Os invisíveis geram medo
São mais de 160 pessoas assassinadas por dia. Na Síria, por exemplo, em quatro anos de guerra morreram 256 mil pessoas. No Brasil, no mesmo período, quase 279 mil.2 Não é uma guerra civil declarada, mas este é o país em que os policiais mais matam e mais morrem no mundo. Se de um lado estão os policiais e o Estado, do outro lado quem é o inimigo?
por: Silvio Caccia Bava[*]
A situação ainda não está fora de controle, mas há riscos
de entrarmos em um período de confrontos e violência muito mais agudos
do que vivemos atualmente. O que acontece hoje no Rio de Janeiro é sinal
do que vem por aí. Já assusta todo mundo o fato de que o Brasil atingiu
a marca recorde de 59.627 homicídios por armas de fogo em 2014, uma
alta de 21,9% em comparação aos 48.909 óbitos registrados em 2003,
segundo o Mapa da violência divulgado em 2016.1
São mais de 160 pessoas assassinadas por dia. Na Síria,
por exemplo, em quatro anos de guerra morreram 256 mil pessoas. No
Brasil, no mesmo período, quase 279 mil.2 Não é uma guerra civil
declarada, mas este é o país em que os policiais mais matam e mais
morrem no mundo. Se de um lado estão os policiais e o Estado, do outro
lado quem é o inimigo?
O que as classes dominantes nos querem passar – e para
isso se utilizam da TV – é que o confronto se dá entre criminosos,
malfeitores, bandidos, vagabundos, narcotraficantes, corruptos e os que
defendem a ordem e a lei. Usam para isso programas como Cidade Alerta.
Ao produzir no imaginário dos brasileiros esse tipo de
confronto, a TV oculta a pobreza, o desemprego, a falta de oportunidades
para os jovens, a precariedade de nosso sistema educacional, a falta de
moradia, os reais problemas da grande maioria dos brasileiros e
brasileiras. Essa ocultação falseia o diagnóstico. Já que o que aparece
na TV sobre os pobres é a perseguição aos bandidos, o imaginário do
brasileiro acabou aceitando a percepção do pobre como um ser perigoso,
que necessita ser controlado.
Na verdade, trata-se de repressão e controle policial
sobre as grandes maiorias empobrecidas, controle que tem como imagem
emblemática as Unidades de Polícia Pacificadora – as UPPs – instaladas
em favelas do Rio de Janeiro e que, a pretexto de combater o
narcotráfico, chegam a impor toque de recolher em certas áreas da
cidade. Isso para não falar na política de encarceramento maciço
sustentada pelo nosso Judiciário, hoje com mais de 200 mil presos “para
averiguação”, em sua maioria jovens e negros, sem nenhuma acusação
pesando sobre eles.
Numa sociedade organizada para facilitar os negócios e
atender aos interesses das grandes empresas, a imagem construída da
sociedade é a de um grande mercado onde se oferecem produtos e serviços
para quem tem recursos para comprá-los. Consumismo e produtivismo são as
molas do que se entende como progresso. A TV aberta é a vitrine desse
mercado e se orienta para seduzir as classes médias e impor um padrão de
consumo. O pobre, isto é, a grande maioria dos brasileiros, não existe
na TV. E se é pela TV que a grande maioria se informa, então os pobres
não existem para a sociedade em que vivem. Não se sabe como é a vida nas
favelas, como funcionam as escolas públicas, como são as relações de
rua e de bairro, o que fazem os jovens da periferia etc.
Ignorar os pobres tem como duplo propósito ignorar suas
demandas, suas necessidades, e mantê-los sob controle, de preferência
alimentando uma situação de apatia.
“A representação de si, neste contexto, é decisiva.
Aqueles que não têm nome não podem se nomear, não podem existir enquanto
pessoas e não podem agir coletivamente. Se tivermos essa preocupação no
espírito, compreenderemos melhor o interesse dos dominantes de fazer
desaparecer do campo das representações certas categorias sociais e de
querer que outras ocupem todo o espaço, pois aqueles que se tornaram
invisíveis aos olhos dos outros se tornaram também invisíveis para si
mesmos. Ao contrário, as categorias sociais superexpostas,
supervisíveis, podem fazer crer que a representação de si mesmas é a
única realidade social efetiva. Assim se constrói o imaginário social
coletivo e a ideia que cada um faz de si mesmo.”3
Não basta dizer que a solução para a violência presente na
sociedade não é o encarceramento maciço nem o assassinato em massa,
como vem sendo feito com os jovens negros da periferia. Soa quase
impossível nesse cenário polarizado identificar as causas da violência
com a falta de políticas públicas que ofereçam às maiorias as mínimas
condições de vida, especialmente nas grandes cidades. A juventude que
tem perspectivas de futuro (de emprego, moradia, mobilidade, saúde,
educação) não adere à violência, à criminalidade.
As políticas do atual governo cerceiam o futuro de nossa
juventude ao impor profundos cortes nas políticas sociais. É um ataque
aos direitos humanos, aos direitos sociais, uma violência deliberada
sobre a vida das maiorias.
Nessas condições, a única maneira de essas maiorias se
tornarem visíveis para o conjunto da sociedade e verem suas necessidades
e demandas inscritas na agenda política nacional é por meio da
mobilização social, do protesto, da pressão sobre o sistema político.
Se essa pressão vai se radicalizar e assumir formas
violentas ninguém sabe, mas parece que somente dessa forma, somando as
demandas de diferentes grupos sociais em um movimento amplo de protesto e
questionamento da ordem estabelecida, é que o povo sai do anonimato,
pode se reconhecer na sua existência, nas suas demandas, tornar-se ator
político, apresentar-se para o conjunto da sociedade em toda sua
potência. E é disso que as classes dominantes têm medo.
* Silvio C. Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil
1 Julio Jacobo Waiselfisz, Mapa da violência 2016, Flacso Brasil.
2 G1, Jornal Nacional, 28 out. 2016.
3 Jean-Luc Mélenchon, L’Ère du peuple [A era do povo], Fayard/Pluriel, Paris, 2017, p.89.
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