Democracia e Participação: A guerra das ideias: a disputa das narrativas
A agenda imposta pelos interesses do sistema financeiro e das grandes corporações busca ocupar o centro do debate político com temas que não questionam sua hegemonia e seus interesses,
por Silvio Caccia Bava[*]
Foto: Fernando Frasão/ Agência Brasil |
Essas questões estão interditadas ao crivo do debate público e democrático. Não interessa a discussão dessas opções sobre o modelo de desenvolvimento brasileiro e quem se beneficia dele. A agenda imposta pelos interesses do sistema financeiro e das grandes corporações busca ocupar o centro do debate político com temas que não questionam sua hegemonia e seus interesses, e atacam o governo e a capacidade reguladora do Estado democrático.
O que ocupa as páginas centrais dos principais jornais do país? A acusação da incapacidade gerencial do governo, a corrupção e o aparelhamento da máquina do Estado por interesses partidários, o “desperdício” de recursos públicos com as políticas sociais, a violência e a criminalidade, o anúncio de uma crise sem fim que prejudica a todos, a criminalização dos protestos e movimentos sociais.
Recentes pesquisas de opinião mostram que a campanha midiática atinge seus objetivos e a agenda das elites ganha a adesão da opinião pública. A mais recente pesquisa Datafolha (nov. 2015) coloca no topo das preocupações da população, pela primeira vez, o tema da corrupção, com 34% dos respondentes considerando o mais grave problema do Brasil; entre os mais ricos, esse índice chega a 49%.
A manufatura do consenso, nos termos de Noam Chomsky, neste caso, é a capacidade de as elites convencerem boa parte da sociedade de que o principal problema do Brasil é a corrupção, e não os altíssimos juros pagos com o serviço da dívida pública. Direcionar a preocupação da população para o tema da corrupção serve para ocultar que pouco menos da metade dos impostos arrecadados pelo governo federal vai para o pagamento dos juros da dívida pública, impondo cortes nos orçamentos da saúde e da educação, entre outros.
Essa habilidade com que as elites e as classes médias altas dominam o que Chomsky chama de “o mercado das ideias” permite a esses estratos sociais influenciarem, ou mesmo moldarem, a percepção da sociedade como um todo sobre a realidade política e limitarem as possibilidades de mudanças políticas e sociais.
Vários importantes analistas políticos, como Jacques Rancière, identificam que o essencial para a construção da hegemonia dos interesses do capital é ter o poder de determinar a agenda. Se a agenda puder ser limitada às ambiguidades (como a má administração), aos abusos e fracassos (como a corrupção), e à violência e criminalidade (entendidas como transgressões), então seus interesses estão preservados e seus opositores, desarmados. Trata-se de interditar o debate, barrar o dissenso e ocultar os fatos indesejados, enquanto se estimula um vivo debate sobre temas que estão no âmbito dos limites permitidos.
Impor ao conjunto da sociedade uma visão de mundo, uma interpretação do real, é uma tarefa complexa e dinâmica que busca tornar a subordinação do conjunto da sociedade interiorizada e imperceptível. Para isso, as formas de controle político – e as narrativas que o sustentam – devem ser continuamente renovadas, recriadas, defendidas e modificadas, capazes de responder às pressões que questionam e desafiam sua dominação[i].
Podemos detectar essa ofensiva ideológica neoliberal a partir dos anos 1990, iniciativa que se originou de organismos multilaterais, tendo à frente o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, um think tank criado por 34 dos países mais ricos e que trabalha em defesa do livre mercado.
Atentos às manifestações sociais crescentes de críticas ao processo de globalização dos mercados e ao aumento da desigualdade e da pobreza no mundo, manifestações essas que ganharam maior importância a partir dos protestos em Seattle, em 1999, quando da reunião da Organização Mundial do Comércio, e a partir do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), em 2001, esses organismos multilaterais buscaram processar tais críticas e reelaborar continuamente seus discursos para absorvê-las e neutralizá-las[ii]. Não é casual que o Banco Mundial tenha mudado seu objetivo maior, antes definido como de apoio ao desenvolvimento, depois reciclado para o combate à pobreza, agora trabalhando o tema da desigualdade e da sustentabilidade ambiental.
