Humanos negros (ainda) não são cidadãos
Por Ricardo Alexandre Corrêa.
“Não importa a festa que me façam aqui ou ali, o cotidiano me indica que não sou cidadão neste país”. Esta reflexão foi extraída de um primoroso texto do intelectual Milton Santos (1926-2001) − Cidadanias Mutiladas −, no qual desvela algumas questões envolvendo a realidade social vivenciada pela população negra.
Milton Santos (foto), a despeito do currículo acadêmico invejável – livre docente, escritor, pesquisador, bacharel em Direito, Doutor em Geografia –, contemplando títulos Doutor Honoris Causa em universidades dos países da América Latina e Europa, ao afirmar a não cidadania, causa-nos estranheza.1
Nesse sentido, torna-se irrecusável não pensar o quão distante está à cidadania dos indivíduos que são desconhecidos dentro da sociedade. Mas, são outros fatores evidenciados naquele texto que suplantam a notoriedade decorrente das virtudes intelectuais de Milton Santos, afastando-o da cidadania na qual mencionou; cabe ressaltar que um cidadão é tão potente quanto o Estado, e dispõe de direitos e deveres, independente de suas convicções políticas, raça e classe. Contudo, a realidade demonstra que inexistem direitos aos negros. Milton Santos era negro. Humano negro.
Em primeiro lugar, faz-se necessário sublinhar o uso inequívoco da locução “humano negro” por acreditar que seja uma maneira de potencializar a nossa humanidade, tão ignorada pelos racistas, e contrapor o discurso que evoca o famigerado “somos todos humanos” numa falaciosa negação da heterogeneidade presente dentro deste grupo.
No que tange a crítica elaborada pelo autor, vemos o conceito de corporalidade como desencadeador do racismo. Esse conceito refere-se à percepção da sociedade quanto ao corpo, à cor do corpo como um dado objetivo. Dessa representação mental, o preconceito e a discriminação racial ganham terreno nas estruturas sociais, assim, o Estado, como espelho da sociedade, condiciona o provimento de direitos de acordo com a cor da pele. E, como a formação do povo brasileiro foi alicerçada com a escravidão dos homens africanos, a marca indelével do corpo destes virou o parâmetro de hierarquização dos indivíduos, ou nas palavras de Milton Santos “A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país”.
Mas, ainda precisamos esclarecer os sintomas da ausência de cidadania que acomete o grupo de humanos negros, numa breve síntese. O raciocínio parte da seguinte premissa: o excedente econômico para alguns grupos acarreta a falta para outros.2 E para que esse desequilíbrio seja duradouro as classes dominantes lançam mão do racismo como instrumento mantenedor dos privilégios que as sustentam.
Desta lógica, emergem algumas categorias naturalizadas no imaginário e realidade social: o negro, ou está na miséria ou na pobreza; encarcerado ou morto. Observe que a cidadania não se resume em afirmação de nacionalidade, muito menos em exercício eleitoral como preconiza o senso comum, é pela exclusão social que constatamos o quanto o Estado está descompromissado com os indivíduos do país.
Existem diversas pesquisas endossando essa síntese, apontando o contingente gritante de humanos negros que, quando sobrevivem, estão inseridos numa vida desafortunada.3 Há aqueles que não se enquadram em nenhuma destas situações, porém, na dinâmica da sociedade, são apenas partícipes subalternizados com pequenas alterações positivas econômica, social e política.
No entanto, mesmo não contando com o provimento voluntário do Estado, conquistas foram alcançadas ao longo da história, desde as lutas dos quilombolas no período escravagista passando Frente Negra Brasileira (1931), União dos Homens de Cor (1943), Teatro Experimental do Negro (1944), Movimento Negro Unificado (1978), dentre outras organizações, e movimentos, mas ainda é pouco pela dimensão dos humanos negros marginalizados; o Estado nos deve uma reparação ampla que nos torne cidadãos completos.
Assim sendo, esperamos que os humanos negros que se emanciparam intelectualmente do pensamento da sociedade branca, construam movimentos, promovendo educação e cultura afro-brasileira em suas comunidades, com vistas à ampliação de onde estejam circunscritos territorialmente; objetivando, também, cobranças junto ao Estado pelo atendimento às demandas sociais. A união dos humanos negros é a alternativa mais sensata, e potencialmente promissora, para lutarmos contra o racismo, assim, exigindo a cidadania que nos é negada, e como já disse o ativista sul-africano Stevie Biko (1946-1977) “Precisamos agarrar-nos uns aos outros com uma tenacidade que vai espantar os que praticam o mal.”
Em tempo: Marielle Franco, negra, socióloga, defensora dos Direitos Humanos e vereadora do Rio de Janeiro, foi brutalmente assassinada no dia 14/03/2018; era um exemplo de luta por cidadania, mas como acontece com os inúmeros humanos negros, o direito à vida não existe mais.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (Ed.). O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997, p. 133-144.
GONZALES, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero. 1982. Coleção Pontos. v3. Disponível em: < https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/ 04/lc3a9lia-gonzales-carlos-hasenbalg-lugar-de-negro1.pdf> . Acesso em: 25 set. 2017.
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