Toda vez que o PT ganha as eleições acontece o mesmo. Sob pressão dos
interesses do mercado, ele cede à oposição conservadora, desaponta seu
eleitorado, abre mão das propostas mais arrojadas, escolhe ministros que
satisfazem o mercado e incorpora uma parte das proposições que estão no
programa eleitoral que perdeu.
Cornelius Castoriadis, já no final do século XX, assinalava que os
políticos, sejam quais forem, são impotentes para mudar as coisas. O que
lhes resta é seguir a corrente, isto é, aplicar as políticas
neoliberais do interesse das oligarquias e das empresas, que, afinal,
financiam sua eleição[1].
Essas contradições mostram a precariedade de nossa democracia. Nas
eleições, um candidato progressista pode até ganhar, mas não leva. Tem
de compor, tem de ceder, para garantir sua capacidade de governar. É a
arquitetura do sistema político que leva a isso.
No primeiro ano de seu primeiro governo, Lula foi mais realista que o
rei e arrochou a classe trabalhadora para tranquilizar o mercado,
desarmar as pressões da oposição e garantir a governabilidade. Depois,
progressivamente, o governo foi adotando políticas que melhoraram
efetivamente a vida de muitos brasileiros. O modelo praticado então não
limitava a rentabilidade do capital; era de um reformismo moderado,
socorrendo os mais pobres e aumentando gradualmente a renda do trabalho.
Foi uma tentativa de atender a todos os interesses, mesmo que
contraditórios. Tentou-se assim evitar o confronto com os interesses do
capital e as ameaças de desestabilização do governo, que vinham de
dentro e de fora do país.
No entanto, a conjuntura mudou, estamos em tempos de vacas magras e não
dá para repetir a dose. Não há recursos para distribuir para todos. E
mesmo que houvesse, é hora de discutir publicamente a questão da
desigualdade. O modelo do financiamento público tem de mudar. O modelo
atual, que onera os mais pobres e isenta os ricos, não para mais em pé.
Sua permanência será fonte de conflitos sociais crescentes, e mesmo o
mercado precisa de estabilidade política para operar.
As ameaças da oposição conservadora estão sempre presentes. Pode ser a
impugnação da prestação de contas da campanha eleitoral, pode ser a
acusação de corrupção no mais alto nível de governo, pode ser o não
cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, enfim, são acusações que
poderiam servir muito bem para os acusadores, mas são usadas com o
objetivo de buscar encurralar o governo eleito, colocá-lo como refém
dessas ameaças.
O que quer a oposição conservadora? O rentismo quer continuar recebendo
algo como 5% do PIB para o pagamento do serviço da dívida pública
interna (cerca de R$ 230 bilhões em 2013) e quer continuar impondo juros
extorsivos aos consumidores e empresas. O agronegócio quer continuar
abrindo novas fronteiras para o gado e as plantações, degradando o meio
ambiente, destruindo as florestas, contaminando as águas com os
agrotóxicos, expulsando a agricultura familiar.
As mineradoras querem
entrar nas reservas indígenas e explorar de maneira predatória os
recursos minerais do país. As grandes empreiteiras querem mega obras de
bilhões de reais, que depois serão sobrefaturadas para auferir maiores
lucros e azeitar as relações com os dirigentes dos órgãos contratantes. E
os empresários exportadores, principalmente de commodities, querem
ferrovias, portos, energia, melhores condições que alavanquem seus
negócios, tudo isso financiado pelo dinheiro público. Querem a chamada
“liberdade de mercado” para a atuação dos cartéis que oligopolizam a
economia brasileira, querem novas isenções, não querem pagar impostos.
Querem também a redução do “custo Brasil”, com a precarização do
trabalho, da seguridade social, e o rebaixamento dos salários reais.
Essa disputa entre políticas redistributivas e concentradoras tem uma
grande importância em qualquer parte. Aqui no Brasil ela afeta a maioria
da população, pois os brasileiros são pobres: 66% da população tem
renda individual mensal igual ou menor a R$ 21/dia[2].
Contrastando com essa pobreza, 1% dos proprietários rurais detém 50% das
terras cultiváveis, e os 10% mais ricos ficam com 73,3% da riqueza
nacional[3]. A questão social e política da produção e
reprodução da desigualdade precisa ser enfrentada. Ela é um entrave para
o desenvolvimento e o bem-estar coletivo.
Dito de forma direta, a crise atual é a do pacto distributivo. Reduzir a
desigualdade exige aumentar a renda do trabalho (salários, pensões,
aposentadorias), investir fortemente em políticas públicas, e reduzir a
renda do capital (lucros, juros, aluguéis, renda da terra). Essa
tendência já vem se afirmando nos últimos anos. Em 2003, a participação
dos salários no PIB era de 39%; em 2013, ela foi de 47%[4]. É, sem dúvida, uma melhora, mas a realidade é que ainda hoje a pobreza está presente em mais de 70% dos lares brasileiros.
O caminho das reformas é o caminho de uma transição negociada numa
perspectiva de progressividade, gradualismo. Para isso é necessário
reforçar democraticamente o papel do Estado como regulador do processo
distributivo e como agente direto executor de políticas públicas de
garantia de direitos. O Estado deve garantir a oferta de bens públicos
como educação, saúde, transportes coletivos, saneamento básico, entre
outros, mas não pode mais apresentar a conta para essa maioria pobre,
pela via da cobrança de tarifas, ou embutindo impostos nos produtos de
consumo, por exemplo. Esses serviços públicos devem ser pagos pelo
conjunto dos impostos, por meio de novas políticas tributárias que
incidam sobre as grandes fortunas, as heranças, as transações
financeiras, os imóveis nas zonas nobres da cidade, a propriedade da
terra.
[*] Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
1 Cornelius Castoriadis, “Stopper la
montée de l’insignifiance” [Parar a escalada da insignificância], Le
Monde Diplomatique, ago. 1998.
2 Datafolha, nov. 2013.
3 Crédit Suisse, Global Wealth Report 2014.
4 Marcio Pochmann, “Seu país, as eleições e os rumos da democracia”, Rede Brasil Atual, n.97, jun 2014
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