão cumprindo medidas de segurança, mas tem vários que chegam de transferência e em vez de ficar 15 dias de observação estão ficando 30 60 90 e até 120 dias sem estar cumprindo medida de segurança. Outro problema, os abusos referentes às faltas graves pois são aplicados na gente e não ficamos sabendo, pois aqui não deixa a gente participar do Conselho disciplinar para a gente tentar se explicar. Pois quando vamos saber, só chega o castigo e a falta. Como pode sermos condenados, sem sequer participar do julgamento.

Outro problema, temos um médico na unidade que vem na parte da manhã e atende cinco presos e vai embora, pois o mesmo trabalha no […]. Mas o atendimento que ele oferece é da seguinte forma: a gente chega lá com problema no coração, na cabeça, no peito, ou em qualquer parte do corpo, o único diagnóstico que ele passa é o problema de ansiedade e receita clonazepam, ou seja, remédio para dormir e vai embora. Se a Secretaria de Saúde fizer uma análise na unidade, vai constatar que a capacidade que é para 332 presos, mas de 80% acaba tomando, pois se não acaba louco, pois muitos que estão aqui já estão perdendo a vontade até de viver. Pois devido à distância, a situação financeira, já foram abandonados pelas esposas, pelos familiares, pois o descaso é muito grande e comparando com outras unidades que temos tanto no estado como no país, com quase dez vezes mais de presos que tem aqui, não era para ser dessa forma. E outra coisa aqui é designado para ficar um ano e voltar para o próximo dos nossos familiares. Assim, conseguimos ficar mais perto dos nossos filhos e ter um apoio das nossas famílias. Mas isso também não acontece pois tem preso aqui há mais de 4 anos.

Sei que o senhor é conhecedor da lei, mas vou citar os direitos que a lei nos favorece.

Lei 7210/84 nos garante e é de total responsabilidade do sistema prisional:

Aproximação familiar – não tem

Dentista – não tem

Médico – não tem

Psicólogo – não tem

Psiquiatra – não tem

Assistente social

Chamamento nominal

Nossa integridade física e moral – precária

Alimentação adequada – péssima qualidade

ETC

Às vezes, excelência, para não acabar bebendo a própria urina e comendo as próprias fezes e vir tirar a própria vida, é que acontece várias rebeliões com resultados trágicos. Mas isso não é porque somos monstros não, isso acontece por desespero e descaso para com os reeducandos.

Vou fazer uma comparação grosseira, só para o senhor entender:

Pega um cachorro que foi maltratado e colocaram numa jaula. E trata com respeito e dignidade, pode ter certeza que ele vai se tornar um animal dócil e preparado para viver em qualquer lugar.

Mas se jogar-lo na jaula e só maltratar, humilhar, pode ter certeza que ele vai ser 10 vezes pior que entrou.

Ou seja, é exatamente o que está acontecendo com nós aqui na penitenciária […]. É por isso que vem pedir ajuda do senhor, pois já comunicamos a execução, Ministério Público, Corregedoria, Secretaria, Ouvidoria, mas não tivemos nenhuma atenção.

Sem mais no momento, muito obrigado.

Venho pedir o senhor também para estar vendo a situação do artigo [número não identificável], pois a lei é feita para beneficiar o réu. Mas esse [número não identificável] só prejudica. E ninguém sai mais da cadeia, estamos privados até de recorrer as nossas cadeias, pois quando volta, é unificado no [número não identificável] e começa tudo de novo.

OBS: Peço atenção para a saúde, pois realmente está precária.

Devido a tudo isso, peço ao senhor, se possível, esteja pedindo aos órgãos competentes para estar vindo na unidade e ouvir tudo isso pessoalmente e vendo com os própios olhos os fatos narrados.

Graduada em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, possuí especialização em Comunicação e Imagem na Pontifícia

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