Sobre o caráter da burguesia brasileira
No projeto-programa em vigor no governo Temer, comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, não existe uma nação nem interesses nacionais. Assim, ele não necessita de universidades públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação
por Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Moreira[*]
Em 2017, as universidades públicas brasileiras, em especial as federais, entraram na mira do governo Temer, tornando-se, concomitantemente, a “bola da vez” dos ataques da grande mídia corporativa. A ofensiva orquestrada, de tentativa de desqualificação e desmoralização dessas instituições, contou com a participação do Banco Mundial (Bird), do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal – os três últimos inspirados pela Operação Lava Jato.
No plano do financiamento do Estado para as universidades federais, o governo Temer, apoiado na “PEC da morte”, que congelou os gastos correntes federais por vinte anos, reduziu o repasse de recursos para essas instituições – tanto os gastos com investimentos, com a paralisação de inúmeras obras que vinham sendo executadas, como os gastos correntes ordinários que garantem o funcionamento cotidiano das universidades federais.
Na esfera do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Polícia Federal, as universidades federais foram agredidas duplamente, numa tentativa de criminalização e desmoralização de sua comunidade e de seus dirigentes, no mesmo estilo e com o mesmo modus operandi empregado pela Operação Lava Jato. Tendo por justificativa a investigação de supostos desvios de recursos, foram invadidas as instalações de duas universidades federais, a de Santa Catarina (UFSC) e a de Minas Gerais (UFMG), com a “condução coercitiva” de dirigentes e professores, o uso de enorme aparato policial – homens mascarados portando armas de grosso calibre – e grande mobilização midiática, como se houvesse organizações criminosas agindo no interior dessas instituições, e professores e reitores fossem bandidos e operadores dessas supostas organizações. Tudo isso feito sem nenhuma convocação anterior desses servidores públicos para prestar esclarecimentos e sem nenhuma acusação formal.
No caso mais dramático, o da UFSC, seu reitor, abalado psicologicamente – depois de conduzido arbitrariamente às instalações da Polícia Federal e de ter sido vítima de violência e humilhação em revista íntima, além de ficar proibido de entrar na universidade que dirigia –, suicidou-se, jogando-se de cima de um andar de um shopping de Florianópolis. Toda a operação foi executada sob a responsabilidade de uma delegada que havia trabalhado na Operação Lava Jato, com as mesmas arbitrariedades e utilizando os mesmos métodos de exceção da “República de Curitiba”.
Para completar as agressões às universidades públicas, no final de 2017 apareceu na cena política um “estudo” (assim denominado para dar impressão de ser científico e, portanto, irrefutável) do Banco Mundial.1 Com 160 páginas e encomendado pelo então ministro da Fazenda do governo Dilma, Joaquim Levy, trata-se na verdade de um documento político de apoio às contrarreformas neoliberais e ao ajuste fiscal permanente que vêm sendo colocados em prática pelo governo Temer. Seu objeto central é o gasto corrente (primário) do governo federal, em especial os gastos sociais com a Previdência e a seguridade social, a saúde pública, a educação pública e os salários dos servidores públicos – na linha de que “o governo gasta demais e gasta ineficiente e injustamente”. Portanto, deve-se, e pode-se, cortar esses gastos, tornando-os, supostamente, mais eficientes, equitativos e justos.
No entanto, a parte dedicada ao ensino superior, em particular às universidades federais, resume-se a sete páginas, pois o foco do documento é a Previdência Social,2 tida pelo capital financeiro como “a joia da coroa” por um motivo compreensível: depois dos gastos com o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, que consomem mais de 50% do orçamento do governo federal, a Previdência Social é o segundo maior gasto, correspondendo a pouco mais de 25%. Por sua vez, os gastos com saúde e educação representam de 3% a 4%, enquanto as demais rubricas, como habitação, saneamento, ciência e tecnologia etc., não chegam, cada uma, a 1%.3 Portanto, é a Previdência Social que mais pode transferir recursos para o capital financeiro – diretamente, ao aumentar o superávit fiscal primário, e indiretamente, ao “empurrar” parte de seus beneficiários para os fundos de pensão privados.
