Reforma trabalhista desmente crise no sistema previdenciário


A Constituição estabeleceu a dignidade humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos da nossa República. Para efetivá-los, previu diversos direitos sociais, entre os quais o trabalho e a Previdência Social, mas também a educação, a saúde e a segurança.

Por Cirlene Luíza Zimmermann[*]

Sem educação, não é possível ter trabalho digno e nem ter a noção da importância de ser previdente. Consequentemente, haverá sérios riscos de não ter saúde de qualidade. Também não se terá assegurado o direito social à segurança em sua faceta privada, ou seja, a garantia de ter o que comer, onde morar e de sustentar a família.

O sistema de seguridade social pensado pelos legisladores constituintes em 1988 é formado pela saúde, pela assistência e pela previdência. Visa garantir à população a cobertura dos riscos a que todos estão suscetíveis nessas três áreas.

A Previdência Social brasileira combina as características da contributiva com a filiação obrigatória e a solidariedade, ou seja, exige-se contribuição de todos que exercem atividades remuneradas para que possam usufruir dos benefícios do sistema diante das contingências da vida, cada um na medida das suas possibilidades.

Mas não depende, exclusivamente, das próprias contribuições para ter direito às prestações, possuindo o sistema uma base diversificada de financiamento, justamente para não deixar de ser sustentável no caso de uma dessas fontes de custeio, em determinado momento, gerar arrecadação insuficiente.

A implementação dessa diversidade na base de financiamento decorreu do reconhecimento da função social da Previdência Social. E que função social, pois a Previdência é o maior programa de redistribuição de renda do país: em mais de 90% dos municípios, o pagamento de benefícios supera a arrecadação; em 64%, supera o Fundo de Participação dos Municípios; e, para cada beneficiário da Previdência Social, há 2,5 pessoas beneficiadas indiretamente, o que significa que metade da população brasileira vive do programa.

E para garantir que essa função social seja continuamente cumprida, determinou o constituinte que o orçamento da seguridade social seria distinto do orçamento da União. Sabia-se que era necessário não misturar os caixas para manter a sustentabilidade do sistema.

A União, contudo, além de não contribuir sistematicamente para fortalecer o orçamento da seguridade social, ainda desvirtua a arrecadação relativa às contribuições sociais (aquelas que não poderiam ser desvinculadas). Desde o ano 2000, com a chamada Desvinculação das Receitas da União (DRU), 20% da arrecadação da seguridade social (sem contar a contribuição obrigatória da União) são destinados para finalidades diversas, sendo que esse percentual foi elevado para 30% em 2016.

Assim, além de não contribuir, a União ainda destina quase 1/3 do orçamento da seguridade social para pagar outras despesas. E, no final das contas, diz que cobre o rombo da previdência! Mal comparando, é o assaltante pagando as contas do assaltado e se passando de bonzinho por tamanha benevolência.

A sustentabilidade do sistema de seguridade social também é necessária para permitir a elevação da cobertura e do atendimento, visto que o constituinte projetou o sistema para ser universal. Essa proposta, ainda que muito sonhadora, não poderia ser diferente, pois se o sistema cobre riscos sociais, nada justificaria a eliminação sumária da possibilidade de um dia se beneficiar do sistema.

E é nesse mesmo sentido que o Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, previu o princípio do desenvolvimento progressivo ou da vedação do retrocesso social: no âmbito dos direitos sociais, objetiva-se “conseguir, progressivamente, a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas e sociais”. O art. 7º da nossa Constituição, que estabelece direitos sociais mínimos aos trabalhadores brasileiros, além de outros direitos que visem à melhoria da sua condição social, foi formulado com a mesma essência.

Então, como justificar as reformas trabalhista e previdenciária, que, em comum, têm a característica de precarização dos direitos sociais, de diminuir o seu alcance, de piorar a condição social dos trabalhadores, que são contribuintes e também potenciais beneficiários do sistema previdenciário?