A globalização desses novos discursos foi um processo que envolveu importantes instituições que os legitimaram. Considerando os relatórios anuais do Banco Mundial, o “World Development Report”, as agências das Nações Unidas, em especial o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, incorporaram o discurso daquela entidade. E os relatórios anuais dessas agências passaram também a ser referência para centros de produção do pensamento conservador, como a London School of Economics (Inglaterra), a Harvard Kennedy School of Government (Estados Unidos), a Fondation Saint-Simon (França), a Deutsche Bank Fondation (Alemanha), entre outros.
Com a legitimação desse importante conjunto de instituições, a narrativa neoliberal da conjuntura deu sustentação para que governos nacionais viessem a pôr em prática as políticas sugeridas, com destaque para as propostas elaboradas no Consenso de Washington. É o que justifica neste momento os sacrifícios impostos a países como Portugal, Grécia, Espanha e Itália, para que paguem suas dívidas públicas em mãos de bancos privados internacionais. Os mesmos ajustes fiscais e reformas estruturais impostos à América Latina nos anos 1980 são propostos a esses países como o amargo remédio para sair da crise.
É com base nessa produção teórica e política conservadora que se abre um novo campo de disputas e começa a batalha da comunicação: a tradução dessas narrativas para professores e estudantes das universidades, para formadores de opinião e para o público em geral. Jornais, revistas e televisão levam essa visão de mundo, simplificada, para a opinião pública.
Há uma importante mobilização de recursos intelectuais e financeiros para construir uma narrativa, ou narrativas, que são “de uma temporalidade una, única, linear, contínua, progressiva e despojada de alternativas históricas reais”.[iii]
Essa desigualdade na guerra das ideias em favor dos interesses do capital só tende a aumentar no século XXI. Para responder às críticas dirigidas à globalização financeira, ao aumento da desigualdade e da pobreza, e à degradação do meio ambiente, os setores neoliberais, além dos organismos já citados, dotaram-se de novos e poderosos instrumentos de produção de conhecimentos e de intervenção social e política: os think tanks. São centros de elaboração teórica, de pesquisa aplicada, de promoção de debates, de difusão e disseminação de ideias, propostas e políticas públicas. Disputam as ideias na sociedade, servem de conselheiros para os governos reorientarem suas políticas e em alguns casos participam da desestabilização de governos progressistas. Eles respondem à necessidade de alimentar a guerra das ideias em nível regional e nacional, tratando as agendas dos conflitos no território.
Globalmente os think tanks existem há algum tempo. Os primeiros surgiram depois da Segunda Guerra Mundial, mas multiplicaram-se depois, na esteira das crises mundiais, e ganharam impulso como uma reação conservadora às crescentes manifestações da cidadania contra a globalização financeira e a submissão das sociedades às lógicas dos mercados na última década do século XX[iv].
Na América Latina assistimos ao seu crescimento como uma reação à eleição de governos progressistas em vários importantes países do continente e à proposta de construção do “socialismo do século XXI”, expressa por Chávez, então presidente da Venezuela, no FSM de 2005. Eles surgiram também em função de uma avaliação de que as universidades públicas teriam se tornado centros de produção de conhecimento com uma perspectiva progressista e de esquerda.
No Brasil, esse fenômeno também ocorreu. Embora não se tenha uma avaliação do número de entidades nem do impacto social e político de seus trabalhos, vários think tanks de defesa do livre mercado passaram a atuar em consonância com diversas instituições, como Sociedade Mont Pèlerin, CATO Institute, Heritage Foundation, Atlas Foundation, Fraser Institute, Liberty Fund e Institute of Economic Affairs, que estão entre as mais importantes referências internacionais do pensamento neoliberal.
Na esteira do Instituto Liberal (IL), criado no Rio de Janeiro em 1983, nos anos mais recentes surgiram institutos análogos em capitais de seis estados brasileiros e no Distrito Federal. O IL constituiu núcleos municipais no interior de diferentes estados, articulados aos respectivos institutos das capitais estaduais, e opera com um princípio federativo.
Em 2004, o IL do Rio Grande do Sul transformou-se no Instituto Liberdade, mantendo até hoje seus vínculos com o Instituto Liberal. Localizado em Porto Alegre, o Instituto Liberdade integra uma rede de quarenta think tanks distribuídos pela América Latina e o Caribe. Entre seus curadores estão luminares do pensamento neoliberal militante, como Milton Friedman, Friedrich Hayek e outros integrantes da Sociedade Mont Pèlerin[LM1] , com sede na Suíça.