A parte do “estudo” dedicada à crítica às universidades públicas federais é de um primarismo e uma grosseria sem par, evidenciando a ligeireza e a má-fé com que foi realizada. O objetivo é um só: desqualificar essas instituições taxando-as de ineficientes, incompetentes e injustas, pois desperdiçam dinheiro público e favorecem os alunos pertencentes às famílias de nível de renda mais elevado. O corolário daí resultante é a defesa da instituição do ensino pago e da redução do financiamento das universidades públicas.
Para demonstrar a ineficiência, o Bird compara o gasto por aluno das universidades federais com o das universidades privadas, apontando uma diferença enorme entre ambos: segundo ele, entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante foi de R$ 40.900 nas universidades públicas federais e apenas R$ 14.850 nas universidades privadas com fins lucrativos. Por outro lado, para evidenciar o caráter regressivo dos gastos públicos, aponta que 65% dos estudantes das universidades federais pertencem aos 40% mais ricos da população, enquanto apenas 20% fazem parte dos 40% dos mais pobres. Com base nessas duas supostas constatações, o Bird propõe a redução dos recursos destinados às universidades federais, o que as obrigaria a “redefinir sua estrutura de custo e/ou buscar recursos em outras fontes”, e a introdução do ensino pago.
Em suma, o “estudo” do Bird é a velha cantilena da necessidade de um ajuste fiscal, defendido desde sempre pelo capital financeiro e vocalizado pela grande mídia corporativa apoiada em “especialistas” (economistas ortodoxos) e editoriais focados no tema. Nesse contexto, os gastos públicos com o ensino superior, assim como todos os demais gastos sociais, também devem se adequar e ser reduzidos, favorecendo o aumento do superávit fiscal para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública.
Antes de demonstrar o caráter fraudulento desse “estudo” do Bird, é necessário esclarecer pelo menos três pontos acerca da dívida pública do Estado brasileiro e do “ajuste fiscal” do governo Temer, colocando em evidência os argumentos falaciosos dos “especialistas” do mercado.
Primeiro: a enorme dívida pública atual não resultou do excesso de gastos correntes em relação às receitas dos sucessivos governos. Na verdade, ela decorreu de sucessivas políticas macroeconômicas executadas nas últimas quatro décadas, em especial o chamado “ajuste monetário do balanço de pagamento” – adotado pelo governo Figueiredo na década de 1980, por pressão do FMI, durante a crise da dívida externa dos países periféricos – e “o Plano Real e a abertura comercial-financeira” dos anos 1990 e 2000, postos em prática quando do aprofundamento do projeto-programa político neoliberal no país.4
Essas políticas acarretaram o endividamento do Estado aceleradamente; no primeiro caso, com a transformação da dívida externa privada em dívida externa pública, cujo pagamento, posteriormente, exigiu do Estado a emissão de títulos de dívida interna como contrapartida para a compra dos dólares gerados pelos exportadores privados. No segundo caso, a sustentação da âncora cambial como instrumento de combate à inflação, ao sobrevalorizar o real, implicou elevadas taxas de juros e grande emissão de títulos de dívida pública interna – como forma de atrair capitais externos de curtíssimo prazo, condição para evitar uma crise cambial que, contudo, acabou eclodindo em fins de 1998 e começo de 1999.
Ambas as políticas aumentaram radicalmente o montante da dívida pública, além de autonomizarem sua evolução com relação aos gastos correntes dos sucessivos governos; ou seja, a dívida pública cresceu mesmo com equilíbrio orçamentário ou superávit primário. De 1999 a 2013 – portanto, durante catorze anos –, os sucessivos governos obtiveram superávits primários e, assim mesmo, a dívida cresceu em termos absolutos e, em alguns anos, até mesmo como proporção do PIB.5
Segundo: os déficits que passaram a ocorrer a partir de 2014 decorreram inicialmente da desaceleração da economia e posteriormente da política equivocada de desoneração fiscal patrocinada pelo primeiro governo Dilma, seguida pelo início de um ajuste fiscal em seu segundo governo, radicalizado violentamente pela “PEC da morte” do governo Temer. Em ambos os casos, o resultado foi a queda da arrecadação federal e o aparecimento dos déficits – portanto, um problema pelo lado da receita –; enquanto a economia cresceu, a regra foi a existência de superávit primário.
