Brasil, refém dos “300 picaretas”

CONGRESSO LIDERA INTERESSES DA ELITE


Enfraquecida pelas denúncias de corrupção na Petrobras, Dilma Rousseff procura acalmar a oposição levando seu governo para a direita. Esforço inútil: só conseguiu despertar ainda mais o apetite dos liberais. Distante da base, a presidenta depende de deputados menos preocupados com a política que com seu enriquecimento

por Lamia Oualalou[*]


Ilustração: Renato Alarcão
O Brasil está confrontado com uma tripla crise: econômica, política e institucional. Depois de doze anos de crescimento, o gigante latino-americano se afunda na recessão. O PIB deve recuar 3% este ano, e a contração deverá permanecer em 2016, em um contexto de explosão do desemprego (quase 8%, contra os 4% em 2014) e inflação elevada (mais de 9,5% esperados para este ano).
Contestada pela maioria da população – menos de 10% dos brasileiros aprovam seu governo –, a presidenta Dilma Rousseff tem sofrido uma série de golpes. Para tentar acalmar a oposição, que exige sua destituição, ela aceitou, em agosto, colaborar com a elite econômica na aplicação de um programa bastante conservador chamado Agenda Brasil.1 Em vão: dois meses depois, por reivindicação da oposição, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abriu uma investigação sobre o financiamento de sua campanha presidencial em 2014. Na sequência, o Tribunal de Contas da União (TCU) invalidou as contas públicas do Estado referentes ao ano passado. Essa decisão, sem precedentes desde 1937, significa que o Congresso está inclinado a rejeitá-las.

BARÕES DA MÍDIA ONIPRESENTES

Para os juízes encarregados do controle das contas, Dilma teria deliberadamente mascarado o déficit público, cuja amplitude real poderia tê-la prejudicado no contexto eleitoral. Para a oposição de direita, trata-se de um “crime de responsabilidade”, um dos motivos previstos na Constituição de 1988 que justificam o impeachment de um chefe de Estado. Esses dois processos não podem avançar sem o aval de um Congresso que nunca esteve tão rebelde contra um presidente.
O Congresso foi instaurado em 1824, logo após a independência do Brasil, que ocorreu sem ruptura violenta com a coroa portuguesa e assegurou em grande medida a continuidade das estruturas de poder antecedentes. Hoje, a Casa conta com 513 deputados e 81 senadores, e se caracteriza pela frágil representatividade popular. Sua principal virtude? Permitir às elites a perpetuação do controle do poder. Em 1993, Luiz Inácio Lula da Silva resumia a situação de forma contundente: o Congresso, dizia, era controlado por uma maioria de “300 picaretas”. A sentença virou piada e foi apropriada pela banda Paralamas do Sucesso: “Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou/ São trezentos picaretas com anel de doutor”. Eleito presidente no fim de 2002, o ex-operário, convertido ao pragmatismo, conteve as críticas e aprendeu a agradar àqueles a quem condenava.
Portanto, nada mudou desde 1993. O perfil típico do congressista eleito no fim de 2014 permanece o de um “homem, branco, por volta dos 50 anos, titular de um diploma universitário, empresário e com patrimônio acima de R$ 1 milhão”, resume Edson Sardinha, do site Congresso em Foco. Soma-se a isso o fato de muitos deputados também serem patrões da imprensa: em 2008, o estudo “Donos da Mídia” estabeleceu que 271 entre eles tinham vínculos diretos ou indiretos com uma empresa da comunicação, embora a Constituição não permita.2
Outra singularidade do sistema político brasileiro: as eleições para o Legislativo, proporcionais com lista aberta em apenas um turno. O eleitor pode votar em um candidato ou em uma legenda. No fim das contas, porém, o resultado parece aleatório, pois o número de cadeiras destinado a cada lista resulta de um cálculo complexo chamado “coeficiente eleitoral”. A soma dos votos obtidos pelos candidatos e dos votos conferidos à legenda ou coalizão é dividida pelo número de cadeiras delimitadas para uma circunscrição. Dessa forma, se um candidato recebe um grande número de votos, essa soma permite o acesso ao Congresso de outros deputados da legenda que obtiveram poucos votos. Em resumo, as coalizões misturam formações de esquerda e direita, de modo que um cidadão pode votar em um militante de direitos humanos e, contudo, contribuir para a eleição de um homofóbico defensor da expulsão de camponeses de suas terras, por exemplo.