A partir de 2007, o leque de think tanks conservadores se ampliou com a criação de diversos outros institutos, como o Instituto Mises Brasil, o Instituto de Formação de Líderes, o Instituto Millenium, o Instituto Liberal do Nordeste, o Instituto Ordem Livre e o Estudantes pela Liberdade, todos parceiros institucionais do IL.
Financiado, entre outros, pelos irmãos Koch, donos das Koch Industries, nos Estados Unidos, o Estudantes para a Liberdade, por exemplo, é a expressão brasileira de uma organização internacional que tem dezenas de milhares de integrantes – estudantes já formados, estudantes universitários e secundaristas – espalhados pelo mundo. O Students for Liberty, a organização internacional, declara ter 1.773 grupos ativos de estudantes distribuídos por todos os continentes.
A construção da hegemonia não é apenas uma guerra de ideias, ela requer centros públicos e privados de produção de conhecimento, de análise da conjuntura, de produção de inovações, que absorvam e processem o mapa dos conflitos e trabalhem para ressignificá-los. O intuito é criar “um conjunto de dispositivos práticos com o objetivo de anular a realidade desta luta de classes [...] é tomar todos os temas e projetos das oposições e invertê-los ponto por ponto, apresentando essa inversão como um projeto generalizador não só para a classe dominante, mas para toda a Nação. A partir desse projeto, define-se[LM2] o que é o Estado e quem deve dirigi-lo”.[v]
Esses conhecimentos produzidos alimentam a batalha da comunicação. Revistas e grandes jornais são a principal frente de combate, buscando sensibilizar os formadores de opinião. A TV se encarrega de popularizar os argumentos, criando versões simplificadas que atingem toda a população. Nunca é demais lembrar que, embora os canais de TV sejam concessões públicas, os grandes grupos de comunicação são empresas privadas estreitamente vinculadas ao pensamento dominante, conservador e neoliberal.
Enfrentar o poder das oligarquias financeiras, das grandes empresas e de outras elites dos negócios – e questionar o que elas definem por “interesse nacional” – é custoso e difícil. Requer “desvendar a história como luta de classes”, fazer a análise crítica de alto nível dos acontecimentos e políticas, produzir uma agenda positiva e inovadora, e desenvolver uma capacidade de comunicação com a sociedade que, em geral, as oposições precisam conquistar. As eleições de governos progressistas na América Latina, e agora em alguns países da Europa, demonstram que isso é possível, mas mesmo assim, mais recentemente, enfrentando o contínuo ataque da agenda conservadora, esses governos perdem a popularidade e o apoio social.
Organizando a resistência
Não é a pobreza e a necessidade apenas que mobilizam os despossuídos, é também a indignação em face da desigualdade; é a compreensão de que a desigualdade e a pobreza não são um fenômeno natural, são produzidas por políticas públicas, são políticas praticadas pelas classes dominantes que beneficiam apenas as elites; é também a crença em uma utopia de um mundo melhor.
Vivemos em um cenário novo, no qual a democracia foi capturada pelo poder econômico e as elites econômicas querem rasgar a Constituição de 1988, eliminar os direitos sociais por ela assegurados. O Estado transita de um Estado democrático para um Estado de controle da sociedade. E esses processos têm uma dimensão global, não ocorrem só no Brasil. Há um ataque também aos valores da democracia liberal. A lei de combate ao terrorismo, no Congresso para aprovação, ataca as liberdades civis, coloca todos sob suspeita, dá ao Estado uma enorme margem de arbítrio para criminalizar quem ele queira, para perseguir politicamente seus opositores. Não vivemos mais uma democracia, mas ainda não sabemos que nome dar a esta nova ordem política.[vi]
Este cenário, conservador e reacionário, é dominante, mas não é monolítico. E, da mesma forma como as eleições presidenciais levaram ao governo forças populares em muitos países da América Latina nas duas décadas passadas, novas mobilizações sociais podem mudar essa correlação de forças. São o que Cândido Grzybowski chama de “os movimentos irresistíveis”.
