Transexual crucificada na Parada Gay: ofensa ao símbolo cristão ou questão de gênero?
Por Marcela Belchior[*]
"Será mesmo que Jesus foi desrespeitado por ela ou foram as ‘referências religiosas’ de políticos, de pregadores e de uma parte da população cristã que se sentiu ameaçada?”. Quem lança a pergunta é a teóloga feminista brasileira Ivone Gebara, discutindo o porquê de tamanha repercussão em torno da performance da atriz transexual Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo, no último dia 07 de junho. A ativista desfilou no maior evento de resistência LGBT do mundo, crucificada tal como Jesus Cristo e outros tantos de seu tempo, que eram penalizados pelo Império Romano. A pretensão foi simbolizar a perseguição e o sofrimento por que passa a população LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais].
O segundo ponto levantado por Ivone se refere a um "reducionismo da moralidade social à sexual”. Neste aspecto, a teóloga aponta que a consideração e o respeito à diversidade dos seres humanos e a questão da urgência de justiça social e ecológica amplas acabam sendo tratadas como reivindicações menores. "A moralidade reduzida à sexualidade é sujeita ao controle de um grupo que se considera ‘eleito’ por Deus, representante e defensor das leis ‘ditas’ divinas”, explica.
"O reducionismo decorrente e suas nefastas consequências têm crescido assustadoramente, como forma de impor uma nova moralidade política através de um falacioso discurso moralizador dos costumes. Este tem rendido a eleição de muitos lobos vorazes vestidos de pele de cordeiro. O reducionismo tem sido liderado por grupos religiosos com amplo acesso aos meios de comunicação e a espaços políticos nacionais”, discorre Ivone. "Promovem uma guerra cultural contra a diversidade, confundem muitos adeptos e acabam tendo grande apoio popular. Os adeptos passam então a repudiar o que eles repudiam”.
O terceiro tópico tem a ver com uma produção desenfreada de violência, não só por organizações criminosas nacionais e internacionais, mas também por aqueles que encetam "guerras santas” contra os que são julgados "desviados” das "leis de Deus” e da natureza. "Leiam-se aqui também leis do capitalismo do mercado protecionista e individualista. Os ‘justiceiros’ são, na realidade, produtores de uma violência social incomensurável, visto que se disfarçam nos discursos religiosos, mostram-se pacíficos, pessoas de bem, mas iludem os mais simples, tornando-os partidários de suas interpretações da História e das intervenções divinas nela”, destaca a Ivone.
De acordo com a teóloga, tudo isso leva ao fundamentalismo religioso e à acentuação do repúdio a qualquer manifestação que fuja dos moldes do permitido. "O medo de reprimendas advindas das autoridades, representantes de Deus e dos possíveis castigos divinos também entram nessa pauta”, acrescenta.
"Será mesmo que Jesus foi desrespeitado por ela ou foram as ‘referências religiosas’ de políticos, de pregadores e de uma parte da população cristã que se sentiu ameaçada?”. Quem lança a pergunta é a teóloga feminista brasileira Ivone Gebara, discutindo o porquê de tamanha repercussão em torno da performance da atriz transexual Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo, no último dia 07 de junho. A ativista desfilou no maior evento de resistência LGBT do mundo, crucificada tal como Jesus Cristo e outros tantos de seu tempo, que eram penalizados pelo Império Romano. A pretensão foi simbolizar a perseguição e o sofrimento por que passa a população LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais].
Performance de Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo deste ano.
Em entrevista à Adital, a também filósofa e freira católica questiona se, em vez de uma suposta ofensa às religiões cristãs, por meio de uma blasfêmia ao símbolo de Cristo crucificado, não seria a relação de gênero o centro da questão. Não seria a conexão entre essas doutrinas e a exibição de um corpo feminino seminu, atuando como liderança de resistência e proposição na representação do martírio do líder maior do Cristianismo, o grande ponto de incômodo entre os setores conservadores?
"Creio que, no fundo, há uma resistência em aceitar não apenas a liderança feminina nas igrejas e na sociedade, mas, sobretudo, que o corpo feminino nu signifique mais do que o ‘corpo objeto’ usado e abusado pelos homens de todos os tempos”, discute Ivone. "Não se aceita que o INRI, ‘Jesus rei dos judeus’ em latim, se transforme em grito de alerta contra a servidão feminina ou contra a homofobia LGBT ou contra a exploração dos camponeses. Há muito mais coisas escondidas em nosso aparente puritanismo do que ousamos revelar”, provoca a teóloga.
Ainda que foque na questão de gênero, Ivone amplia o debate e afirma que o repúdio de parte da população a essa manifestação de resistência pode ser compreendido de diferentes maneiras. Ela sugere três pontos de reflexão relacionados à cultura cristã que nos circunda e ao uso que se faz dela. O primeiro deles remete a uma "concentração da sexualidade” e dos papéis de gênero como tendo de seguir regras pré-estabelecidas por "Deus” ou pela natureza.
