Resistência internacional ao golpe prepara luta contra “ditadura suave”
O Tempo de Dilma Rousseff: a razão por que resistimos
Por Katarina Peixoto[*]
A história é a luta pelo passado. Essa boutade é mais fecunda que intuitiva, pois quer dizer, entre outras coisas, que história é uma experiência sobre o presente e sempre sobre o presente, e que é por meio dessa experiência e do embate normativo que a embala que poderemos dispor dos marcos para identificar o passado.
E nada dessas coisas é fácil de ver, num contexto de luta cotidiana e exaustiva, em que o Brasil foi jogado nos últimos dois anos, mesmo para democratas que não se apequenaram nem cederam à avalanche golpista que se espalha e dissemina destruição e medo pelo país.
Como a leitora e o leitor poderão acompanhar, ao longo deste livro, o que consta nessas entrevistas, manifestos, sentença do Tribunal Internacional, ensaios, artigos e poema, é aquilo que Amartya Sen chama de “fundamentação plural” da denúncia de uma flagrante injustiça: a deposição ilegal de Dilma Rousseff.
Há várias linhas de abordagem do que se passa no Brasil, hoje, voltadas a diagnosticar e evidenciar a destruição voraz em curso, e também com vistas a apontar caminhos de refazimento da vida dos direitos sob uma ordem constitucional.
Em todos e em cada um dos documentos aqui registrados, consta o compromisso com a temporalidade e a experiência encarnadas na figura de Dilma Rousseff.
Estadista de envergadura incomum na história brasileira, primeira mulher eleita e reeleita presidenta, formada na luta armada contra a última ditadura, economista, herdeira do trabalhismo e do legado, como gosta de dizer, de enxergar a ideia de estado nacional, de Getúlio Vargas. Dilma Rousseff responde por todas e cada uma das iniciativas inspiradoras da grande transformação brasileira, dos últimos 13 anos.
Responde pelos programas anticíclicos, pelas políticas de reconhecimento e ampliação do escopo dos direitos, e responde pelo fortalecimento e consolidação de uma certa estabilidade institucional hoje violada.
Impoluta e não messiânica, Dilma causou e causa desconcertos em todas as forças políticas do país e a sua tenacidade segue interpelando os golpistas e incomodando os arautos de uma perseguição sem precedentes, contra si.
Na guerra política em que o país foi mergulhado, a figura da mulher jamais ocupou tamanha centralidade.
De despreparada a louca, de furiosa a comunista, passando, é claro, pela acusação demencial de ter cometido algum mal feito.
A todas e a cada uma dessas vilanias, Dilma respondeu e segue respondendo com altivez, republicanismo e caráter.
Dilma tem um ethos raro, de quem se entregou a uma luta maior que si: é virtuosa e, ao mesmo tempo, mergulhada na história.
Assim é que, desde o início dos procedimentos golpistas, dedicou-se a uma espécie de pedagogia da resistência: em cada fala, denuncia ponto a ponto a inconsistência e eventualmente o caráter absurdo das acusações.
Repete ponto por ponto, desfaz qualquer hipótese de consistência nas acusações falaciosas que compõem o enredo macabro do “crime de responsabilidade”, que não há nem nunca houve.
E segue defendendo a democracia, o sufrágio, as políticas de estado voltadas à realização da ideia de estado nacional, democrático, solidário, soberano.
Dizer que Dilma Rousseff é inocente é justo, mas insuficiente.
Dilma é de tal maneira virtuosa, que age com a clareza que poucos têm, em meio à gigantesca instabilidade em que fomos todos jogados.
Mantém o tom de sobriedade que parece estranho, até, quando não frágil.
Não nos enganemos com essa figuração, no mais das vezes, contaminada de misoginia, estranhamento e desconcerto frente a quem reconhece a república como fim em si.
As oligarquias golpistas terão sobre si, para a história, a mancha de conspurcarem, de novo, contra o que Dilma significa e é.
Essas coisas existem numa temporalidade que não está nos jornais e nas televisões oligopólicas, nem no jogo eleitoral espetacularizado.
Estão na história, nesse tempo em que a razão se realiza. Esse tempo e essa figuração constituem e constituíram a razão por que resistimos.
Um dos maiores méritos desta coletânea consiste em contemplar, tanto em declarações distantes, como em testemunhos carregados de afetividade, o compromisso com a democracia no presente.
Esse compromisso tem uma natureza moral e política sem fronteiras, e o olhar distante carrega consigo uma possibilidade de clareza muitas vezes para nós interdita, em meio à instabilidade em que fomos jogados.