Nunca é demais lembrar que foram as eleições que levaram as forças populares aos governos. E as eleições são parte fundamental da democracia liberal, assim como a liberdade de expressão e protesto, o debate público, a livre organização social e política dos cidadãos.
O arcabouço institucional da democracia liberal e seu funcionamento efetivo – as eleições, a existência de partidos políticos, a autonomia dos poderes – são condições para o avanço das lutas sociais. E é a pressão social que pode tornar efetivos os mecanismos democráticos de negociação dos conflitos sociais. A reapropriação pelos cidadãos do seu sistema político, radicalizando a democracia e socializando poder, é uma proposta que parte da existência da democracia liberal e luta para transformá-la.
“Somente a partir do momento em que o discurso democrático esteja disponível para articular as diversas formas de resistência à subordinação é que existirão as condições que tornam possível a luta contra os diferentes tipos de desigualdades.”[vii]
Politizar o social, isto é, transformar as demandas sociais em propostas de políticas públicas, é, portanto, um dos dois grandes desafios que se colocam para os movimentos sociais e as instituições que os apoiam – sindicatos, associações, ONGs, entidades, redes e fóruns de vários tipos. A descoberta de que os problemas vividos na vida privada são problemas coletivos e requerem soluções coletivas é crucial. É a passagem da esfera da vida privada para a esfera da vida pública. Emprego, saúde, educação, transportes coletivos, moradia, segurança e recentemente o fornecimento de água são demandas sociais que se politizaram e abrem espaço para mobilizações sociais, como as recentes greves contra demissões, as ocupações de escolas públicas e as manifestações contra o aumento das tarifas de transportes.
Junho de 2013 é um marco da politização do social. Naquele momento houve uma solidariedade de amplos setores sociais com o movimento pela redução das tarifas de transportes, que se deu principalmente em reação à violenta repressão policial que se abateu sobre aqueles que, nas ruas, defendiam seu direito à mobilidade. O direito de manifestação, a legitimidade de o cidadão ir às ruas mostrando-se contra o aumento das tarifas, foi o elemento unificador que levou milhões de brasileiros e brasileiras às ruas para protestar e reafirmar esse direito. O Congresso Nacional foi cercado, assim como o Palácio do Planalto; milhões de pessoas saíram às ruas em dezenas de cidades brasileiras. A luta pela redução das tarifas se transformou em uma luta contra a mercantilização dos serviços públicos, em defesa dos bens públicos comuns, da democracia, da livre manifestação.
No entanto, essas mobilizações enfrentam um Estado repressor, capturado pelos interesses do capital, que nega o diálogo, que não se dispõe a negociar e a fazer concessões, que criminaliza e combate os movimentos sociais, que não se dispõe, ou não consegue, promover uma distribuição mais equitativa da riqueza social. Sem isentar os demais entes da federação, são especialmente os governos estaduais, que controlam a polícia militar, a expressão maior do autoritarismo e da repressão.
As conquistas sociais de 2013, quando dezenas de governos municipais voltaram atrás no aumento das tarifas, são uma vitória pontual. O aumento nas tarifas de transportes públicos praticado recentemente levou os jovens e despossuídos novamente às ruas, para um novo momento de enfrentamento.
É evidente que, com o sistema político atual e a correlação de forças que se estabeleceu nas últimas eleições, as possibilidades de fazer vingar uma agenda de defesa de direitos são muito limitadas. Mais de 90% do atual Congresso Nacional foi financiado, em suas campanhas eleitorais, por grandes grupos empresariais que asseguram, dessa forma, a predominância de seus interesses no âmbito da política institucional. O sistema político – partidos e Parlamento – está capturado pelo poder econômico.
Socializar a política é o segundo grande desafio da cidadania. Trata-se da reapropriação da política pelos cidadãos e cidadãs. A política não é só para os políticos, é para todos os cidadãos, que são portadores de direitos e querem participação nas decisões que os afetam.
Em 2014, uma vasta rede de entidades da sociedade civil organizou uma consulta popular nacional sobre a necessidade de uma reforma política, com uma Constituinte independente, isto é, sem a participação do atual Congresso, com delegados eleitos diretamente pela população e exclusivamente para esse fim. O resultado foi que 7,46 milhões de brasileiros votaram e 97% se expressaram a favor dessa iniciativa. É mais que a população do Paraguai, do Uruguai e de muitos outros países. A imprensa abafou a iniciativa e o sistema político ignorou essa manifestação cidadã.
