Por Katarina Peixoto : Chega de desprezar a indigência intelectual como se o ridículo não ameaçasse a vida
O que ocorreu e ainda está ocorrendo, enquanto o Banco Santander e os demais censores não se retratarem perante a sociedade, é, até agora, o episódio mais sombrio de censura em décadas. É importante deixar claro em que consiste a gravidade dessa medida e por que não se trata de episódio menor. Temos, os que se julgam bem-pensantes e liberais, com consciência democrática cultivada, uma percepção distorcida e, por vezes, a partir de nosso universo estético, tendemos a desprezar o ridículo constitutivo de todo autoritarismo. A história não para de nos dar a ver que proceder assim é imprudente, mas seguimos cometendo esse erro. E, não raro, quando nos damos conta, deparamo-nos com filisteus perseguindo professores e invadindo museus, filmando obras de arte agarrados em códigos penais, a acusar crimes inexistentes e a vociferarem palavras de ordem de um astrólogo que “combate” Galileu e Newton.
Há anos que rimos desses indigentes intelectuais e seguimos tratando-os como inofensivos, pela absoluta carência de razoabilidade. E, também por uma questão de perspectiva, resistimos a tomar partido diante da sanha moralista, essa coisa tão sedutora às classes médias crentes do que diz a televisão e que resistem a estudar História e a tratar as empregadas domésticas como cidadãs, no Brasil. Assim, direitos fundamentais dos escravos recentemente alforriados são diariamente violados e o país apresenta números de homicídios e feminicídios estarrecedores, mas isso não nos perturba, senão em medidas privadas de segurança de nossos imóveis e bens materiais móveis. Mas esse episódio “avançou algumas casas” treva adentro.
O país agora vive um outro momento. Desde que se instaurou a cultura da justiça do inimigo, as violações dos direitos fundamentais passaram a ser cometidas contra os representantes dos desvalidos. E estes são os inimigos dos censores, por excelência. Assim, uma vez mais, a classe média foi, majoritariamente, conduzida a acreditar em uma limpeza nacional, levada a cabo por servidores públicos superassalariados, subletrados e eles mesmos reféns da maior cortina de ferro comunicativa do planeta: o sistema midiático-familiar, ultraconcentrado, brasileiro. Sem uma cultura de espaço público comunicativo de debates e sem a exigência de justificação racional por parte dos representantes políticos — bastavam e ainda bastam entrevistas às grandes redes, artigos nos jornais familiares paulistas ou outros expedientes evasivos da justificação da ação política –, o breve intervalo democrático do país foi brutalmente atacado, sobretudo, pelas medidas antirracistas dos últimos anos. Não há mistério, embora soe desagradável o que vou dizer. Mas Norbert Elias já apontou um caminho de leitura há muito tempo, a respeito do que está implicado na chegada dos outsiders ao universo dos estabelecidos. E uma sociedade herdeira da escravidão e que jamais condenou a tortura, ao longo de sua história, preserva não somente uma profunda desigualdade, como os resíduos mais medonhos dela: o racismo, a intolerância, o preconceito e o horror aos alforriados.
Alforriados com poder, nesse caminho, são o que há de mais ameaçador. Isso vai de líderes políticos democráticos, de dirigentes indígenas e de campesinos que vem sendo chacinados semanalmente, no último ano, no campo brasileiro, aos gays e a outras minorias ou maioria oprimida, como é o caso das mulheres. A reação à democracia não se restringe a um mero dinamismo eleitoral, a um deslocamento de preferências políticas. O mecanismo do ressentimento é muito mais insidioso e duradouro e prescinde da legitimação política. Aliás, o ataque e a desmoralização da democracia abriram o caminho da permissividade para violações inimagináveis há alguns anos, no Brasil. É preciso ter alguma clareza sobre como se chegou a esse ponto. A censura, o fechamento das expressões democráticas, a perseguição às minorias e o ódio político não acontecem de repente. São construções que levam anos e, eventualmente, gerações de transmissões de preconceitos, hostilidades e medo, para se consolidarem. É preciso um certo tempo para se chegar ao ponto de ter militantes do autointitulado Movimento Brasil Livre (MBL) e neopentescostais fazendo bullying em exposição de artes, com acusações de blasfêmia e outras coisas estranhas ao mais elementar bom senso letrado.
