Dória e Matarazzo: o escárnio do PSDB
O líder do 'Cansei' ou o engenheiro de rampas anti-mendigo poderiam liderar as mudanças que a cidade de São Paulo requer?
Por Saul Leblon
Andrea Matarazzo e João Dória Jr |
A
qualidade do material político que o conservadorismo reserva à
apreciação eleitoral de São Paulo antecipa, no plano municipal, a
regressão embutida no eventual retorno do PSDB ao poder federal, em
2018.
É uma decorrência lógica.
Os nomes que disputam a vaga tucana nas eleições da capital paulista em outubro próximo, vinculam-se, respectivamente, às aspirações presidenciais de José Serra, de um lado, e às do governador Geraldo Alckmin, de outro.
Andrea Matarazzo e João Dória Jr são por assim dizer suas cabeças de ponte para o salto nacional.
Num extremo, a visão higienista e autoritária da questão social na mais pura tradição do ‘liberalismo’ quatrocentão; no outro, a contrapartida disso no plano econômico: a concepção do Estado como um estorvo do mercado e da sociedade.
Esses, os ingredientes que compõem a química dos dois lados –sendo também o substrato comum a Aécio Neves.
O que os distingue é a rivalidade interna dos currais e questões menores de estilo e circunstância.
Dória Jr, o pré-candidato do governador paulista, singulariza-se por uma assumida determinação de servir a cifrões, a partir de seis zeros.
Júnior traz no currículo sortida capacitação para serviços desfrutáveis pelo dinheiro grosso. Inclua-se desde a promoção de jantares políticos, a desfiles de pets de madames no refúgio de inverno da paulistada, em Campos de Jordão.
É dele a paternidade do movimento ‘Cansei’, por exemplo.
Uma espécie de antecessor das milícias criadas hoje pelos kins catupirys, o ’Cansei’ nasceu em 2007, 48 horas após o acidente com o avião da TAM que matou 199 pessoas em São Paulo.
Lula acabara de ser reeleito a contrapelo das esperanças conservadoras nos efeitos do julgamento do ‘mensalão’.
Aos olhos dos donos, o Brasil vivia o caos...
O pessoal das rodoviárias começara a frequentar aeroportos –‘voluntarismo populista’, fulminaria FHC a exibir as marcas de um ressentimento em carne viva.
O ‘caos aéreo’ era o grito de guerra do jornalismo que cevava futuras alas de batedores de panela.
O trágico acidente veio a calhar.
Sua causa real –erro humano-- só viria ser comprovada quatro anos depois, dando à precariedade da pista uma canal para a criminalização de Lula pelos punhos de renda.
Um desses burros de carga das tarefas superiores chamou o então Presidente da República de assassino na primeira página de um veículo representativo da falta de escrúpulos impressa.
Júnior enxergou a janela de oportunidade para servir.
Surgiu então o ‘Cansei’.
No auge, o movimento reuniu cinco mil dondocas e senhores de fina estampa na praça da Sé, com direito a hino nacional cantado por Agnaldo o Timóteo
Adiante.
A obra-prima, porém, viria com a esperta criação de uma versão de Davos na ilha de Comandatuba, em simbiose com a revista Caras.
Nesse palanque tropical, de regularidade anual, regado a bom uísque, com grifes e milionários a ecoar o jogral do Brasil aos cacos, economistas de bancos palestram para manchetes pré-combinadas: ‘o intervencionismo petista está acabano com o Brasil; só o arrocho salva o país do caos’.
Vender o patrimônio público --‘privatizar tudo o que for possível’—é o slogan de Júnior na disputa interna do PSDB.
Faz todo sentido.
O que destoa um pouco é a pretensão de cravar sua candidatura com o slogan ‘João dos bairros’, na busca do eleitor das periferias.
A ver.
Seu rival, Andrea Matarazzo, apoiado por Serra & FHC, não deixa por menos na paradoxal trajetória do algoz que aspira representar as vítimas.
Uma espécie de Maria Antonieta da questão social, Andrea ancora suas pretensões em comprovada perspicácia para lidar com o antagonismo entre sobras de gente e ‘ordem’ no espaço urbano.
‘Se não há bancos, eles poderão dormir na grama, é mais macio’, sentenciou nossa Maria Antonieta, a propósito das divisórias de ferro que mandou instalar em bancos públicos para inviabilizar o descanso dos moradores de rua –um dos destaques da sua atuação na gestão Serra/Kassab.
Ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência da República no governo FHC, quando cevou o trânsito que tem hoje entre donos da mídia e seus editores de confiança, Matarazzo foi coletor de campanha de Serra e assumiu a prefeitura de São Paulo com o tucano em 2005 , no cargo de diretor regional da Sé. Quando Kassab sucedeu o prefeito, foi catapultado ao cargo estratégico de chefe de todas as regionais.
Deriva daí uma obra desabrida, batizada pelo Padre Lancelotti de ‘higienismo social’.
Destaque dessa modalidade foi a “rampa anti-mendigo’, um obstáculo de concreta áspero implantado pelo trio Serra/Kassab/Matarazzo em viadutos para impedir moradores de rua de dormir ou se proteger do frio e da chuva.
A faxina capitaneada por Matarazzo não ficou nisso.
Incluiu medidas pró-ativas, como a expulsão da cooperativa de catadores de Pinheiros. E um mutirão higienista com disparos de jatos d’água em moradores de rua reincidentes e seus pertences.
A isso denominou-se de “revitalização do Centro de São Paulo”.
O trabalho teve uma perna estrutural com o encerramento das atividades de albergues tradicionais na região, como o Centro de Acolhida Jacareí, na Bela Vista, que abrigava até 400 pessoas e o Albergue São Francisco (no Glicério), o maior da área central, com vagas para 720 desabrigados por noite.
A substituição dessas estruturas de acolhimento por núcleos de convivência, sem espaço de pernoite, evidenciaria a esférica determinação de ‘resolver’ o problema da degradação social’ do centro paulistano, varrendo as sobras humanas para periferias invisíveis.
A solução ótica ganhou aplausos de uma elite que prefere pagar para não ver o problema do que contribuir para solucioná-lo.
O vassourão social empunhado por Matarazzo na gestão Serra/Kassab rendeu-lhe então o sugestivo apoio da revista ‘Veja’, que o consagrou com o merecido epíteto de “xerifão das subprefeituras”.
É dessa matéria prima que o PSDB pretende extrair uma candidatura vencedora em São Paulo, capaz de fazer da disputa municipal uma plataforma de voo para o posto máximo da nação, dois anos depois.
Uma tarefa dessa envergadura atribuída a personagens da qualidade de um Dória ou um Andrea suscita justificáveis apreensões com o que se reserva ao país na etapa seguinte do percurso.
O conjunto faz da eleição de outubro em São Paulo um divisor de águas.
A ideia de que uma metrópole capitalista possa ser administrada pelo livre curso dos interesses dominantes, como preconiza a lógica intrínseca a Dória e Andrea, é o que de mais próximo se pode conceber em termos de barbárie.
Quando esse conceito se aplica a uma mancha urbana como a de São Paulo, a sexta maior mancha urbana do planeta, com 12 milhões de habitantes –20 milhões somando-se a área metropolitana -- o resultado é o que se vê.
E o que se vê não se equaciona se não tiver como ponto de referência algo ontologicamente ausente do repertório político do PSDB do para a capital: democratizar o poder sobre a cidade.
São Paulo não pode mais ter ‘zonas livres de democracia’, para usar a expressão feliz de Yanis Varoufakis, ou ela se tornará a mais pura e convulsiva replicação do mercado.
Para que não seja uma réplica do capital em concreto, a São Paulo do século 21 precisa de uma dose maior de democracia do que apenas eleger vereadores a cada quatro anos. Ou renovar regularmente o ocupante da cadeira do prefeito.
Ainda que isso seja importante, é insuficiente.
Durante quase toda a sua história, São Paulo foi administrada na contramão dessa lógica.
A urbanização caótica que a define é a mais perfeita expressão daquilo que os mercados são capazes de produzir, deixados ao próprio arbítrio.
Não existem panaceias para reverter esse processo.
De nada adianta zerar a tarifa, por exemplo, se o ônibus não anda, retido pela supremacia paralisante do automóvel –como ainda acontece em São Paulo, embora Haddad tenha iniciado uma corajosa ampliação de corredores e faixas exclusivas para ônibus.
Hoje a cidade tem mais de 350 quilômetros de faixas implantadas; a meta para os corredores está aquém dos 150 quilômetros previstos, mas a velocidade média dos ônibus em diferentes vias teve ganhos de 8% a quase 30%.
Ir além de forma ainda mais abrangente e acelerada não é uma escolha de natureza técnica.
Ela encerra apostas políticas que a cidadania deve ter o direito de avaliar e assumir.
A fatia do orçamento municipal que deve ser devolvida à população na forma de subsídios é uma das decisões a serem facultadas à decisão plebiscitária dos seus cidadãos.