ALINHAMENTOS DE CONVENIÊNCIA

O sistema político brasileiro também é recheado de ex-estrelas do esporte, policiais, pastores evangélicos com programas de televisão e ainda herdeiros de grandes famílias de políticos. O estudante de Direito Uldurico Junior tinha 22 anos quando, em 2014, foi eleito pelo estado da Bahia, sucedendo seu pai, o deputado Uldurico Pinto. De acordo com um relatório do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que a cada eleição publica uma radiografia do Congresso, 211 eleitos devem seus postos a laços de parentesco.
A exposição midiática permite tornar-se conhecido, mas os custos das campanhas são tão extraordinários que se tornaram impraticáveis se o candidato não possui uma fortuna pessoal ou colaboradores próximos muito ricos. Entre a produção de spots e os honorários dos spin doctors (comunicadores especializados em política) mais elevados do mundo, além dos custos de logística em um país gigantesco, o tribunal eleitoral estima que, em 2014, a eleição de um deputado podia custar ao seu partido cerca de R$ 6,4 milhões, 283% mais que doze anos antes. E esses valores podem ser ainda maiores, pois, sem financiamento público e sem vigilância rigorosa das doações de empresas, todos os grandes partidos fazem um caixa dois de financiamento oculto. Essa prática favorece os casos de corrupção, como o que explodiu em 2014 dentro da Petrobras. Após batalha legislativa e uma decisão da Suprema Corte, o financiamento de campanhas por empresas foi suspenso em 2015, mas nada garante que não será restabelecido.
Outro fenômeno é a explosão do número de formações no Congresso, sem que nenhuma delas possa obter uma maioria relativa significativa. Com 28 partidos, seis a mais que entre 2011 e 2014, a legislatura atual bate um novo recorde. O Partido dos Trabalhadores (PT) dispõe de apenas 69 deputados – isso significa que, apesar de um presidente ser eleito por uma grande maioria, ele pode se ver obrigado a empreender negociações perpétuas para construir uma base parlamentar e mantê-la coesa durante todo o seu mandato. Em 2005, enquanto Lula estava no poder, o PT foi acusado de comprar deputados de outros partidos para assegurar o apoio do Congresso na votação de algumas leis. Batizada de “Mensalão” pelos grandes meios de comunicação – alinhados com a oposição –, essa prática jamais foi provada formalmente, mas o escândalo ilustra a dificuldade de manter uma maioria dentro do próprio governo.
Como governar no contexto desse “presidencialismo de coalizão”? O Executivo se beneficia de recursos e prerrogativas constitucionais que lhe permitem aproximar os partidos de si: nomeia ministros, distribui cargos dentro do governo federal e dispõe de um poder discricionário sobre o financiamento das emendas parlamentares. A construção de determinada ponte, estrada, hospital etc. em uma circunscrição depende do governo. E alinhar isso com um deputado, que pode prevalecer sobre os eleitores, pode terminar por estimular esse sistema de favor.
“Para os partidos, é interessante fazer aliança com o governo. Mas, quando o Executivo não tem carisma político, nem talento, nem disposição para essas negociações, esse mecanismo institucional pode se transformar em armadilha”, analisa Paulo Peres, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os “aliados” do governo então lançam mão de chantagens para obter ainda mais recursos e postos: depois dos ministros, nomeações em todos os escalões da administração.
É exatamente a situação em que se encontra Dilma, enquanto a oposição redobra os esforços para enfraquecê-la, esperando conquistar o poder nas próximas eleições – ou até obter a destituição da presidenta.
É possível observar diversos comportamentos dentro de um mesmo partido, pois os posicionamentos ideológicos são fluidos e dependem das bases regionais, em geral concorrentes. Em outubro de 2015, Dilma ofereceu ministérios suplementares ao PMDB (uma formação sem linha política), esperando que eles pudessem bloquear o processo de impeachment no Congresso. Mas conseguiu agradar apenas a uma das alas do partido, a do estado do Rio de Janeiro. Os outros deputados, como os de Santa Catarina, continuam a reivindicar a saída da presidenta. “Os grupos parlamentares não são homogêneos. Os deputados são obrigados a responder ao líder de seu grupo, mas na realidade podem se aliar a personalidades que não são necessariamente do Congresso, como um governador ou prefeito, por exemplo”, explica Stéphane Monclaire, especialista em Brasil pela Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne.
Ignorando as engrenagens do sistema, Dilma permitiu que Eduardo Cunha, presidente do Congresso e líder do PMDB, causasse uma tempestade durante o primeiro ano de seu segundo mandato. Em fevereiro de 2015, logo após sua reeleição, ela cometeu o erro de tentar impedir sua ascensão ao poder – embora aritmeticamente adquirido –, fazendo assim um inimigo. Ora, Cunha controla dezenas de eleitos, muito além de seu bastião no Rio de Janeiro, pois financiou suas campanhas por meio de empresas “amigas”.
Coordenador da agenda do Congresso – é ele quem decide a ordem do dia –, favoreceu uma série de projetos de lei extremamente conservadores, da redução de direitos de assalariados à diminuição da maioridade penal para 16 anos. Também tem recompensado as empresas que financiaram sua campanha e a de seus protegidos. Opôs-se, por exemplo, à criação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar as empresas de seguro-saúde, alvo de uma alta quantidade de processos.
O deputado carioca nem sempre obtém ganho de causa. Mas, firme, sempre volta lembrando a diversos deputados quem está no comando. Uma pesquisa recente da Universidade Federal de Campina Grande calculou que 140 parlamentares, ou seja, um quarto da câmara, alinham-se de acordo com suas recomendações – muito mais do que permitiria a zona de influência de seu partido, que conta com 65 eleitos.
No jargão do Congresso, esses deputados são chamados de “bancada Cunha”. Em sua origem, o termo “bancada” designava o pertencimento a essa ou aquela formação política (falava-se em bancada do PT, do PMDB etc.), mas já perdeu esse sentido na medida em que afirma o poder dos lobbies. Em um Congresso dividido entre 28 grupos políticos, as bancadas articulam agora interesses particulares e promovem causas com motivações diversas. Essas causas, “de ordem cívica, moral, ambiental, econômica ou de gênero, entre outras, geraram grupos de pressão eficazes”, afirma Antônio Augusto de Queiroz, do Diap.
Os representantes do setor agroindustrial (153 deputados) e os donos de empresas (217) constituem os principais grupos. “Também existe a bancada dos evangélicos, a dos sindicalistas, das mulheres e a do setor de segurança. Outras, como a das empresas da área de educação, da saúde ou dos transportes, não têm o mesmo peso”, acrescenta Queiroz. Os deputados evangélicos se encontram às terças à noite para reuniões de trabalho e às quartas de manhã para um culto; aqueles que defendem os interesses das seguradoras de saúde coordenam ações apenas às vésperas de alguma votação que lhes interessa. Contudo, esses reagrupamentos perderam parte de seu poder desde que o Tribunal Superior Federal ratificou a “fidelidade parlamentar”, em 2007. Os partidos podem, hoje, exigir uma unidade de voto de seus membros e autorizar desvios apenas em casos excepcionais.

DIVISÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Quanto a Cunha, ele joga com seus tabuleiros: orquestra a ação da bancada dos evangélicos, da qual é membro iminente, mas também da bancada da segurança, a favor de medidas repressivas; e, claro, da bancada de seu próprio partido. Implicado no escândalo de corrupção que envolve a Petrobras – teria milhões depositados na Suíça –, ele pode deixar seu cargo a qualquer momento. Mas detém um poder considerável, e poderia até mesmo influenciar a escolha de seu sucessor.
Contudo, mesmo que desapareça da linha de frente, não necessariamente isso favorecerá a presidenta, que cometeu o equívoco de alimentar disputas internas no PMDB contra Cunha, Michel Temer e Renan Calheiros. “As tensões que existem hoje entre o Congresso e o Planalto decorrem em grande parte da batalha de influência empreendida pelos líderes do PMDB”, analisa Monclaire.
Abandonada pelo Congresso, Dilma também conta cada vez menos com o apoio dos movimentos sociais, desorientados por sua política de austeridade orçamentária e sua aproximação com as forças mais conservadoras do país.3 “Se esse governo quer que o defendamos nas ruas, ele precisa nos dar razão para isso”, martela Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Para ele, enquanto o PT parece petrificado por estar no governo, torna-se urgente que a presidenta abandone sua estratégia de negociações – duvidosas – com os deputados. “É preciso que ela pense para além do Congresso, que entenda a mobilização social como um trunfo. Sem isso, ficaremos com o governo mais reacionário da história recente”, se alarma Boulos. Mas, à esquerda, há pouco espaço para otimismo: mesmo com toda a glória conferida por 85% de aprovação, Lula jamais enfrentou o Congresso para impor uma verdadeira reforma política.

* Jornalista, Le Monde Diplomatique Brasil


Fonte:


1 Cf. “Pour sauver son poste à la tête du Brésil, Dilma Rousseff saborde l’héritage de Lula” [Para salvar seu posto de líder do Brasil, Dilma Rousseff sabota a herança de Lula], 15 ago. 2015. Disponível em: www.mediapart.fr.
2 Disponível em: http://donosdamidia.com.br.
3 LER BRENO ALTMAN, “VIRAGE À DROITE POUR LE PARTI DES TRAVAILLEURS”[VIRADA À DIREITA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES], LE MONDE DIPLOMATIQUE, ABR. 2015





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