Em uma sociedade democrática, sejam quais forem os seus representantes, agredir obras de arte é, por si só, um delito e um malfeito. E não conseguimos ter a figuração de tamanha barbárie sendo acolhida por um banco e pela direita católica, nos anos 1980, 1990 ou 2000, passados. Porque era impossível. Porque vivíamos em um país menos tenso e dinâmico, socialmente. Estou convencida de que houve uma imensa negligência, por parte das esquerdas brasileiras, sobre esse tema que Elias tratou com muita força: a democracia tem custos sociais que não são mensuráveis economicamente, apenas. Podemos e devemos reconhecer, nos levantes moralistas que eclodiram em 2013 e na agressiva campanha da direita, em 2014, ressentimentos de classe e criminalização autoritária de adversários. Mas, como diz Jeffrey Goldfarb (no magistral The politics of small things), quem se preocupa com a democracia sabe e deve saber que a verdade está nos detalhes, nas pequenas coisas, no que se discute e conversa na mesa da cozinha, nas salas de estar, nos almoços de família e nas repartições de trabalho. Em vez de meras reproduções de uma ideológica coextensão entre verdade e poder, de traço foucaultiano, Goldfarb enxerga, nessas trocas nas esferas da vida em sociedade, a possibilidade se criar poder e refazer campos políticos mais fecundos e persistentes que meras escolhas eleitorais e políticas. E, embora Goldfarb priorize a potência solar dessa dimensão, há um lado sombrio aí, tanto como a reprodução ideológica, que Foucault reconhece, na sua Microfísica, como de disseminação de afetos familiares a estamentos e a classes, como Elias capturou.
A democracia foi derrotada em 2016, mas, na sociedade, ela vem sendo derrotada muito antes e esse fracasso foi condição fundamental para a deposição ilegal da última presidenta eleita. Foi preciso que muito tivesse se perdido, no leito da sociedade, para que o golpe final tenha se tornado possível. E não reconhecer isso custa, está custando e custará ainda muito caro a quem se julga democrático, porque prejudica a todos. Onde se começou a perder? Por quê? Quais as forças que minaram a democracia como valor da sociabilidade? Por que não foram levados a sério os custos sociais, simbólicos e ambientais da inclusão de milhões no universo de direitos, oportunidades e instituições públicas? O que ficou para ser regulado e o que foi menosprezado nos acordos e no pragmatismo do jogo diário da administração dos conflitos democráticos cotidianos? Essas são questões que devemos nos fazer a todos, e a cada um de nós.
Assim como não basta acreditar que novas eleições vão resolver tudo, não basta defender a liberdade de expressão sem levar em conta o que a garante, que é uma sociedade democrática. Não se garante democracia a balas e bombas. Essas coisas são usadas para defender o ódio, a intolerância e poderes sem legitimidade. Que pessoas achem que o episódio da perseguição e censura ao Queer Museu seja isolado não pode ser outra coisa que um sintoma da desagregação perceptiva acarretada pela degeneração da democracia, no país. Não tem essa de que se depõe uma presidenta, sem crime cometido, e fica tudo bem. O que se está vivendo no país no último ano é um recrudescimento da brutalidade inexplicável por medidas estritamente econômicas, cujo alcance não se esgota nas calamidades de uma equipe financeira alheia ao que significa Estado, representação e direitos. O poder político representativo exige, para a sua legitimação, uma separabilidade do jogo político em relação às demandas da moralidade, da religião, da sexualidade e das crenças de natureza subjetiva ou que se realizam no âmbito privado. Esse é o fundamento do estado laico, porque é aí que se justifica a neutralidade do Estado, esse ideal regulador que aparece já em Kantorowicz, quando trata do que chama de “perpetuidade do corpo político”, isto é, de uma estrutura de poder que independe inclusive do indivíduo que usa uma coroa por alguns anos. A violação dessa ordem da política, por meio da desmoralização e do ataque de natureza moral aos dirigentes políticos, acarretou uma profunda instabilidade e, afinal, a violação do princípio de que o “rei nunca morre”, quer dizer, de que a constituição, o equivalente moderno desse poder tratado por Kantorowicz, não pode morrer em função do caráter perecível de mandatários e mesmo da moralidade deles.
O crime contra o arcabouço constitucional-democrático brasileiro consistiu, socialmente, nisto: ao se deslegitimar o campo político e a dignidade da luta política, separável das entranhas morais, deu-se espaço a uma desenfreada demanda moralizadora (que já estava em ação, mas era mais organizada, pela mídia e por seus dirigentes no congresso, que agora lhes deram as costas), degenerada em um moralismo de desesperados. Pessoas que foram iludidas pela promessa de limpeza moral de um país, supostamente sujo pelas forças democráticas, tendem a sentir mais raiva e mais desamparo, e a buscar, nas demandas morais, a última garantia de significação para o sofrimento em que estão mergulhadas. É esse caldo que serve às organizações neopentescostais, à direita católica e ao sistema financeiro, cuja agenda é defendida como saída da crise econômica, nas televisões familiares, como se as classes médias e baixas fossem os rentistas beneficiados pelas medidas de Meirelles e outros funcionários do sistema financeiro.