De quanto deve ser, quais serviços deve contemplar e para quem deve ir o subsídio são questões indissociáveis de uma São Paulo mais democrática, mais pluralista e participativa.
Quanto a cidadania se dispõe a adicionar ao IPTU para financiar a política de subsídios que essa transformação requer?
Hoje São Paulo subsidia R$ 1,90 em cada viagem de ônibus na cidade. Só 57% das viagens pagam tarifa cheia.
É possível e desejável ir além?
É esse um atalho capaz de arremeter a democracia contra as muralhas da desigualdade erguidas pelo mercado?
Trata-se de uma escolha política, só concebível com a desconcentração do poder sobre a cidade.
Soa concebível que alguém com o perfil do idealizador do ‘Cansei’, ou o do ‘do engenheiro de rampas anti-mendigo, possa liderar uma travessia dessa envergadura?
Há vivos indícios que não.
Haddad assumiu uma prefeitura afogada em corrupção, com uma dívida que era o dobro da receita líquida – da qual 13% destinados ao pagamento de juros.
Conseguiu renegociar isso.
Ainda faltam recursos, porém, para criar a base financeira de uma regulação social que devolva a metrópole a seus cidadãos.
No final de 2013, centuriões do PSDB foram à Justiça e derrubaram a cobrança do IPTU progressivo proposto por Haddad.
A mídia conservadora deu legitimidade ao espírito separatista inscrito no boicote a um orçamento de convergência social.
Como é possível construir uma cidade livre a partir dessa angulação excludente endossada por Dória Jr e Andrea Matarazzo ?
Não é possível e nem eles se propõem a isso.
Poucas capitais do mundo reúnem massa crítica equivalente a de São Paulo para imprimir uma nova referência na modulação do desenvolvimento brasileiro a partir do tripé de organização comunitária, administração plebiscitária, planos diretores participativos -- no transporte, no lazer, na educação e a na saúde.
Não se trata de substituir um déficit do ciclo petista no plano federal por um fetiche de 'participacionismo municipal’.
Trata-se de afrontar um déficit político.
Sem o qual será impossível resgatar a verdadeira dimensão daquilo que Henri Lefevbre denominou de o 'direito à cidade'.
Atribuir à folha corrida de Dória ou Andrea as credenciais para conduzir essa transição é mais que temerário.
É um escárnio do PSDB. E ele é ilustrativo do que se concebe para o país a partir do que se oferece a São Paulo.
É uma decorrência lógica.
Os nomes que disputam a vaga tucana nas eleições da capital paulista em outubro próximo, vinculam-se, respectivamente, às aspirações presidenciais de José Serra, de um lado, e às do governador Geraldo Alckmin, de outro.
Andrea Matarazzo e João Dória Jr são por assim dizer suas cabeças de ponte para o salto nacional.
Num extremo, a visão higienista e autoritária da questão social na mais pura tradição do ‘liberalismo’ quatrocentão; no outro, a contrapartida disso no plano econômico: a concepção do Estado como um estorvo do mercado e da sociedade.
Esses, os ingredientes que compõem a química dos dois lados –sendo também o substrato comum a Aécio Neves.
O que os distingue é a rivalidade interna dos currais e questões menores de estilo e circunstância.
Dória Jr, o pré-candidato do governador paulista, singulariza-se por uma assumida determinação de servir a cifrões, a partir de seis zeros.
Júnior traz no currículo sortida capacitação para serviços desfrutáveis pelo dinheiro grosso. Inclua-se desde a promoção de jantares políticos, a desfiles de pets de madames no refúgio de inverno da paulistada, em Campos de Jordão.
É dele a paternidade do movimento ‘Cansei’, por exemplo.
Uma espécie de antecessor das milícias criadas hoje pelos kins catupirys, o ’Cansei’ nasceu em 2007, 48 horas após o acidente com o avião da TAM que matou 199 pessoas em São Paulo.
Lula acabara de ser reeleito a contrapelo das esperanças conservadoras nos efeitos do julgamento do ‘mensalão’.
Aos olhos dos donos, o Brasil vivia o caos...
O pessoal das rodoviárias começara a frequentar aeroportos –‘voluntarismo populista’, fulminaria FHC a exibir as marcas de um ressentimento em carne viva.
O ‘caos aéreo’ era o grito de guerra do jornalismo que cevava futuras alas de batedores de panela.
O trágico acidente veio a calhar.