"A ‘transgressão’ a esta ordem afirmada como divina agride muitos espíritos. Muitos/as acreditam numa normatividade sexual presente na cultura, proveniente de ordens divinas ou de algo inscrito na natureza física, independentemente da vontade dos seres humanos”, debate Ivone.
"Como aceitar que uma transexual atrevida se aproprie de um símbolo tornado cristão para expressar seu sofrimento e os sofrimentos coletivos, assim como a urgência de direitos? Não apenas a cruz se tornou símbolo cristão, mas tornou-se materialmente símbolo da excelência do sofrimento masculino. Dessa forma, qualquer mudança pode ser vista como agressão e, consequentemente, repudiada”, assinala a estudiosa feminista.
"Creio que, no fundo, há uma resistência em aceitar não apenas a liderança feminina nas igrejas e na sociedade, mas, sobretudo, que o corpo feminino nu signifique mais do que o ‘corpo objeto’ usado e abusado pelos homens de todos os tempos”, discute Ivone. "Não se aceita que o INRI, ‘Jesus rei dos judeus’ em latim, se transforme em grito de alerta contra a servidão feminina ou contra a homofobia LGBT ou contra a exploração dos camponeses. Há muito mais coisas escondidas em nosso aparente puritanismo do que ousamos revelar”, provoca a teóloga.
Ainda que foque na questão de gênero, Ivone amplia o debate e afirma que o repúdio de parte da população a essa manifestação de resistência pode ser compreendido de diferentes maneiras. Ela sugere três pontos de reflexão relacionados à cultura cristã que nos circunda e ao uso que se faz dela. O primeiro deles remete a uma "concentração da sexualidade” e dos papéis de gênero como tendo de seguir regras pré-estabelecidas por "Deus” ou pela natureza.
"A ‘transgressão’ a esta ordem afirmada como divina agride muitos espíritos. Muitos/as acreditam numa normatividade sexual presente na cultura, proveniente de ordens divinas ou de algo inscrito na natureza física, independentemente da vontade dos seres humanos”, debate Ivone.
"Como aceitar que uma transexual atrevida se aproprie de um símbolo tornado cristão para expressar seu sofrimento e os sofrimentos coletivos, assim como a urgência de direitos? Não apenas a cruz se tornou símbolo cristão, mas tornou-se materialmente símbolo da excelência do sofrimento masculino. Dessa forma, qualquer mudança pode ser vista como agressão e, consequentemente, repudiada”, assinala a estudiosa feminista.
Atriz afirma que pretensão foi representar perseguição contra público LGBT.
O segundo ponto levantado por Ivone se refere a um "reducionismo da moralidade social à sexual”. Neste aspecto, a teóloga aponta que a consideração e o respeito à diversidade dos seres humanos e a questão da urgência de justiça social e ecológica amplas acabam sendo tratadas como reivindicações menores. "A moralidade reduzida à sexualidade é sujeita ao controle de um grupo que se considera ‘eleito’ por Deus, representante e defensor das leis ‘ditas’ divinas”, explica.
"O reducionismo decorrente e suas nefastas consequências têm crescido assustadoramente, como forma de impor uma nova moralidade política através de um falacioso discurso moralizador dos costumes. Este tem rendido a eleição de muitos lobos vorazes vestidos de pele de cordeiro. O reducionismo tem sido liderado por grupos religiosos com amplo acesso aos meios de comunicação e a espaços políticos nacionais”, discorre Ivone. "Promovem uma guerra cultural contra a diversidade, confundem muitos adeptos e acabam tendo grande apoio popular. Os adeptos passam então a repudiar o que eles repudiam”.
O terceiro tópico tem a ver com uma produção desenfreada de violência, não só por organizações criminosas nacionais e internacionais, mas também por aqueles que encetam "guerras santas” contra os que são julgados "desviados” das "leis de Deus” e da natureza. "Leiam-se aqui também leis do capitalismo do mercado protecionista e individualista. Os ‘justiceiros’ são, na realidade, produtores de uma violência social incomensurável, visto que se disfarçam nos discursos religiosos, mostram-se pacíficos, pessoas de bem, mas iludem os mais simples, tornando-os partidários de suas interpretações da História e das intervenções divinas nela”, destaca a Ivone.
De acordo com a teóloga, tudo isso leva ao fundamentalismo religioso e à acentuação do repúdio a qualquer manifestação que fuja dos moldes do permitido. "O medo de reprimendas advindas das autoridades, representantes de Deus e dos possíveis castigos divinos também entram nessa pauta”, acrescenta.
Ivone Gebara estuda teologia feminista.