E há também o elo afetivo, sentimental e biográfico dos brasileiros desterrados e dos estrangeiros que acompanham e resistem à destruição da ordem constitucional brasileira e se solidarizam com a resistência.
Com a força da solidariedade, do compromisso intelectual e da generosidade que constituem os valores da democracia, a nossa democracia, jovem e hoje crepuscular, será acolhida na resistência e sobreviverá ao desastre que se anuncia.
Não é de pouca monta documentar o que estamos vivendo e tampouco é comum.
Esta é a terceira parte de uma trilogia de coletâneas que documentam com raro rigor e compromisso, aliados, o estado da destruição em curso no Brasil.
O golpe contra a expansão do direito e das oportunidades conquistados após anos de resistência a uma ditadura torna-se cada dia mais nítido e, ao mesmo tempo, despudorado.
Vencemos a batalha semântica sobre o golpe e os usurpadores contribuíram de maneira inaudita para este esclarecimento: o país hoje é governado por uma força usurpadora de ocupação que não foi eleita, que pretende realizar uma agenda reiteradas vezes rejeitada nas urnas e que é inelegível, dadas as decisões já transitadas em julgado, a respeito da elegibilidade de parte dos senhores golpistas dirigentes do golpe.
Eles pretendem governar como não houvesse amanhã, porque sabem que eles não têm amanhã. Estão, portanto, prontos para liquidarem com o passado e com as condições de possibilidade da luta sobre o passado.
Para nós, que organizamos este livro e para muitos dos autores, nada parecido se viu ou viveu, no Brasil, em nossas vidas.
Mas para muitos dos que estão conosco, na Resistência Internacional, esta é a história de uma variação sobre um tema perseverante, uma espécie de repetição.
Como toda repetição, tem suas peculiaridades e similaridades e estas comparecem na pluralidade de abordagens aqui representadas.
Há elementos repetitivos como a queda nos preços das commodities. A especulação característica da crise do petróleo dos anos 70 do século passado ganhou uma nova roupagem: mais bélica, mais claramente política e intrinsecamente operadora do ataque às democracias fragilizadas economicamente da América Latina.
A análise sobre o que se passa contra o Brasil e a Venezuela hoje não faz nem fará qualquer sentido se retirarmos o petróleo, sobretudo as reservas futuras e a tecnologia do Pré-Sal, de seu diagnóstico.
Também vivemos, nos EUA, na Europa e no Oriente Médio, um quadro de tensão, instabilidade crescente e de avanço de forças autoritárias e obscurantistas cujos precedentes menos remotos também estão em fins dos anos 70.
A grande diferença talvez resida na simultaneidade e na dinâmica interna das comunicações e da consolidação de dispositivos democráticos e intelectuais, disponíveis hoje de maneira incomparável aos processos de fechamento passados.
Não será tampouco esclarecido o escopo do atual golpe sem um olhar atento para a debilidade da nossa democracia.
Esta fragilidade se tornou evidente diante de dois grandes mercados dominantes e sem o menor controle democrático, de maneira que seguem desregulados, como fossem verdadeiros mercados-sombra. Vem daí o maior ataque a nossa democracia.
Trata-se de dois mercados cuja regulamentação segue adiada e menosprezada, inclusive pelas forças de esquerda, até há pouco cúmplices ou reféns das chantagens produzidas pelo jogo deles característico: o financiamento eleitoral e o mercado de informações.
Segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral, a eleição presidencial de 2014, da qual Dilma Rousseff saiu vitoriosa e reeleita com mais de 54 milhões de votos ora anulados pelo golpe, custou mais de 500 milhões de reais declarados.
Este é um valor que parece revelar um grande desafio para a democracia brasileira: em primeiro lugar, é preciso questionar se há e por que há e haveria a necessidade de uma campanha eleitoral com custo tão elevado.
Em segundo, se este custo não deriva da fragilidade da consciência democrática e da ausência de uma cultura de disputa aberta por interesses e poder.
Em terceiro lugar, cabe interrogarmos por que os governos democráticos que obtiveram, e quando obtiveram, maiorias parlamentares, não se dedicaram a regulamentar e a disciplinar (oferecer um teto de gastos de campanha, por exemplo), quando tiveram força para fazê-lo.
Há outras questões, é certo, mas estas dariam início a uma discussão democrática.
O segundo mercado-sombra é o da informação, isto é, da mídia.