Sua causa real –erro humano-- só viria ser comprovada quatro anos depois, dando à precariedade da pista uma canal para a criminalização de Lula pelos punhos de renda.
Um desses burros de carga das tarefas superiores chamou o então Presidente da República de assassino na primeira página de um veículo representativo da falta de escrúpulos impressa.
Júnior enxergou a janela de oportunidade para servir.
Surgiu então o ‘Cansei’.
No auge, o movimento reuniu cinco mil dondocas e senhores de fina estampa na praça da Sé, com direito a hino nacional cantado por Agnaldo o Timóteo
Adiante.
A obra-prima, porém, viria com a esperta criação de uma versão de Davos na ilha de Comandatuba, em simbiose com a revista Caras.
Nesse palanque tropical, de regularidade anual, regado a bom uísque, com grifes e milionários a ecoar o jogral do Brasil aos cacos, economistas de bancos palestram para manchetes pré-combinadas: ‘o intervencionismo petista está acabano com o Brasil; só o arrocho salva o país do caos’.
Vender o patrimônio público --‘privatizar tudo o que for possível’—é o slogan de Júnior na disputa interna do PSDB.
Faz todo sentido.
O que destoa um pouco é a pretensão de cravar sua candidatura com o slogan ‘João dos bairros’, na busca do eleitor das periferias.
A ver.
Seu rival, Andrea Matarazzo, apoiado por Serra & FHC, não deixa por menos na paradoxal trajetória do algoz que aspira representar as vítimas.
Uma espécie de Maria Antonieta da questão social, Andrea ancora suas pretensões em comprovada perspicácia para lidar com o antagonismo entre sobras de gente e ‘ordem’ no espaço urbano.
‘Se não há bancos, eles poderão dormir na grama, é mais macio’, sentenciou nossa Maria Antonieta, a propósito das divisórias de ferro que mandou instalar em bancos públicos para inviabilizar o descanso dos moradores de rua –um dos destaques da sua atuação na gestão Serra/Kassab.
Ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência da República no governo FHC, quando cevou o trânsito que tem hoje entre donos da mídia e seus editores de confiança, Matarazzo foi coletor de campanha de Serra e assumiu a prefeitura de São Paulo com o tucano em 2005 , no cargo de diretor regional da Sé. Quando Kassab sucedeu o prefeito, foi catapultado ao cargo estratégico de chefe de todas as regionais.
Deriva daí uma obra desabrida, batizada pelo Padre Lancelotti de ‘higienismo social’.
Destaque dessa modalidade foi a “rampa anti-mendigo’, um obstáculo de concreta áspero implantado pelo trio Serra/Kassab/Matarazzo em viadutos para impedir moradores de rua de dormir ou se proteger do frio e da chuva.
A faxina capitaneada por Matarazzo não ficou nisso.
Incluiu medidas pró-ativas, como a expulsão da cooperativa de catadores de Pinheiros. E um mutirão higienista com disparos de jatos d’água em moradores de rua reincidentes e seus pertences.
A isso denominou-se de “revitalização do Centro de São Paulo”.
O trabalho teve uma perna estrutural com o encerramento das atividades de albergues tradicionais na região, como o Centro de Acolhida Jacareí, na Bela Vista, que abrigava até 400 pessoas e o Albergue São Francisco (no Glicério), o maior da área central, com vagas para 720 desabrigados por noite.
A substituição dessas estruturas de acolhimento por núcleos de convivência, sem espaço de pernoite, evidenciaria a esférica determinação de ‘resolver’ o problema da degradação social’ do centro paulistano, varrendo as sobras humanas para periferias invisíveis.
A solução ótica ganhou aplausos de uma elite que prefere pagar para não ver o problema do que contribuir para solucioná-lo.
O vassourão social empunhado por Matarazzo na gestão Serra/Kassab rendeu-lhe então o sugestivo apoio da revista ‘Veja’, que o consagrou com o merecido epíteto de “xerifão das subprefeituras”.
É dessa matéria prima que o PSDB pretende extrair uma candidatura vencedora em São Paulo, capaz de fazer da disputa municipal uma plataforma de voo para o posto máximo da nação, dois anos depois.
Uma tarefa dessa envergadura atribuída a personagens da qualidade de um Dória ou um Andrea suscita justificáveis apreensões com o que se reserva ao país na etapa seguinte do percurso.
O conjunto faz da eleição de outubro em São Paulo um divisor de águas.
A ideia de que uma metrópole capitalista possa ser administrada pelo livre curso dos interesses dominantes, como preconiza a lógica intrínseca a Dória e Andrea, é o que de mais próximo se pode conceber em termos de barbárie.
