DESMONTE: Saúde mental: uma canetada não apaga 30 anos de luta

Sem direito a contraditório e a manifestação dos Conselhos Nacionais de Saúde e de Direitos Humanos, o Governo Temer deu mais um passo na direção de desconfigurar a Política Nacional de Saúde Mental. Política que resistiu a governos de matrizes ideológicas diversas e que é reconhecida internacionalmente como referência.

Por Leo Pinho e Mônica C. Ribeiro[*]

Imagem: Daniel Kondo
A Política Brasileira de Saúde Mental, que vem se constituindo ao longo dos últimos 30 anos com a chamada Reforma Psiquiátrica, veio substituir o modelo desumano e perverso de internação em manicômios, de características opressivas, excludentes e reducionistas. Substituiu o internamento de pessoas submetidas aos mais aterrorizantes tratamentos, em condições desumanas, pelo atendimento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAP) Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento e leitos em hospitais gerais.

Pois com uma canetada, sem direito a contraditório e a manifestação dos Conselhos Nacionais de Saúde e de Direitos Humanos, uma aliança entre o Ministério da Saúde, a Associação Brasileira de Psiquiatria e a Federação das Comunidades Terapêuticas fez, no dia último dia 14 de dezembro, mais um movimento na direção de desconfigurar a Política Nacional de Saúde Mental. Política que resistiu a diversos governos, de matrizes ideológicas diversas, e que é reconhecida internacionalmente como referência.

A chamada Comissão Tripartite – à qual cabe pactuar a organização e o funcionamento das ações e serviços de saúde integrados em redes de atenção, e que reúne representantes de secretários estaduais e municipais de saúde – aprovou resolução que fortalece o atendimento em hospitais psiquiátricos, contrariando tudo o que vem sendo feito nas últimas décadas.

A resolução garante a manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos, amplia os valores pagos para internação nessas instituições e estimula a criação de novas vagas nos hospitais gerais.

Ainda mais, prevê expansão do credenciamento das chamadas comunidades terapêuticas, que em sua maioria são ligadas a grupos religiosos e prestam serviços a dependentes químicos.
A proposta foi apresentada pela Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde, representada pelo atual coordenador, Quirino Junior.

Neste mesmo ano de 2017, a Ouvidoria Nacional registrou um aumento de cerca de 49% nas denúncias de maus tratos, imposições religiosas e trabalho forçado disfarçado de laborterapia. Só em Jarinu, no estado de São Paulo, a comunidade terapêutica Missão Belém teve 14 mortes em um só mês[1].

Situações de violações de direitos humanos que se assemelham às que eram vistas em manicômios têm sido flagradas em vários desses lugares por inspeções realizadas pelo Conselho Federal de Psicologia. Recentemente, foi criada uma Subcomissão de Drogas e Saúde Mental no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) para atuar nessas áreas.

Uma inspeção nacional realizada em outubro deste ano[2] pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Federal, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Conselho Federal de Psicologia foi realizada simultaneamente em mais de 30 comunidades terapêuticas em diversos estados brasileiros.
No âmbito do Ministério Público há mais de 50 procedimentos extrajudiciais para apuração de violações de direitos humanos em comunidades terapêuticas.

O mais recente relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura relata, em seu mais recente relatório, privação de liberdade em desconformidade com a lei, indícios de trabalho análogo ao escravo e também crime de sequestro e cárcere privado.

Denúncias realizadas ao longo de décadas dão conta de parte dos danos irreparáveis causados às pessoas que foram encarceradas dentro da perversa lógica manicomial.

A Casa de Saúde Anchieta, no município de Santos, por exemplo, era conhecida como ‘casa dos horrores’. Sua interdição, em 1989, deu início à Reforma Psiquiátrica.

O local abrigava cerca de 500 pessoas em espaço compatível para metade desse total, foi repetidas vezes denunciado por maus tratos, e sofreu finalmente intervenção após denúncia de mortes violentas. Celas, solitárias e pátio de recreação ainda visíveis no lugar demonstram claramente o caráter de reclusão e repressão.

O livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, demonstra o verdadeiro genocídio ocorrido naquele que foi o maior hospital psiquiátrico brasileiro, o Hospital Colônia, no município de Barbacena.
O trabalho dá conta de 60 mil mortos ao longo das décadas de existência daquele lugar.

Poucos dias antes da aprovação dessa resolução pela Comissão Tripartite, aconteceu em Bauru, nos dias 08 e 09/12, um encontro para relembrar os 30 anos da chamada Carta de Bauru, elaborada durante o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental e considerada o primeiro manifesto oficial dos trabalhadores em saúde mental por uma sociedade sem manicômios.

O encontro veio na sequência da divulgação, em março de 2017, do Manifesto em defesa da democracia, dos direitos sociais e por uma sociedade sem manicômios, assinado por uma série de entidades já atentas às movimentações que sinalizavam retrocesso.

“Durante os governos democráticos e populares de 2003 a 2015, a política de saúde mental aprofundou os avanços dos anos 90, ampliou em escala inédita os serviços abertos e substitutivos, de base territorial, e reduziu significativamente os equipamentos de tipo manicomial.

Tivemos imensas dificuldades, é verdade, especialmente na área de álcool e outras drogas, onde predomina na sociedade e nos agentes políticos uma visão extremamente conservadora e autoritária sobre a melhor forma de lidar com este problema de saúde pública. Mas estávamos em pleno processo de implantação de uma Reforma Psiquiátrica, no contexto do SUS, que incorporava as premissas da utopia ativa da sociedade sem manicômios.

Todos conhecem os números: redução de leitos em hospital psiquiátrico, implantação de CAPS e residências terapêuticas, CAPS AD e infanto-juvenil, unidades de acolhimento e consultório de rua, Programa de Volta para Casa, programas de geração de renda em articulação com a economia solidária e com arte e cultura, programas de formação permanente, ações desenvolvidas na atenção básica. Um avanço reconhecido em todo o mundo”, diz o Manifesto.

Desde o final da década de 1980 o Brasil veio avançando no sentido de consolidar as bases da Reforma Psiquiátrica, cujo marco legal só foi aprovado em 2001 – a lei 10.216, que instituiu a Reforma e reconheceu os direitos das pessoas com transtorno mental. Desde então, o país construiu a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), que tem nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) seu alicerce, no sentido de promover uma política pública acolhedora e que respeita os direitos humanos.

O atendimento integral no lugar da internação compulsória. A emancipação social no lugar do enclausuramento. A construção de uma rede substitutiva de base comunitária, na qual o usuário da saúde mental passou a ser visto como cidadão de direitos, no lugar do isolamento social, que impunha décadas de exclusão social. Esses são os focos dessa Política de Saúde Mental, instituída ao longo dos últimos 30 anos, com ênfase ao respeito à autonomia do indivíduo, ao cuidado, trabalho em rede e inserção social.
Uma política pública inovadora e pioneira, reconhecida mundialmente pela ONU como modelo a ser seguido em outros países, que vê o usuário de saúde mental não como portador de transtornos mentais, e sim como portador de direitos.

O movimento de saúde mental no Brasil é forte e está organizado, oferecendo resistência permanente a essas mudanças arbitrárias, feitas à revelia dos Conselhos Nacionais de Saúde e Direitos Humanos e sem audiências públicas. As decisões são contrárias às deliberações das Conferências Nacionais de Saúde Mental. Na reunião da Comissão Tripartite, inclusive, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald dos Santos, foi impedido de fazer uso da palavra.

Essa decisão foi tomada sem escuta da sociedade. Mas uma canetada não calará nossas vozes.

* Leo Pinho é diretor da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Mônica C. Ribeiro é jornalista e antropóloga.

[1] Para saber mais sobre o caso de Jarinu, clique aqui: https://goo.gl/yz8WrH

[2] Para saber mais sobre a ação, clique aqui: https://goo.gl/3yzNEi

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