A reforma trabalhista que vem sendo desenhada é uma miríade de incentivos à “sonegação” de contribuições sociais por diversos motivos. Vou elencar alguns, sem pretensão de exaurimento:

a) Estimula a terceirização, quando, sabidamente, os terceirizados recebem salários 30% inferiores aos empregados diretos e as empresas terceirizadas, não raramente, desaparecem devendo milhões à Previdência Social;

b) Autoriza a “pejotização”, que sempre foi instrumento utilizado para redução da carga tributária, inclusive a relativa às contribuições sociais;

c) Sinaliza para o incremento da informalidade, já que será a única saída para os idosos que, rotineiramente, são discriminados no mercado de trabalho e, muitas vezes, não conseguirão cumprir os requisitos mais rigorosos para obtenção da aposentadoria.

Além disso, a aprovação do projeto de reforma das leis do trabalho levará à redução da base de cálculo das contribuições previdenciárias, pois, apenas para citar alguns exemplos:

a) Autoriza a jornada intermitente e a ampliação da jornada parcial, que gerará milhares de salários de contribuição inferiores ao mínimo;

b) Exclui os abonos, prêmios e diárias para viagens habituais, independentemente do seu valor, da base de cálculo, o que incrementará as contribuições sobre o piso (salário mínimo);

c) Permite o negociado prevalecer sobre o legislado, ainda que para retirar direitos, ou seja, mais uma vez, a base de cálculo das contribuições previdenciárias poderá será afetada, pois salários normativos poderão ser reduzidos ao piso nacional;

d) Extingue o pagamento das horas in itinere, ou seja, aquelas utilizadas no deslocamento da residência ao trabalho quando o local em que instalada a empresa não conta com transporte público, mais uma vez reduzindo a renda do trabalhador e também a arrecadação previdenciária.

E, por fim, a proposta da reforma trabalhista ainda tende ao incremento das despesas previdenciárias relativas aos benefícios por incapacidade (apesar de reduzir a base de cálculo do custeio), pois a velhice debilita, as jornadas de trabalho estendidas e a redução do intervalo, para almoço e descanso, fazem adoecer; a exposição prolongada a agentes nocivos gera doença e os índices de acidentes do trabalho e de doenças ocupacionais entre terceirizados são inúmeras vezes superiores aos dos trabalhadores contratados diretos.

E na falta do benefício previdenciário, em razão da impossibilidade de implemento dos requisitos, poderá haver uma fuga para o benefício assistencial, esse não contributivo, mas dependente do mesmo orçamento.

As propostas da reforma trabalhista e da Previdência, evidentemente, visam aliviar o peso dos direitos trabalhistas e das contribuições sociais para as empresas, mas certamente não cooperam para a sustentabilidade do sistema previdenciário. A mera retirada ou dificultação de acesso aos benefícios previdenciários não tornará o sistema imune a novas reformas precarizantes em alguns anos.

É preciso mais:

a) É imprescindível reafirmar o reconhecimento do constituinte quanto à função social do sistema da seguridade social;

b) É preciso manter a base alargada e diversificada de financiamento, com a proibição da desvinculação que atualmente consome 1/3 da receita da seguridade social para finalidades diversas e a imposição do repasse da contribuição obrigatória da União;

c) É imperioso rever as imunidades e as desonerações; d) é preciso cobrar os grandes devedores e barrar os sonegadores;

e) É imperativo fiscalizar e exigir a contribuição de todos os filiados obrigatórios, incluindo-os, efetivamente, no sistema, ainda que por meio do sistema especial, que prevê alíquotas reduzidas;

f) É necessário educar a população para ser previdente;

g) É cogente que as eventuais reformas não tenham como foco, unicamente, a precarização de direitos sociais, pois trabalhador sem renda não consome e mercado sem demanda não supera a crise. 



*Cirlene Luiza Zimmermann é Procuradora do Trabalho no Ministério Público do Trabalho, Coordenadora Regional da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho na Procuradoria Regional do Trabalho da 11ª Região (Amazonas) e Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.

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