Quando esse conceito se aplica a uma mancha urbana como a de São Paulo, a sexta maior mancha urbana do planeta, com 12 milhões de habitantes –20 milhões somando-se a área metropolitana -- o resultado é o que se vê.
E o que se vê não se equaciona se não tiver como ponto de referência algo ontologicamente ausente do repertório político do PSDB do para a capital: democratizar o poder sobre a cidade.
São Paulo não pode mais ter ‘zonas livres de democracia’, para usar a expressão feliz de Yanis Varoufakis, ou ela se tornará a mais pura e convulsiva replicação do mercado.
Para que não seja uma réplica do capital em concreto, a São Paulo do século 21 precisa de uma dose maior de democracia do que apenas eleger vereadores a cada quatro anos. Ou renovar regularmente o ocupante da cadeira do prefeito.
Ainda que isso seja importante, é insuficiente.
Durante quase toda a sua história, São Paulo foi administrada na contramão dessa lógica.
A urbanização caótica que a define é a mais perfeita expressão daquilo que os mercados são capazes de produzir, deixados ao próprio arbítrio.
Não existem panaceias para reverter esse processo.
De nada adianta zerar a tarifa, por exemplo, se o ônibus não anda, retido pela supremacia paralisante do automóvel –como ainda acontece em São Paulo, embora Haddad tenha iniciado uma corajosa ampliação de corredores e faixas exclusivas para ônibus.
Hoje a cidade tem mais de 350 quilômetros de faixas implantadas; a meta para os corredores está aquém dos 150 quilômetros previstos, mas a velocidade média dos ônibus em diferentes vias teve ganhos de 8% a quase 30%.
Ir além de forma ainda mais abrangente e acelerada não é uma escolha de natureza técnica.
Ela encerra apostas políticas que a cidadania deve ter o direito de avaliar e assumir.
A fatia do orçamento municipal que deve ser devolvida à população na forma de subsídios é uma das decisões a serem facultadas à decisão plebiscitária dos seus cidadãos.
De quanto deve ser, quais serviços deve contemplar e para quem deve ir o subsídio são questões indissociáveis de uma São Paulo mais democrática, mais pluralista e participativa.
Quanto a cidadania se dispõe a adicionar ao IPTU para financiar a política de subsídios que essa transformação requer?
Hoje São Paulo subsidia R$ 1,90 em cada viagem de ônibus na cidade. Só 57% das viagens pagam tarifa cheia.
É possível e desejável ir além?
É esse um atalho capaz de arremeter a democracia contra as muralhas da desigualdade erguidas pelo mercado?
Trata-se de uma escolha política, só concebível com a desconcentração do poder sobre a cidade.
Soa concebível que alguém com o perfil do idealizador do ‘Cansei’, ou o do ‘do engenheiro de rampas anti-mendigo, possa liderar uma travessia dessa envergadura?
Há vivos indícios que não.
Haddad assumiu uma prefeitura afogada em corrupção, com uma dívida que era o dobro da receita líquida – da qual 13% destinados ao pagamento de juros.
Conseguiu renegociar isso.
Ainda faltam recursos, porém, para criar a base financeira de uma regulação social que devolva a metrópole a seus cidadãos.
No final de 2013, centuriões do PSDB foram à Justiça e derrubaram a cobrança do IPTU progressivo proposto por Haddad.
A mídia conservadora deu legitimidade ao espírito separatista inscrito no boicote a um orçamento de convergência social.
Como é possível construir uma cidade livre a partir dessa angulação excludente endossada por Dória Jr e Andrea Matarazzo ?
Não é possível e nem eles se propõem a isso.
Poucas capitais do mundo reúnem massa crítica equivalente a de São Paulo para imprimir uma nova referência na modulação do desenvolvimento brasileiro a partir do tripé de organização comunitária, administração plebiscitária, planos diretores participativos -- no transporte, no lazer, na educação e a na saúde.
Não se trata de substituir um déficit do ciclo petista no plano federal por um fetiche de 'participacionismo municipal’.
Trata-se de afrontar um déficit político.
Sem o qual será impossível resgatar a verdadeira dimensão daquilo que Henri Lefevbre denominou de o 'direito à cidade'.
Atribuir à folha corrida de Dória ou Andrea as credenciais para conduzir essa transição é mais que temerário.
É um escárnio do PSDB. E ele é ilustrativo do que se concebe para o país a partir do que se oferece a São Paulo.
Fonte: Carta Maior
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