O episódio do Queer Museu é gravíssimo porque condensa, para além da metáfora, a força da destruição em curso no Brasil. É a censura, operada pelo banco a serviço de camisas pretas (arregimentados pela desestabilização e pagos pelos dirigentes da usurpação em curso), pela direita católica e pelo neopentecostalismo, a uma expressão artística do universo da diversidade de orientação sexual. Não é um ataque, mais, à esquerda e aos seus dirigentes. É um ataque a quem se pensar e a se expressar como alforriado. É algo, portanto, muito mais grave, exatamente pelo seu caráter moralista e ecumênico. Não é segmentado politicamente: é espalhado em organizações sociais intrinsecamente autoritárias, que se sentiram autorizadas a sobrepor a sua agenda e demanda moralizadora sobre minorias e sobre o restante da sociedade. E foi acolhido por um dos maiores bancos privados em atividade do país. Isso não tem precedentes, porque foi cometido no seio da sociedade, antes dos tanques e outros horrores fardados entrarem em ação.
A neutralidade do Estado e a sua laicidade foram brutalmente feridas. O que garante essas prerrogativas do Estado constitucional moderno é, exatamente, a sua limitação pela vigência de direitos fundamentais reconhecidos na carta constitucional, que não autoriza os poderes de Estado e os cidadãos violarem a esfera sagrada da liberdade individual e de expressão. Na medida em que se arregimentou princípios e garantias fundamentais a fim de perseguir adversários políticos com lastro representativo e, pior, com mandatos em exercício, o que era uma prática comum contra os desvalidos migrou para uma parte da sociedade que se define por suas crenças e modo de vida. O ataque a gays é, em qualquer contexto autoritário, paradigmático e, em larga medida, uma consequência lógica do fechamento democrático. Porque não tem essa de que gênero é uma questão moral. Gênero é um entrelaçamento de possibilidades subjetivas que só se expressa onde a categoria gênero é reconhecida. Ora, como reconhecer tal coisa, quando se precisou construir na sociedade a degradação da capacidade da mulher e a desmoralização de sua legitimidade como dirigente máxima da nação?
Não se enganem. Não temos uma relação estrita de causa e efeito, mas uma relação multifacetada de permissões e silenciamentos, transmitidos e reconhecidos em práticas sociais. Para violar regras derivadas e limitadas por direitos da pessoa, como o são os direitos fundamentais, é preciso fechar e limitar as expressões das subjetividades. Não tem essa de regimes autoritários conviverem bem com gays e respeitarem o direito das mulheres. Podemos ter regimes democráticos que convivem com intolerância e com violência de gênero. Mas jamais houve nem há sentido em haver regimes autoritários que tolerem e reconheçam e respeitem as expressões de gênero. A transposição da violação de direitos fundamentais dos desvalidos para adversários políticos, que passaram à condição de inimigos, inclusive nos costumes é, no entanto, sutil. Ela se dá e se deu, no caso brasileiro, mediante espasmos de agressividade inconteste, mas se desenvolveu e enraizou a despeito do que ocorre no congresso e nos tribunais: está na sociedade o sustentáculo moral e social que permitiu a violação de 2016.
Foi preciso que se tornasse o ódio uma categoria política, no Brasil. Aliás, uma categoria política transportada do domínio mais opressor da sociedade, que, ressentido com a democracia, reagiu e vem reagindo com o uso do ódio como vetor de sua peculiar legitimação. É assim que se entende que ninguém elegeu o atual governo federal, mas, como esse governo federal não pressupõe qualquer legitimação, as forças que o sustentam tampouco estão preocupadas com legitimidade, justificação racional, respeito aos valores democráticos. É um comensalismo macabro, que não dá sinais de recuo.
Quais as implicações de um episódio como esse?
As implicações de um episódio dessa dimensão são variadas e indeterminadas, o que nem sempre é uma coisa boa. Em primeiro lugar, abre-se um precedente que segue permitindo a violação da neutralidade do Estado, em relação à esfera inviolável de direito dos cidadãos, dentre as quais a liberdade de expressão. Em segundo lugar, há uma tendência ao acirramento nas ruas e redes, e isso não é bom, porque interdita o que é requerido para barrar o autoritarismo, que é esclarecimento e justificação racional das posições políticas. Em terceiro lugar, e dado o atual desrespeito à representação política, é de se esperar mais pancadaria da polícia contra os seus recentemente tomados como inimigos do regime e da sua ordem: ativistas, ativistas gays e militantes de direitos humanos. Em quarto lugar, haverá muita piada e bom humor e desvelamento do ridículo daqueles que sustentam o atual pesadelo brasileiro, embora seu alcance seja limitado. E, por fim, há uma sombria possibilidade, que não sai de um horizonte cada vez mais aproximado, de que quem cometeu essa atrocidade não somente não vai recuar, como resistirá às críticas e às manifestações, como a Arquidiocese de Porto Alegre fez, ontem à noite, de maneira aparentemente ociosa, mas politicamente consistente com o grupo político que a comanda.
