Por Katarina Peixoto: A representação do que não é trivial: Dilma
Leiam este belíssimo texto, e vocês entenderão que para pessoas, especiais, como Dilma não existe derrota e sim obstáculos a serem vencidos, portanto a luta só está começando. Sigamos em frente.....
Ela erra e diz que erra, não tem medo, não opera acuada, não cala, não tergiversa. Também não tira onda nem tenta imitar ninguém. A sua imitação, se é que há, é de outra ordem: ela tem compaixão, aquilo de viver junto, sentir junto, perceber junto. Mas ela tem mais: ela leva a sério aquilo que sabe, quer dizer, ela age de acordo com o que sabe. Pode estar na frente de empresários e líderes da confraria do G7 (que tem países como a Itália, logo, é confraria), de militantes dos movimentos sociais, de recicladores de papel, é a mesma, diz as mesmíssimas coisas e não fala de si, nem quando, aparentemente, está falando de si.
Depois de 13 horas de trabalho ininterrupto o que tenho a dizer é que eu nunca pensei que veria o que vi, hoje à noite. E vou logo avisando que isso amanhã não estará nos jornais, e olhem que eu vi muitos jornalistas vendo o que vi, no mesmo lugar em que eu estava. Não é incompreensão, somente, embora haja muita ignorância. Não é intolerância, somente, embora haja ódio e preconceito contra Dilma, contra o PT, contra Lula, na mídia das seis famílias.
Dilma é diferente. É uma espécime de quadro político completamente singular. Ter sido forjada por circunstâncias históricas, coisa que obviamente foi, não traduz o seu tamanho. Não explica as suas virtudes ela ter sido guerrilheira e brutalizada pelos delinquentes que deram um golpe de estado e perpetraram uma ditadura civil-militar por duas décadas no Brasil. Ela não tira onda, não faz charme, não dá passo além da perna, nem performativa, nem historicamente. É desses casos que iluminam a história, de seres capazes de pensarem, agirem e viverem de acordo com o que são. E que por isso são inteiros.
É uma figura tão sólida e consistente que eu posso discordar dela e me preocupar, angustiar mesmo, sem perder a confiança de que posso debater e enfrentar uma discussão e de que ela, frente a argumentos, não tomará decisões irracionais.
Eu estou muito cansada e a vida anda me tratando como um cão sarnento e cheio de vermes, muitas vezes, então não ando lá com muita musculatura disponível para escrever, depois de 13 horas de trabalho, mas eu preciso, agora.
Porque eu vi, hoje, pela primeira vez, ao vivo, num quadro político que chegou ao poder pela via eleitoral, numa experiência de democracia, que é uma mulher e ex-guerrilheira, a clareza sobre o sentido histórico de um projeto político. Uma clareza daquelas que a gente enxerga entre amigos, sabe aqueles, amigos, que leram o que você leu, que partilham aquelas ideias que tão poucos leram, e que é quase inexistente, na política? Daí você fica triste, pára e remedia, fica pensando que o jeito é deixar para lá e tocar o barco, que a pragmática, rasteira ou de qualidade, que seja, que o converserê todo é o que temos no momento, enfim, que tudo isso a que você se acostuma, um tanto melancolicamente, não é fato consumado, não é assunto encerrado.
Ela falou de acordos, decisões de política externa, da representação brasileira, hoje, desde 2011, na FAO, agora na OMC, tudo indica que na OEA. Falou da África, falou da SELAC, e da criação de um fundo de reservas para os BRICS. Falou da criação da Comissão Nacional da Verdade e da Lei de Transparência.
E no final, com aquele ar anti-carismático que lhe é tão extraordinariamente descritivo da solidez de caráter, afirmou algo que me encheu os olhos de tudo de novo.
"Eu tenho uma relação pessoal com o Rio Grande do Sul". Bom, ela tem, lembrou em seguida, uma relação com todos os estados do Brasil. Mas com o Rio Grande do Sul, lembrou, tem uma diferença. Ela lembrou que quando foi nomeada secretária do Olívio, o Luís Fernando Veríssimo fez um texto no qual explicava quem era quem no governo recentemente empossado, no RS (era 1999). LFV a descreveu, então, como "gaúcha de propósito". Ela disse que entendeu o duplo sentido da expressão. Que tinha aprendido, aqui, sobre o valor da teimosia e de se ter posições claras.
Então, olhou para Lula e disse mais ou menos isto: "Lula, você está lendo a biografia do Getúlio, não é? Naquele livro se pode ver muito claramente o papel do Rio Grande do Sul para o Brasil".
Daí ela olha para todos e diz, mais ou menos, o seguinte: para entender isso é preciso entender o que disse um amigo meu, da FEE, há um certo tempo: "São Paulo criou o mercado; o Rio Grande do Sul, a ideia de Estado Nacional Brasileiro".
O amigo dela é Luís Roberto Pecoits Targa. E ele escreveu, entre outras coisas, isto:http://www.fee.tche.br/sitefee/download/eeg/1/mesa_12_targa.pdf e isto:http://www.fee.tche.br/sitefee/download/jornadas/1/s10a5.pdf
Para ela, Dilma, é disso que se trata esses 10 anos de PT, no governo brasileiro. Muito erro e muitos acertos. E um acerto fundamental, fundacional: a ideia de Estado Nacional Brasileiro, sendo vivida integralmente, nela mesma, essa figura inteira.
De minha parte, até onde meus parcos conhecimentos da história do Brasil e de seu pensamento chegam, nunca na história deste país um representante político legitimamente eleito chegou ao poder com esta clareza, com esta convicção e com tamanha tranquilidade para afirmar isso.
Fiquei emocionada, de verdade. De verdade. E eu discordo tão medonhamente dela, em tanta coisa. E eu gostaria tanto que tanta coisa fosse diferente.
Mas hoje eu estava lá e vi uma ex-guerrilheira, séria, rigorosa, espirituosa, falando da Petrobrás e de infraestrutura, de Copa do Mundo e da África, do BNDES e do quão não trivial é um programa como o Bolsa Família, enunciando a sua referência, fincando uma trajetória histórica em outra época, comprometendo-se historicamente, sem adventismo, nem saudosismo (nunca!).
Não há isso no Brasil. Não há essa grandeza na e pela história, simplesmente não há. Não há democraticamente, ao menos, como há com ela e por meio dela. Não há assim, refletida e explicitamente. Orgulhosamente, eu diria.
Eu já vi muita gente grande falar. Já estive perto de gigantes. Mas hoje eu tive aquela percepção moderna que constituiu este adjetivo: eu me senti representada, democraticamente, cheia de diferenças, de coisas engasgadas. Mas representada. Representada.
Não é o BF que não é trivial. É ela.
Em tempo: Agradeço a Katarina, pois o escreveu já algum tempo, resolvendo compartilhar, agora, conosco. Parabéns, pelo texto, e muito obrigado.
Katarina Peixoto, Advogada, e doutora em filosofia , pela UfRGS
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