No Brasil, não há, rigorosamente, mercado de informações. Há um peculiar e pré-moderno sistema oligárquico-familiar, que veicula e advoga um ideário a um só tempo escravocrata e ultraliberal, e que se constituiu no rastro da última ditadura, como é o caso da Rede Globo e da Rede Brasil Sul, paradigmaticamente.
São sete famílias que comandam as pautas, que igualam manchetes, que detêm televisões, jornais, rádios e agências de notícias que não respondem a ninguém, que mal tributam (quando não sonegam) e que constituíram um véu de ignorância e ódio racista contra o que é democrático, popular e institucional.
Esses dois mercados-sombra são denunciados, analisados, diagnosticados e comentados nos textos desta coletânea.
E a sua consideração atravessa as análises de sobreviventes da última ditadura, professores universitários, pesquisadores de renome, brasilianistas, juristas, publicistas e políticos portadores de um olhar externo sobre o estado das artes sombrias que ameaçam a nossa democracia.
Esses mercados sombra permitiram que os valores da democracia sempre fossem depreciados e mesmo ridicularizados e que os valores do ultra individualismo e do ultra liberalismo financeiro fossem tomados como medida do que o Brasil merece.
Esses valores, finalmente, penetraram de tal maneira as externalidades da vida intelectual de burocratas e jusnaturalistas investidos de funções legais, que passaram a circular livremente, como detivessem autonomia e pudessem vigorar a despeito de nossa ordem constitucional.
E assim o país assiste a um ataque sem precedentes não apenas ao que é democrático e legítimo historicamente, como à ideia elementar de república, às prerrogativas das separações de poderes, ao artigo quinto da constituição.
Assim é que a atual força de ocupação usurpadora do Brasil evidencia que as oligarquias do país abdicaram do processo eleitoral e anularam o sufrágio como critério último de legitimação.
A sua agenda, para se realizar, depende da regressão de nossa democracia a níveis sem precedentes ao menos há quatro gerações. E a reinstalação do Gabinete de Segurança Institucional, o soi disant Plano Nacional de Inteligência, bem como a figuração da força de ocupação do ministério da justiça do golpe, apontam para a repressão instalada e coordenada, nacionalmente, a partir do palácio do planalto e do executivo federal.
Destruíram o processo penal, arregimentaram direito material para a lide processual e invadiram, ilegitimamente, as esferas de exercício e controle da vida institucional do país.
É por isso que documentar a razão por que resistimos tem um sentido histórico.
Nos dias que antecedem à consumação do golpe em curso, que o dão como irreversível, cabe-nos lembrar, nesta oportunidade, da razão por que temos razão em resistir.
O Brasil ameaçado pelo atual golpe é um país que exterminou a fome endêmica e promoveu a maior ascensão social da história da humanidade no intervalo de tempo em que o fez.
É o país que retirou da miséria e da pobreza o equivalente à população da França, num intervalo de 10 anos, talvez menos.
E o fez ampliando investimentos em pesquisa, em políticas de cultura, em aumento significativo de vagas nas universidades, em ampliação dos campi universitários, em oferta de cursos técnicos e no maior programa de habitação popular da história do país.
É o país que reconheceu o racismo e incluiu políticas de enfrentamento e combate ao racismo no seu arcabouço republicano.
E é o país que, apesar de seu machismo atroz, repulsivo e ecumênico, em todas as forças políticas, elegeu e reelegeu uma mulher, para o mais alto cargo da república, ora ameaçada.
Trata-se de um país continental que é muito mais rico, desenvolvido, dinâmico, letrado, com mais doutores, mais médicos, mais alfabetizados e mais organizados, politicamente, do que o país golpeado pela última ditadura.
Somos mais ricos, temos mais ativos, mais autoconsciência e organização política e popular do que tínhamos em 1964.
Ao contrário do que se passou, então, não contamos com uma promessa de país, somente.
Contamos com uma experiência de transformação, sem precedentes, na história deste país tão injusto com os seus desvalidos.
Chegará o tempo em que a luta por este passado será vencida por nós, os irredentos e resistentes, representados nesta coletânea e na trilogia de coletâneas.
Chegará o tempo em que a medida da mudança, segundo o antes e o depois, como nos lembra Aristóteles, ficará clara.
Aí, então, chegará o tempo de Dilma Rousseff, na história da reconquista da democracia, o princípio e o fim que nos move.
Até lá, e nesse caminho, seguiremos do lado certo da história, como ela, Dilma, não para de nos dizer. Uma boa leitura.
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