Junho de 2013, a consulta popular pela reforma política, as greves pela reintegração de demitidos na indústria, a recente marcha das jovens mulheres negras em Brasília, a greve dos professores do Paraná, as ocupações urbanas, o movimento das mulheres camponesas e inúmeras outras importantes mobilizações sociais por todo o país, que a imprensa invisibiliza, mostram a riqueza da organização social brasileira. Esse capital social, no sentido de Pierre Bourdieu, é enorme. É uma conquista que começa a ser construída na luta contra a ditadura e continua se fortalecendo neste novo cenário mais democrático.
Novos e velhos atores se empenham na construção do espaço público, em afirmar a legitimidade de ir às ruas e transformar problemas sociais em questões políticas. E a primeira das questões políticas é assegurar e ampliar a democracia, garantir os direitos dos que não têm para disputar os recursos públicos e o sentido do desenvolvimento.
Houve um momento, em 2002, em que toda essa força social canalizou sua vontade para eleger um governo popular. E elegeu. E depositou nele as expectativas e um voto de confiança de que ele iria operar as mudanças. Como era de esperar, muitos dos melhores quadros das entidades da sociedade civil foram assumir cargos no governo. As entidades se fragilizaram e, de certa forma, por terem seus próprios quadros dentro do governo, abriram mão da crítica, da análise, da produção de conhecimentos. Essa paralisia da esquerda, que, comprometida com o governo, abriu mão da crítica, deu espaço para a onda conservadora, a qual avançou sobre um terreno sem resistência.
A análise da conjuntura feita, por exemplo, por Vladimir Safatle, não atribui a situação atual apenas à competência dos setores conservadores. Ele levanta a questão: “Seria interessante se perguntar se o fenômeno que vemos hoje é realmente uma onda conservadora ou simplesmente a decomposição radical do que poderíamos chamar de campo das esquerdas”.[viii] Segundo Chico de Oliveira, “assistimos à transformação gradativa da social-democracia de parteira da transformação para o socialismo em elemento de funcionalização do capital”[ix].
Esse questionamento não se funda na ausência de movimentos sociais, que eclodem por toda parte. São movimentos contra a expulsão pelo agronegócio dos agricultores familiares, contra a discriminação e o genocídio da juventude negra, contra o extermínio das populações indígenas, contra a violência e a discriminação sofridas pelas mulheres, contra a degradação ambiental, contra a gentrificação das cidades e o apartheid imposto aos pobres, e muitos outros. O questionamento diz respeito à incapacidade de as esquerdas realizarem a tarefa da crítica ao modelo de desenvolvimento e às políticas atuais e oferecerem um projeto de sociedade alternativo ao neoliberal, uma nova agenda de debates públicos fundada em uma utopia capaz de galvanizar corações e mentes, “pensar em movimentos contrários a essa forma de polarização entre a riqueza e a pobreza, a essa forma de destituição da fala e do espaço da política, que nos permitam reafirmar um projeto de sociedade com equidade, justiça, democracia, com novos paradigmas”[x].
A tarefa da crítica
Em setembro de 2015 foi criada a Frente Brasil Popular (FBP). Representantes de movimentos populares, sindicais, partidos políticos e pastorais, indígenas e quilombolas, negros e negras, LGBT, mulheres e juventude se uniram “para defender nossos direitos e aspirações, para defender a democracia e outra política econômica, para defender a soberania nacional e a integração regional, para defender transformações profundas em nosso país”[xi].
Segundo o Manifesto de fundação da FBP, essa iniciativa representa, acima de tudo, uma tentativa da esquerda de responder, da forma mais unitária possível, à ofensiva conservadora em curso.
Seus propósitos estão sintetizados em cinco pontos, ainda segundo seu Manifesto:
“Combater a política econômica adotada pelo governo e o sequestro da agenda governamental pelos interesses do capital financeiro.
Defender os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras: melhorias das condições de vida, emprego, salário, aposentadoria, moradia, saúde, educação, terra e transporte público.
Ampliar a democracia e a participação popular nas decisões sobre o presente e o futuro de nosso país.