Ressisgnificação do símbolo
A teóloga contrapõe a tese de que Viviany tenha insultado uma crença religiosa por meio de uma agressão ao seu maior símbolo. Ela explica: "no caso da atriz Viviany Beleboni, o uso da cruz como ela o fez, não foi para destruir um símbolo caro a um grupo. Ela apenas ressignificou a cruz a partir de sua experiência de rejeição e agressão pessoal, e de outras companheiras. Assumiu o significado da cruz de Jesus injustiçado pelos poderes de seu tempo como referência à sua cruz atual ou ao suplicio que muitos grupos da sociedade brasileira atual lhe impõem”, argumenta.
"A cruz, na realidade, pode ter vários significados, para além da crucifixão de Jesus de Nazaré. De uma maneira experiencial, chamamos de cruz as situações impostas, as situações em que não há escolha ou saídas imediatas. Da mesma forma, situações e relações difíceis que duram longo tempo são identificadas como ‘nossa ou minha cruz’”, afirma.
Nesse sentido, Ivone lembra que também se crucifica uns aos outros através da ganância, da incapacidade de enxergar a diversidade e o pluralismo do nosso mundo, do cultivo da violência. "Somos, na realidade, algozes uns dos outros, juízes corruptos uns dos outros, mas também podemos ser ‘próximos’ solidários uns dos outros”, assevera a filósofa.
Ivone rejeita, enfaticamente, que o ato de protesto seja considerado uma heresia. "No caso específico de Viviany, não há heresia! Ao contrário, através da cruz ela manifestou a humilhação vivida pelos novos crucificados de hoje, que ela estava representando”, justifica. "Nessa perspectiva, não podemos esquecer que a cruz imposta a Jesus era para humilhá-lo e matá-lo. Por isso, é a luta contra a humilhação que nós seres humanos impomos uns aos outros e às outras que se elabora o discurso da ressurreição, ou seja, o discurso sobre a dignidade da vida e a busca contínua dessa dignidade. Os crucificados clamam por vida digna, por direitos, anunciam a necessidade de libertar-se, de saírem da ignomínia do sofrimento imposto”, afirma.
"Se quisermos polemizar, poderíamos até dizer que heréticos em relação ao Evangelho são aqueles que, hoje, atiram pedras nas vítimas da fome, que deixam morrerem refugiados, que impõem pesados fardos à vida das mulheres, que viram o rosto para a violência cometida contra os homossexuais e transexuais”, provoca a teóloga.
A teóloga contrapõe a tese de que Viviany tenha insultado uma crença religiosa por meio de uma agressão ao seu maior símbolo. Ela explica: "no caso da atriz Viviany Beleboni, o uso da cruz como ela o fez, não foi para destruir um símbolo caro a um grupo. Ela apenas ressignificou a cruz a partir de sua experiência de rejeição e agressão pessoal, e de outras companheiras. Assumiu o significado da cruz de Jesus injustiçado pelos poderes de seu tempo como referência à sua cruz atual ou ao suplicio que muitos grupos da sociedade brasileira atual lhe impõem”, argumenta.
"A cruz, na realidade, pode ter vários significados, para além da crucifixão de Jesus de Nazaré. De uma maneira experiencial, chamamos de cruz as situações impostas, as situações em que não há escolha ou saídas imediatas. Da mesma forma, situações e relações difíceis que duram longo tempo são identificadas como ‘nossa ou minha cruz’”, afirma.
Nesse sentido, Ivone lembra que também se crucifica uns aos outros através da ganância, da incapacidade de enxergar a diversidade e o pluralismo do nosso mundo, do cultivo da violência. "Somos, na realidade, algozes uns dos outros, juízes corruptos uns dos outros, mas também podemos ser ‘próximos’ solidários uns dos outros”, assevera a filósofa.
Ivone rejeita, enfaticamente, que o ato de protesto seja considerado uma heresia. "No caso específico de Viviany, não há heresia! Ao contrário, através da cruz ela manifestou a humilhação vivida pelos novos crucificados de hoje, que ela estava representando”, justifica. "Nessa perspectiva, não podemos esquecer que a cruz imposta a Jesus era para humilhá-lo e matá-lo. Por isso, é a luta contra a humilhação que nós seres humanos impomos uns aos outros e às outras que se elabora o discurso da ressurreição, ou seja, o discurso sobre a dignidade da vida e a busca contínua dessa dignidade. Os crucificados clamam por vida digna, por direitos, anunciam a necessidade de libertar-se, de saírem da ignomínia do sofrimento imposto”, afirma.
"Se quisermos polemizar, poderíamos até dizer que heréticos em relação ao Evangelho são aqueles que, hoje, atiram pedras nas vítimas da fome, que deixam morrerem refugiados, que impõem pesados fardos à vida das mulheres, que viram o rosto para a violência cometida contra os homossexuais e transexuais”, provoca a teóloga.
*Mestre em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estuda as
relações culturais na América Latina. Fonte: Adital
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