De que maneira a arte, a cultura e o pensamento crítico do país devem se posicionar perante tudo isso? Como resistir?
Bom, a arte, a cultura e o pensamento sempre triunfam e triunfarão sobre a barbárie e o obscurantismo. Mesmo os anos mais sombrios de fascismo não foram capazes de silenciar por completo a expressão artística. Em regra, a perseguição a expressões artísticas e subjetivas, de que a censura pública e institucional é exemplar, também neste caso, explicita grande tibieza institucional, social e ignorância. Essas coisas não duram muito, porque não têm elementos para resistir, senão pela força. A única maneira da censura triunfar é pela força, o que, por definição, é o atestado do fracasso político e moral do regime. No entanto, as pessoas que fazem arte, que trabalham com cultura e que são cidadãs e cidadãos conscientes da gravidade dessa violação precisam se organizar, socialmente, para resistir. Mesmo que a questão seja de natureza política, a resistência deve partir das relações sociais em geral, e, também, privadamente.
De novo, recorro ao Goldfarb. Ele enxerga na interação entre grupos de afinidades, vizinhos, colegas e amigos o cenário privilegiado para a criação de poder. A partir das lições de Vaclav Havel, sobre “viver em verdade”, Goldfarb defende uma síntese, como diz, entre o compromisso com a separação refletida entre a verdade e o poder (com base nas lições de Arendt sobre a distinção de ordem entre ambas as coisas) por um lado, e a aposta de olhar para essas relações como Ervin Goffman o fez, com a experiência das representações do eu, da subjetividade, nas e pelas interações sociais. Precisamos retraçar o vínculo imaginativo que foi dilacerado no processo de desestabilização e violação da ordem democrática e isso não se faz sem o pensamento e sem arte. Viver em verdade, não ceder, não sucumbir ao cinismo. Não há mais espaço algum para o cinismo. A besta autoritária está solta, e hoje há um poder usurpador nacional, uma cortina de ferro midiático familiar e organizações religiosas dispostas a sabotarem e inviabilizarem não somente a democracia, mas suas condições de formação para a justificação e a legitimação: a mídia livre, a universidade, a pesquisa, a ciência e a arte. Ninguém precisa de alinhamento político específico para resistir ao horror.
Do ponto de vista prático e institucional, as organizações e representações democráticas precisam começar a falar seriamente sobre a censura e o lawfare como modo de repressão que se alastrou no país. É preciso, por isso, dar à lei e à legalidade o respeito que merecem e pelo qual tantos pereceram. Por isso, caso o Banco Santander não honre com seus compromissos verbalizados de ressarcimento ao erário, deve-se representar ao Ministério Público Federal, para o que o faça, visto que a instituição deixou de recolher para fazer a exposição. Essa exigência é fundamental para quem defende a liberdade de expressão e combate as trevas. Também é importante que se comece a dar o nome aos expedientes de censura que estão ocorrendo em repartições públicas, aos professores perseguidos e denunciados por delirantes acusações de “doutrinação marxista”, a servidores públicos que respondem a inquéritos abertos com base na disseminação de paranoia e medo. Essas coisas estão acontecendo e é por isso que temos filisteus com o Código Penal dentro de exposição, buscando tipificar obras de arte, como se ambas as coisas fossem em alguma medida relacionadas, em um ambiente minimamente esclarecido. O preço pela desmoralização da política é alto e todos pagam, mas o custo da destruição dos marcos legais dos direitos fundamentais é irreparável e costuma ser devastadora, não apenas para as suas vítimas. Os gays sabem disso. É preciso criar poder, na resistência, e não recuar. Não ceder ao cinismo, nem à paranoia. Não transigir com a covardia, nem com a ilegalidade. Chega de desprezar a indigência intelectual como se o ridículo não ameaçasse a vida.
*Este texto é resultado da entrevista dada a Luciana Veras, para a Revista Continente. O link está aqui, da versão original: http://www.revistacontinente.com.br/secoes/especial/um-golpe-contra-a-arte
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