Promover reformas estruturais, para construir um projeto nacional de desenvolvimento democrático e popular: reforma do Estado, reforma política, reforma do Poder Judiciário, reforma na segurança pública com a desmilitarização das polícias militares, democratização dos meios de comunicação e da cultura, reforma urbana, reforma agrária, consolidação e universalização do Sistema Único de Saúde, reforma educacional e reforma tributária!
Defender a soberania nacional. O povo é o dono das riquezas naturais, que não podem ser entregues às transnacionais e seus sócios!”.
Cada um dos pontos dessa agenda abre um campo de disputas e a necessidade de elaboração da crítica às políticas atuais. A capacidade de articulação e mobilização dos movimentos sociais e entidades integrantes da FBP, assim como de ampliação de sua base social, depende da produção de conhecimentos, da análise crítica da realidade atual e da construção de novas narrativas que desvendem a luta de classes em cada caso concreto e apontem novos caminhos para a solução dos problemas.
E é justamente ao fazer frente a essas disputas que esse campo político popular e democrático encontra importantes limites e não dá conta de enfrentar a onda conservadora. Há um reconhecimento por parte de muitos analistas de uma “carência acentuada de instituições ou think tanks que cumpram o papel de reunir as informações e as ideias indispensáveis para o estudo e a escolha de alternativas”.[xii]
No entanto, a construção de um projeto alternativo não é uma tarefa acadêmica, apenas para intelectuais. É um processo de articulação de lutas e de demandas, que possam pôr em alianças, como propõe a FBP, distintos atores coletivos para se complementarem na formação de uma frente política portadora de um movimento de resistência à destituição de direitos e um projeto alternativo de sociedade.
Há experiências interessantes que demonstram a possibilidade e a eficácia dessas iniciativas de articulação de distintos atores em coletivos para a defesa de direitos. Um dos importantes exemplos atuais é a Plataforma de Políticas Sociais[xiii], uma rede constituída há cerca de dois anos que hoje soma cerca de trezentos intelectuais progressistas engajados na tarefa de elaborar uma crítica ao modelo de desenvolvimento e às políticas públicas derivadas dele. São profissionais que atuam em mais de uma centena de universidades, centros de pesquisa, órgãos do governo, entidades da sociedade civil e núcleos do movimento social. Além de contar com a contribuição de dezenas de destacados especialistas internacionais.
Nas palavras da Plataforma, “estamos tentando pavimentar o difícil percurso de construir uma frente de debates aberta e democrática voltada para o intercâmbio de ideias sobre a superação do secular atraso social do Brasil, reunindo e consolidando ideias, propostas e alianças no campo progressista. A Plataforma convive com a pluralidade de ideias políticas e acadêmicas e não exerce veto de nenhuma natureza. Nossa atuação visa fortalecer alianças com os movimentos sociais e organizações da sociedade civil, em sua luta por uma sociedade mais justa e inclusiva”.
Como um esforço coletivo liderado pela Fundação Perseu Abramo, no qual a Plataforma também esteve envolvida, juntamente com outras organizações e articulações, como Brasil Debate, Le Monde Diplomatique Brasil, Fórum 21, Rede Desenvolvimentista, Centro Celso Furtado, foi elaborada uma crítica ao ajuste fiscal e à narrativa que acabou por impor um terrorismo na avaliação da conjuntura econômica que cobrava o ajuste sem que houvesse necessidade dele. O documento “Por um Brasil justo e democrático”, que já foi lançado e debatido em mais de quinze capitais brasileiras, é um exemplo de produção de conhecimento e de construção de uma narrativa que dá combate ao discurso neoliberal, e apresenta alternativas de desenvolvimento[xiv].
A Plataforma é uma das iniciativas mais recentes, mas existem organizações da sociedade civil, como o Ibase, no Rio de Janeiro, que trabalham no mesmo sentido há muitos anos. Várias dessas entidades se reúnem na Associação Brasileira de ONGs, a Abong, que organiza um seminário que antecede sua assembleia geral, em março, com o tema de como organizar a resistência para a defesa de direitos e a defesa dos bens comuns.
