BR – Trans
Por Otávio Augusto Winck Nunes[*]
Ao longo do tempo, por motivos pouco claros, é verdade, escolheu-se duas palavras para nos referirmos a diferença sexual: homem e mulher. Dependentes da linguagem que somos, precisamos nomear o mundo que nos rodeia. Aparentemente, achamos que assim teríamos equacionado esse grande imbroglio humano. Pois é, nos enganamos com isso. E, esse engano, perdura. Achamos que classificando de um lado homem e do outro lado mulher, essas duas palavras recobririam todas as diferenças que dizem respeito ao sexo, principalmente por ser uma diferença que se assenta sobre a matriz biológica, que tem um quê de inquestionável. Mas, não. Há um aspecto, diria um impossível, um inapreensível, algo que não conseguimos precisar, que escapa a toda tentativa de, através dessas duas palavras, abarcar tudo o que diz respeito ao sexo.
Viviany Beloboni[*] |
Claro, isso sempre interrogou aos homens e as mulheres. Não é de agora que essas interrogacōes apareceram. Na história humana a religião tentou apoderar-se desse questionamento desde sempre, amparando-se fortemente na questão biológica para justificar posicionamentos morais, pouco defensáveis, na tentativa de produzir um silenciamento sobre o sexo, com o objetivo claro de desqualificar o que diz respeito ao desejo, tentando normativizar o sexo pela via da natureza.
Ou seja, sexo é para procriação, e a diferença dos sexos serve para justificar o encontro de dois corpos para fazer um.
Mas, nem a biologia, nem a religião foram capazes de responder ao mal-estar, e a angústia que a questão sexual nos coloca. Esse elemento que muitas vezes aparece como um estranho em nosso corpo.
Há um pouco mais de cem anos, a partir de Freud, que começou-se a sistematizar uma outra concepção, uma outra abordagem para o que diz respeito ao sexo. E foi muito perspicaz na medida em que postula que ninguém nasce homem ou mulher, que é necessário um enorme esforço psíquico para que possamos nos posicionar frente ao sexo, frente ao corpo, e às possibilidades que ele nos provoca. Não dispensou a questão anatômica, obviamente, como um dos elementos presentes mas não estabeleceu uma equivalência entre a biologia do corpo e o sexual. É claro que isso não impede que a anatomia seja um orientador, um vetor, mas é a incidência do psíquico sobre o corpo biológico que dá uma extensão maior a questão do sexo.
E a questão tem uma complexidade maior quando a partir de um determinado momento nós apercebemos que ser homem ou mulher precisa ser tomado sempre em relação ao outro, onde a inclusão de uma alteridade, de alguma maneira, produz uma alteracao na nossa próprio posição.
Pensei brevemente nessas quetões, ao assistir, recentemente, no Rio de Janeiro, a montagem do espetáculo BR -TRANS. Espetáculo que já passou por estas paragens, percorreu o Brasil, e vem fazendo muito sucesso de público e de crítica, tendo recebido já diversos prêmios por onde tem sido apresentado. E não seria demais que voltase ao cartaz por aqui.
Nele o ator cearense Silvero Pereira, dirigido pela gaúcha Jezebel de Carli, aparece como Gisele Almodovar, seu nome de guerra. Gisele Almodovar encarna muitos e muitas, homens e mulheres, com diferentes histórias reais ou ficcionais que transitam pelo universo que une sexo e violência. Homens e mulheres que, justamente, ao extrapolar o limite dado por cada uma dessas palavras são, muitas vezes, relegados ao submundo da violência, incluíndo aí crimes, assassinatos, etc.
Ela tem tantas hesitações, dúvidas e angústias quanto muitos que se dizem bem seguros da sua posição. O grande problema é que na relação com o outro, com a alteridade, as hesitações e dúvidas provocam no semelhante reações de violência, recurso mais comum do que se desejaria nesse mundo de excessos em que vivemos.
Ao romper a barreira menos extensa, a biológica, ou seja, produzir um alargamento do que seria relativo ao campo sexual, para que, de alguma maneira, a anatomia não formate o desejo, a violência aparece como recurso que tenta controlar aquilo que é incontrolável em si mesmo, por isso, aquele que despertou o desejo precisa ser eliminado.
É essa a realidade com que muitos vivem e morrem, e não deixa de ser impressionante o tanto que o questionamento com relação ao sexual, o questionamento do que aparece no campo do desejo, na sua expresão do sexo, ainda provoque tantos dissabores.
Os números de casos de violência provocados por questões que dizem respeito ao sexo, no nosso maltratado país, são assustadores, tanto de mulheres, de homens que são atacados por não se ajustarem a uma pretensa normalidade.
Por isso, momentos em que através da arte somos levados à discussão, ao questionamento das diferenças e seus efeitos na sociedade daquilo que encontramos diariamente são muito oportunos, pois nos dão a chance de nos interrogar sobre o instituído, e de vislumbrarmos novas possibilidades de incluirmos o que nos aparece como estranho, mas que está, inúmeras vezes, muito próximo de nós.
* Viviany Beleboni teria machucado o rosto e quebrado os dentes após ser espancada por cinco homens; no ano passado, a modelo já havia sido vítima de agressão
* É psicanalista, membro da Appoa.
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