Por Antonio Lancetti e Aldo Zaiden[*]. O movimento da Luta Antimanicomial e o retorno das multidões
Os bravos companheiros e companheiras que ocupam o Ministério da Saúde protagonizam um dos acontecimentos mais belos da história política do Brasil atual
A demissão de Roberto Tykanori Kinoshita e a nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho para coordenar a Saúde Mental do Ministério da Saúde caiu como balde de água gelada no auditório onde acontecia a XVIII Reunião Nacional de Coordenadores de Saúde Mental. As pessoas que voltaram da primeira audiência com o ministro Marcelo Castro falaram de sua simpatia para com a companheira Dirce, que foi representando os usuários.
Ela disse: “Eu sou a prova que a Reforma Psiquiátrica funciona”. Ao que o ministro respondeu: “E qual é seu diagnóstico minha filha?…Que remédios esta tomando?”.
Ela estava lá como representante da sociedade civil e foi tratada como paciente psiquiátrica. O ministro disse que o coordenador não seria o indicado pela Associação Brasileira de Psiquiatria nem o defendido pelos representantes das entidades, mas um amigo seu. Quem poderia esperar que o governo de uma ex-presa política, torturada nos porões da ditadura, nomearia um dirigente de um dos piores porões da psiquiatria manicomial para coordenar a política de saúde mental?
É bom lembrar que o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA pelo caso de Damião Ximenes, paciente psiquiátrico morto em decorrência de negligência e maus tratos em clínica psiquiátrica privada.
E foi por razões similares que a Casa de Saúde Dr. Eiras, dirigida pelo Dr. Valencius Wurch, foi fechada em 2012, por intervenção federal, depois de graves denúncias de violações de direitos humanos cometidas contras internos.
Desde o governo Collor, com a condução de Domingos Savio, passando pelo governo Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e a gestão anterior de Dilma Rousseff, os coordenadores nacionais de saúde mental, mais ou menos atuantes, estiveram alinhados com a Reforma Psiquiátrica e as diretrizes da OMS.
O Brasil anda bastante mal em várias políticas públicas, tais como Segurança e Meio Ambiente. Por que trocar precisamente o que funciona melhor? Sob a gestão de Roberto Tykanori, foi consolidada a Rede de Atenção Psicossocial, que adquiriu status de política de Estado. Com aproximadamente 2.200 Centros de Atenção Psicossociais, muitos deles operando durante as 24 horas do dia, oferecendo hospitalidade intensiva, articulados a emergências psiquiátricas, a atendimentos de saúde mental prestados nas unidades básicas de saúde, a serviços de residências terapêuticas, a unidades de reabilitação de vários tipos como os centros de economia solidária.
Sob a gestão destituída foram inaugurados programas preventivos ao uso problemático de drogas, pela primeira vez eficientes e que atraíram atenção da OMS, OPAS e UNODC. Foram apoiadas e promovidas experiências inovadoras como o Programa De Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo e Atitude de Pernambuco, que conseguiu diminuir o encarceramento e a mortalidade de usuários de crack (Pernambuco foi o único estado do nordeste brasileiro onde diminuiu a violência) e que hoje também está ameaçado e com seus funcionários recebendo salários em atraso.
Desde 1989, quando Roberto Tykanori era interventor da Casa de Saúde Anchieta e um dos líderes da construção de um Sistema de Saúde Mental de alta complexidade e eficácia, que fez de Santos a primeira cidade brasileira sem manicômios, até os dias de hoje, foram desativados mais de 60.000 leitos manicomiais no Brasil. Milhares de pessoas que apodreciam abandonadas em hospícios, sujeitas a torturas e maus tratos, foram resgatadas para se beneficiar de serviços residenciais terapêuticos e outras formas de cuidados em liberdade, o que significou um enorme trabalho realizado por bravos trabalhadores de saúde mental.
Por tudo isso é que a Reforma Psiquiátrica Brasileira foi considerada um exemplo para Organização Mundial de Saúde. Porém se a notícia foi inesperada, menos esperada pelo Ministro Marcelo Castro foi a impressionante mobilização do movimento da Luta antimanicomial e da própria sociedade que se expande pelo Brasil afora.
No dia 14 de dezembro, quando o professor Tykanori foi demitido pelo Diário Oficial, sem a mínima observação da ética da palavra, a sala da coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde foi ocupada por integrantes do movimento e militantes de diversas localidades se revezaram para passar as festas de natal e ano novo e atravessar o ano na ocupação.
Nesse dia, os CAPS e outros serviços de saúde mental foram abraçados por milhares de trabalhadores em aproximadamente 600 municípios. Onde vai o ministro o movimento se organiza para protestar ao som “Nem um passo atrás, manicômios nunca mais!”, inaugurando uma nova maneira de fazer política.
Houve atos no Rio de Janeiro, em Alagoas, Natal e no Piauí no fim de semana seguinte à nomeação de Valencius.
A Associação de Juízes para a Democracia lançou nota de apoio aos ocupantes do Ministério da Saúde, milhares de professores universitários assinaram carta de repúdio, diversas entidades estão aderindo ao movimento no Brasil e em outros países. Além da carta de Triste, se manifestaram professores e personalidades da área psiquiátricas do Reino Unido, Lisboa,Espanha, Argentina. Os atores Luiz Carlos Vasconcelos e Paulo Betti já gravaram depoimento e outros estão fazendo o mesmo. Em Recife foi criado um grupo autodenominado Psiquiatras Libertos que promete disseminar-se pelo Brasil adentro.
O movimento da luta antimanicomial está lavando a alma do movimento sanitário brasileiro defensor do Sistema Único de Saúde que engoliu calado a demissão de Artur Chioro. A história não se repete apenas como tragédia e como farsa. A história dos movimentos libertários tem seusritornellos e um cheiro de junho de 2013 começa a aparecer na atmosfera viciada de ódio e desesperança.
As mulheres na avenida Paulista, o movimento triunfante dos meninos que ocuparam as escolas e a impressionante viralização do movimento contra o retorno da velha psiquiatria manicomial expressam o retorno das multidões ao cenário político nacional.
O ano de 2016 promete novas e belas páginas da história pelo direito à saúde mental do Ministério da Saúde e à saúde mental do próprio povo brasileiro.
*Antonio Lancetti é psicanalista, autor de Clínica Peripatética (Editora Hucitec) e Aldo Zaiden é psicanalista e membro da Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas
Fonte: Brasileiros
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