“O Ibase se pensa mais como ator na sociedade civil, autônomo e público, do que como instituição. Seu compromisso intelectual e prático fundante e sempre renovado é pela radicalização da democracia como modo de vida em sociedade. Define sua missão como de uma organização de cidadania ativa, que produz e formula conhecimentos, análises, questões e propostas como argumentos para a ação democrática transformadora. Seu campo prioritário de ação é o espaço público. Analisar e propor, debater e agir, trabalhar em rede e construir fóruns coletivos, tudo visando movimentos políticos e culturais irresistíveis, que tenham os direitos, a cidadania, a democracia e a sustentabilidade socioambiental como suas agendas, é o rumo que orienta o Ibase desde a sua fundação.”[xv]
Os esforços de articulação desse capital social existente na sociedade brasileira têm ainda mais razão de ser por conta da desconstrução programática do Partido dos Trabalhadores, que nas décadas de 1980 e 1990 foi o espaço de confluência e articulação desse campo político popular e democrático.
A inflexão neoliberal do atual governo Dilma, capturado pelo poder econômico depois de ter ganho as eleições de 2014 com 54 milhões de votos e um programa de transformação social, distanciou do governo e do PT milhões de eleitores, mas especialmente centenas de milhares de pessoas comprometidas com uma visão de transformação social com inspiração socialista. São justamente os mais críticos, os mais necessários para enfrentar a guerra das ideias e o pensamento neoliberal. Eles existem e estão à procura de alternativas para se engajarem em coletivos de defesa de direitos.
Tecendo os fios da resistência
Em meio a toda essa luta política a que se assiste no plano do Congresso, da mídia e dos partidos políticos, torna-se menos visível a fermentação na sociedade de uma crescente insatisfação popular. Os altos índices de reprovação do governo e do desempenho do Congresso são apenas um de muitos indicadores. Muitas manifestações eclodem localmente, sem que a imprensa dê notícia. É a violenta repressão policial contra as mobilizações mais expressivas, como a luta atual contra o aumento das tarifas do transporte público, que provoca a solidariedade da sociedade para com os manifestantes. No que essa insatisfação vai dar não se sabe, é o imponderável. Mas Junho de 2013 não está tão longe e os problemas não fizeram mais do que se agravar. E Junho traz como experiência a ação direta, a ocupação das ruas, a mobilização da juventude, a politização dos movimentos sociais, a pressão sobre as instituições democráticas.
A cartografia dos conflitos mostra a cidadania mobilizada em variadas frentes: a disputa pelo direito à cidade, pelo direito à terra, pelo direito ao trabalho, contra as discriminações de todo gênero, pela preservação do meio ambiente, contra a mercantilização dos serviços públicos, pela universalização da saúde, da educação, pelo acesso à cultura, pela segurança pública etc.
Há uma diversidade de novos e velhos atores que ocupam o espaço público e apresentam suas demandas e seus questionamentos. Mobilizados por questões específicas, eles expressam a capacidade de organização e de expressão autônoma de atores coletivos na cena pública. E o Brasil se destaca pela riqueza de sua organização social, pela grande quantidade de associações e entidades de defesa de direitos.
Esse capital social é o conjunto das associações de moradores, grupos de teatro na periferia, ONGs, sindicatos, associações profissionais, organizações de base de igrejas, movimentos de moradia, saraus da periferia e inúmeras outras iniciativas de criação de coletivos diversos, como os feministas, do movimento negro, que, em conjunturas particulares, se somam, criam formas de articulação, ampliam e politizam o questionamento do Estado e das políticas que este pratica. São frentes de resistência à destituição de direitos que, por exemplo, lutam contra as privatizações, as quais sacrificam conquistas e bens públicos comuns em favor dos interesses do mercado.
A luta por direitos é também a luta contra a desigualdade e requer narrativas que desvendem as formas de exploração e opressão e tornem ilegítimas as políticas promotoras da desigualdade. Mas não bastam as denúncias; essas mobilizações precisam também trazer a público propostas afirmativas para a reconstrução de uma área social específica, como é o caso da tarifa zero nas mobilizações contra o aumento das tarifas. A disputa pelos recursos e por novas políticas públicas é uma disputa concreta, ponto a ponto, que precisa de alternativas concretas para contrapor a lógica dos direitos à lógica do mercado.
No caso da tarifa zero, não se trata de negociar apenas um valor menor para a tarifa, e sim de estimular o imaginário social com uma proposta que subverte o quadro institucional e apresenta uma ruptura: contrapõe a defesa de bens públicos comuns à lógica dos serviços públicos como mercadoria.
