Reservas internacionais: uma cara segurança



Por Lécio Morais



O que torna esta crise brasileira diferente das anteriores é a ausência de escassez de divisas que estrangula a importação, suspende o pagamento da dívida externa e provoca fuga de capitais em massa, seguida de um colapso fiscal pela incapacidade do financiamento do Estado. Há um consenso de que a causa central dessa diferença é a existência de uma enorme reserva de dólares. As reservas internacionais, construídas a partir de 2006, atingem hoje 16% do PIB em dólares.

Outro fator dessa estabilidade cambial, decorrente também da existência das reservas, foi a conversão da dívida pública em uma dívida em reais e sujeita a taxas internas de juros. Não há indexação relevante ao dólar. Mesmo os credores externos de títulos do Tesouro, têm seus créditos denominados em reais e nele recebem seus pagamentos, não há indexação ao dólar. Não só os da dívida pública, como em outros ativos dos credores externos no mercado financeiro.

Restrição externa e dependência

Essa é uma diferença estrutural enorme para o país, tanto econômico como histórico. As reservas dão uma garantia contra a escassez de divisas, gerando estabilidade nas contas externas, tanto para as transações correntes como para manutenção dos capitais na economia. A garantia cambial também possibilitou a conversão em reais das dívidas e de outros investimentos em papéis disponíveis internamente. Reservas são um escudo extraordinário.

Como dizem os estruturalistas, teríamos abolido ou pelo menos suspendido o que é denominado de “restrição externa”. Esta restrição é a condição mais característica dos países dependentes. Em um país dependente, déficits recorrentes nas contas externas fazem com que ele perca, de imediato, acesso à crédito privado em dólares, quando ele é mais necessário. Sucede-se uma crise porque o país fica impedido de dar continuidade às importações e ao pagamento de obrigações.

Gera-se uma “crise de pagamento”. Há fuga de capitais e um colapso cambial. Mesmo as importações mais cruciais são restringidas ao essencial, e a dívida externa não pode ser liquidada. O país fica inadimplente e o ciclo econômico de crescimento é quebrado, muitas vezes por anos de estagnação.

A negação de divisas decorrente da condição de restrição externa faz com que os dependentes só sobrevivam se contar com a ajuda de empréstimos de organismos internacionais, tipo FMI, para obter recursos mínimos para importar e para viabilizar a renegociação das dívidas. Em troca, tem de subordinar sua política a condições e restrições, abrindo mão de parte de sua soberania.

A suspensão da restrição

A situação descrita é familiar a todos nós. Embora ela aconteça desde o século 19, essa forma mais familiar vem se dando no último meio século.

A ausência de risco de colapso cambial na presente crise é uma situação inédita em nossa história. Por essa razão também não vemos o FMI por aqui. O que pode nos fazer afirmar que nossa restrição externa foi suspensa. Pelo menos temporariamente.

Infelizmente tal fenômeno inédito não tem recebido nenhuma atenção ou sequer tem sido notado nas análises de articulistas da mídia. Nem também por economistas, mesmo os de esquerda. Além de inédito para nós, é isso que vem nos diferenciando estruturalmente dos demais países da periferia dependente – pelo menos nos do Ocidente.

Aos afoitos, até poderia parecer que a ausência de ameaça de crise cambial nos equipararia aos países desenvolvidos!

Ainda pobres e dependentes

Mas nem tanto. Algo importante nos difere, e muito, dos países do centro capitalista. Estar no centro capitalista não significa apenas contar com crédito externo e disponibilidade de divisas para financiar déficits externos, mesmo crescentes. Sendo ricos, dotados de grande densidade de capital per capita, e dispondo de moedas conversíveis, não precisam manter reservas em outras moedas. Sempre haverá crédito e divisas disponíveis.

No caso do Brasil, no entanto, para não faltar divisas é indispensável manter grandes reservas, que são difíceis de acumular e que custam caro ao Estado.

Sem reservas, não teremos crédito, voltamos à restrição externa. Daí afirmarmos que ela foi suspensa, não ultrapassada. Para supera-la, enquanto país dependente, precisamos ser ricos. E para sê-lo, teremos que manter por um longo período de sucessivos ciclos de crescimento, sem sofrer interrupções prologadas. Mesmo a China, por segurança, ainda mantém suas reservas trilionárias.

O preço da suspensão da restrição externa: vale à pena?
O custo de acumular reservas e de mantê-las é muito, muito caro. Para acumulá-las o Banco Central se incumbe de comprar os dólares entrantes em troca de reais. E para não expandir o meio circulante, tem que vender títulos do Tesouro para retirar os reais excedentes. É como se comprasse dólares com títulos sobre os quais tem que pagar juros.

Assim criamos uma montanha de dívida pública (em reais). Como os juros em que se aplicam as reservas são muito menores do que os da dívida pública, esta aumenta ainda mais. Hoje deve representar cerca de 25% de toda a dívida pública em título (uns 15% do PIB).

E as reservas geram mais dívida pública a cada dia. Quando juntamos essa fonte à montanha de dívida herdada dos anos noventa, o custo da política monetária de livre movimento de capitais e o câmbio flutuante, entendemos como continuamos reféns do sistema financeiro para manter afastada uma crise cambial.

Mas, como dizia Mário Henrique Simonsen na década de 1970, “se a inflação aleija, o colapso cambial mata”.

Mesmo a este enorme custo, as reservas vêm valendo à pena.

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