Terceiro: na verdade, o problema das contas públicas são os gastos financeiros, com o pagamento de juros e amortizações da dívida, que absorvem mais de 50% do orçamento e crescem permanentemente, mesmo com superávit. No entanto, o ajuste fiscal, como seria de esperar, não inclui o ajuste dos gastos financeiros.
Com relação à suposta ineficiência e ao desperdício das universidades federais, o Bird rebaixa a complexidade delas ao compará-las às instituições de ensino privado que, com raríssimas exceções, limitam-se ao ensino, contando, para isso, com um corpo docente bem menos qualificado/titulado, em tempo parcial, mal remunerado e carregado de turmas para dar aulas.6
As universidades federais têm como regra, além do ensino, atividades de pesquisa e extensão, hospitais universitários de alta complexidade, clínicas e laboratórios, museus, orquestras, teatros, cinemas, escritórios de assistência jurídica à população mais pobre etc., contando, para isso, com um corpo docente altamente qualificado/titulado e, na maior parte, trabalhando em tempo integral.
Como consequência dessa enorme diferença, afirmar que as universidades federais têm um custo por estudante maior do que as universidades privadas não tem a menor credibilidade, se não forem separados dos gastos totais realizados pelas primeiras os gastos com todas as outras atividades listadas anteriormente. Além disso, é preciso abater o pagamento das aposentadorias e pensões que, absurdamente, também faz parte e compõe o orçamento das universidades federais. Apenas depois dessa operação de subtração é que se pode fazer uma comparação do custo por estudante entre os dois tipos de instituição.
Estudo do professor Nelson Cardoso Amaral7 evidencia que, depois de realizada a devida subtração mencionada, o custo médio anual do ensino, por aluno, nas universidades federais, para o ano de 2015, foi de R$ 13.875 – menor do que a média da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de R$ 15.772. Esse mesmo estudo, baseado em uma pesquisa socioeconômica realizada com os estudantes, evidencia que pouco mais de 51% tem renda familiar de até três salários mínimos (R$ 2.811), tendo por base o valor do salário mínimo de 2017; se considerarmos todos aqueles cuja família tem renda de até seis salários mínimos (R$ 5.622), atingiremos 76% do total de estudantes das universidades federais. Apenas 10% deles estão no topo da distribuição, isto é, pertencem a famílias com renda acima de dez salários mínimos (R$ 9.370).
O estudo de Amaral desmente também a afirmação do Bird de que os estudantes das universidades federais são egressos principalmente de escolas privadas de nível médio: em 2014, 64% dos estudantes das universidades federais cursaram o ensino médio integralmente, ou a maior parte dele, em escolas públicas e, em sentido oposto, 36% cursaram em escolas particulares.
A violência contra as universidades públicas, assim como as demais iniciativas do governo Temer, expressa um projeto-programa político claro e coerente de natureza neoliberal, tal como efetivado nos países capitalistas periféricos e dependentes, que ocupam uma posição subordinada na divisão internacional do trabalho. Nesses países, a superexploração do trabalho é regra e a concentração de renda e riqueza é indecente: no Brasil de hoje, os cinco indivíduos mais ricos (cinco!) detêm um patrimônio equivalente ao da metade mais pobre do país (mais de 100 milhões de pessoas!).8
Nesse projeto-programa comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, subordinada e subserviente ao imperialismo, não existe uma nação nem interesses nacionais; não há a pretensão de modificar a posição subalterna do país (exportador de commodities) na divisão internacional do trabalho; não cabem a defesa, a reserva e o uso dos recursos naturais do país em favor da maioria da população; tudo é avaliado pela lógica e a métrica do capital financeiro; não se admite distribuição de renda e da propriedade, com a efetivação de uma reforma agrária e a taxação da riqueza, da herança e dos mais ricos; não se necessita de grandes empresas nacionais e estatais que desenvolvam tecnologia própria, nem de instituições públicas de pesquisa e inovação; em suma, não se necessita de universidades públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação. Estas podem restringir sua atuação apenas ao ensino (pago) e, assim mesmo, em posição minoritária, pois atualmente as instituições privadas de ensino superior já absorvem 75% dos estudantes universitários do país – embora, em geral, ofereçam um “serviço” de péssima qualidade.