Sob a bandeira de luta contra a mercantilização dos serviços públicos e a defesa dos bens públicos comuns se agregam muitas lutas. É uma bandeira unificadora que, para ter força, precisa manter e reforçar relações concretas com as demandas sociais diretas da população. É uma proposta que combina dois propósitos: enfrentar as carências atuais e oferecer ao imaginário social um projeto de sociedade em que essa utopia dos bens públicos comuns se concretize.
Outras importantes frentes agregadoras das lutas sociais são: a questão do meio ambiente, da poluição, da escassez de água, do saneamento e das epidemias; os movimentos de juventude, como a ocupação das escolas públicas; os movimentos de defesa dos direitos da mulher e pela igualdade racial, entre outros. Em todas essas frentes de conflito, a cidadania se organizou para a defesa de direitos, criando redes e fóruns que articulam entidades e movimentos locais e regionais para potenciar sua capacidade de intervenção.
Na soma da variada gama de seus participantes, essas redes e fóruns têm demonstrado a capacidade de elaborar narrativas para a defesa de direitos, atuar na guerra das ideias, promover importantes manifestações públicas. Muitas delas reúnem sindicatos, movimentos sociais, acadêmicos, ONGs, associações profissionais e entidades de variados tipos. Cada um desses atores aporta sua contribuição para o conjunto. Uns oferecem seu trabalho de pesquisa e análise das políticas públicas; outros, as bases sociais de suas organizações; um terceiro, o empenho na organização das manifestações etc. E sob a bandeira do direito à cidade, por exemplo, todos cooperam, se complementam e se mobilizam.
O período pós-ditadura abriu espaço para as organizações de defesa da cidadania construírem suas articulações regionais, nacionais e mesmo internacionais. As centrais sindicais são um exemplo. A Associação Brasileira de ONGs, outro exemplo. Os movimentos de mulheres, de moradia, de defesa do meio ambiente, as lutas contra as discriminações de raça, diversidade sexual, os movimentos de juventude são todos atores coletivos que se constituíram ou se fortaleceram nesse período e passaram a incidir na cena política.
Mas os tempos são outros. Não há mais a polarização ditadura-democracia, o que desafia esses movimentos a abrigarem novas utopias, a articularem essa diversidade numa luta conjunta por uma nova sociedade e ao mesmo tempo a reforçarem suas mobilizações por demandas concretas.
* Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
[i] Marilena Chauí, Conformismo e resistência, 4. ed., Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2014, p. 26. (Coleção Escritos de Marilena Chauí, organizada por Homero Santiago.)
[ii] Silvio Caccia Bava, “A produção da agenda social: uma discussão sobre contextos e conceitos”, Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 31, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2003.
[iii] Marilena Chauí, “História a contrapelo”. In: Edgar De Decca, 1930 – O silêncio dos vencidos, Brasiliense, São Paulo, 1981.
[iv]Stephen Boucher e Martine Royo, Les think tanks – Cerveaux de la guerre des idées, Éditions du Félin, Paris, 2009.
[v] Marilena Chauí, “História a contrapelo”, op. cit.
[vi]Wendy Brown, “Neo-liberalism and the end of liberal democracy”, Theory & Event 7:1, 2003.
[vii] Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemonía y estrategia socialista, Siglo XXI, Madrid, 1987.
[viii] Vladimir Safatle, “A falsa onda conservadora”, Folha de S.Paulo, 25 dez. 2015.
[ix] Francisco de Oliveira, “Oração a São Paulo – A tarefa da crítica”. In: Cibele Saliba Rizek e Wagner de Melo Romão (orgs.), Francisco de Oliveira – A tarefa da crítica, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2006.
[x] Silvio Caccia Bava, “Francisco de Oliveira, um militante”. In: Cibele Saliba Rizek e Wagner de Melo Romão (orgs.), Francisco de Oliveira – A tarefa da crítica, op. cit.
[xi] Manifesto de lançamento da Frente Brasil Popular, 9 set. 2015.
[xii] José Luís Fiori, “Brasil: geopolítica e desenvolvimento”. In: História, estratégia e desenvolvimento, Boitempo, São Paulo, 2014.
[xiii] www.plataformapoliticasocial.com.br
[xiv] Ver o documento em www.plataformapoliticasocial.com.br
[xv] www.ibase.br
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