Na verdade, a maior tragédia do Brasil é o caráter de sua grande burguesia. Constituída frágil e tardiamente no contexto da expansão do capitalismo no plano mundial, ela não conseguiu fazer uma revolução democrática nem se defrontar com o imperialismo e dele se distinguir. Mais recentemente, aderiu de corpo e alma à lógica da financeirização difundida pela globalização, constituindo-se, sobretudo, como uma burguesia rentista e de negócio.9 O resultado final é que, diferentemente das burguesias dos países imperialistas, ela não conseguiu construir e liderar uma nação em sua plenitude. De fato, o Brasil é uma nação incompleta, desarticulada e sem coesão e identidade entre seus diversos segmentos sociais – que não sejam as características superficiais (a maior parte negativa) que supostamente definiria um brasileiro genérico.
Por tudo isso, a finalização da tarefa de constituição de uma nação brasileira completa, articulada e coesa e de uma universidade pública que expresse e sirva a essa urgência não pode mais ser realizada por suas classes dominantes alienadas. Resta saber se, no contexto de uma (des)ordem mundializada, as classes subalternas ainda terão a capacidade política de levar adiante essa tarefa histórica.
*Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Moreira são, respectivamente, professor titular de Economia, professora titular de Sociologia e professor adjunto de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1 Bird, “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, nov. 2017.
2 Aqui também a estratégia do capital financeiro e do Bird, com amplo apoio midiático, é desqualificar e desmoralizar a Previdência Social pública, vendendo a mentira da existência de um déficit estrutural insustentável – com base em manipulação metodológica que a retira da rubrica maior da seguridade social, composta ainda pela assistência social e a saúde, e some com parte significativa de suas fontes de financiamento –, além de taxá-la como injusta.
3 Essas informações constam no site do Tesouro Nacional, particularmente quando se considera a consolidação das contas públicas, segundo as despesas por função da União.
4 Ver Luiz Filgueiras, História do Plano Real, Boitempo, São Paulo, 2000, 2004 e 2016.
5 Em novembro de 1999, primeiro ano do segundo governo FHC, a dívida interna mobiliária federal já era de R$ 415 bilhões, ainda que durante o governo Collor e o primeiro de FHC 44 empresas estatais tenham sido privatizadas com o intuito de pagá-la. Catorze anos depois, em 2013, e após sucessivos superávits fiscais primários, essa dívida atingiu R$ 1,9 trilhão. A partir da crise eclodida em 2014, ela evoluiu para R$ 3,3 trilhões em setembro de 2017 (Banco Central do Brasil).
6 No ano passado, estimuladas pela entrada em vigor da reforma trabalhista, várias dessas instituições promoveram demissões em massa de professores com titulação e salários mais elevados, com o objetivo de recontratá-los de forma precária: a Estácio de Sá anunciou a demissão de 1,2 mil professores; a Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) demitiu pelo menos duzentos professores; a Anhembi Morumbi, que integra o mesmo grupo da FMU, demitiu ao menos 150; e a Universidade UniRitter, que atua na região sul do Brasil, demitiu mais de cem professores.
7 Andifes, “A hora da verdade para as universidades federais brasileiras: metas do PNE (2014-2024) e 10 mitos a serem debatidos e desvendados”, 2017.
8 Segundo a Oxfam, confederação de ONGs presente em 94 países que trabalha para a redução da desigualdade. Relatório de 2018.
9 Segundo a colunista social Hildegard Angel, em texto publicado pela Revista Fórum, “o rico brasileiro de verdade já desistiu do Brasil. Está pouco se lixando se tem gente pobre, vivendo e defecando nas ruas. Não é que ele seja insensível, é que ele não vive aqui. Ele está por aqui. Tem seu apartamento à beira-mar, frequenta seu clube, onde joga tênis, convive com seu reduzido círculo de amigos e ponto. Depois, embarca no seu jato para a residência lá fora. O Brasil é para ganhar dinheiro e remeter dinheiro. Esse rico não tem mais o embaraço da língua, como alguns ricos de gerações anteriores, pois os filhos e netos já dominam o inglês desde que nascem e [nem] sequer conhecem a nossa História. O rico brasileiro é globalizado, não tem brio patriótico, ao contrário, sente bastante preconceito e desprezo em relação ao nosso país, onde lamenta ter nascido”.
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