Descarnamento e perfeccionismo moral na internet: a teologia da violência pseudopolítica
Segue abaixo artigo em que encontraremos, após, muita observação, estudo, e análise, por parte da autora, um diagnóstico da explosão de violência, ocorrida em junho de 2013, e de forma estarrecedora, tal clima de agressividade assistimos antes das eleições, e pó-eleições basta refletirmos sobre o legado, demonstrado abaixo, sinônimo de completa despolitização, deliberada, até quando permitirmos.
Portanto reforma Politica já, com plebiscito, convém ressaltar.
Não como alguns setores que já vêm ponderando sobre o que devemos aprovar, entre o que o congresso deve nos oferecer o que, efetivamente, queremos.
Insisto, ainda, no meu entendimento, de que a reforma deva ser pra valer, ou seja:
Verticalização das alianças eleitorais, em nível nacional;
Fim das coligações nas eleições proporcionais e cláusula de barreira, coligações só havendo identidade política;
Financiamento público de campanha e financiamento privado, fim do financiamento empresarial;
Lista fechada e fidelidade partidária;
Fim das coligações nas eleições proporcionais e cláusula de barreira, coligações só havendo identidade política;
Financiamento público de campanha e financiamento privado, fim do financiamento empresarial;
Lista fechada e fidelidade partidária;
Sem voto distrital, e/ou distritão, tais modalidades despolitizam os eleitores;
Vale a pena ler o artigo, esclarecedor.
A
internet e as redes sociais tornaram possível a emergência de uma
teologia peculiar, onde a ausência de contradições anda de mãos
dadas com a intolerância.
Por Katarina Peixoto[*]
Dentre os motivos para os evangélicos pentecostais gerarem aversão em quem é letrado está o seu casamento de rudeza intelectual com robusta ignorância histórica. No entanto, essa união estável carrega faceta ilusória: quem, com razão, acha a militante leitura antimetafórica da bíblia, pelos pentecostais, repugnante, pode facilmente dar de barato uma suposta trivialidade das conquistas da Revolução Francesa e da defesa do estado laico, no nosso dia a dia. Tudo se passa como se a nossa experiência cotidiana não fosse, de fato, travejada de religiosidade e determinações enraizadas teologicamente.
A
situação de penúria política do debate público no Brasil fomenta
a ilusão da laicidade e do caráter republicano de nossa vida em
sociedade. De fato, a teologia e a religião vigoram, não apenas nas
instituições e nas leis – a mais escandalosa das quais segue
sendo a criminalização da interrupção de gravidez, que vitima
centenas de milhares de mulheres miseráveis ao ano -, mas em muita
violência antipolítica, em particular aquela que tem marcado os
protestos de rua, ao longo dos últimos meses, no Brasil. E, com a
democratização do acesso à banda larga, na internet e nas redes
sociais, abriu-se um surpreendente espaço para uma nova expressão
teológica: a sacralização das categorias morais e políticas
constituídas em imagens e denúncias descarnadas, no ambiente
antiexperiencia característico da internet.
Define-se
como teologia por operar duas tendências que requerem a vigência de
um sagrado, imaginariamente originário, que justificaria algum
retorno a uma realidade paralela, superior à atual. A primeira
tendência é a do perfeccionismo moral e a segunda, a sua correlata
irmã gêmea: a intolerância. Ambas seriam instanciações de um
sagrado: um idílico poder popular em que não se concebe
representação, palavra, organização, agenda, direitos, distinção
entre direito e potência, distinção entre público e privado e
qualquer opacidade que instaure a curiosidade aberta e sincera ou o
respeito à diferença. É um paraíso bizantino, sem profundidade:
tão capaz de espelhar a realidade como um pedaço de pedra nas mãos
o seria.
Estas
concepções idílicas de democracia e poder popular estão para a
democracia e o poder popular na mesma relação que uma banana está
para o alicate. Assim, nas redes sociais e na internet, ser
vegetariano, por exemplo, e não ser vegano, é um problema moral,
porque, se você consome leite, obviamente é cúmplice do abuso de
vacas e do assassinato de bezerros. Logo, você é imoral. Se você
come gado, você é um assassino. Dificilmente se discutirá sobre
alguma coisa com você, de qualquer outro domínio, sem que esse
quesito acusatório, subliminar e nem tanto, compareça, a título de
alguma desqualificação sub-reptícia – e nem tanto.
Se
você se preocupa com a situação de cães e gatos, você é um
covarde e cúmplice com a situação de crianças abandonadas e a dos
refugiados do norte da África. Em quem você vota ou votou? Fiquem
sabendo que, nas redes sociais, “governista” é um adjetivo moral
cujo sinônimo é: você é indecente, mata índio, apoia a violência
policial e se locupleta.
É
o reino da impostura normativa vestida de perfeccionismo moral. Ora,
não é exigido muita escolaridade para saber que o princípio de não
contradição é uma condição de sentido do pensamento e da
inteligibilidade do que se diz, e não da realidade. O único domínio
absolutamente carente de contradições é o domínio da aritmética
(e olhe lá); até mesmo a religião tem de parir uma teologia para
enfrentar os problemas das contradições (pense-se na moralidade de
uma moça que engravida de outro rapaz, que não o seu consorte, e
ainda por cima virgem, e o pai não é Deus, nem se sabe direito o
que é; só uma teoria do mistério pode dar conta desse tipo de
coisa). E é no domínio teológico que o uso de palavras se torna,
ou não, requerido.
A
teologia que a internet tornou possível
Mas
a internet e as redes sociais tornaram possível a emergência de uma
teologia peculiar: trata-se de uma terra paralela em que a ausência
de contradições anda de par com a falta de sentido e com a mais
medonha intolerância. E, de um tempo para cá, no Brasil, esse caldo
de irracionalidade está levando adolescentes a um comportamento de
horda, que introduziu um tipo, sem precedentes, de violência
degenerativa da autoridade política dos movimentos sociais.
De
junho para cá, como rêmoras com tentáculos de celenterados ao
redor de manifestações, essas hordas passaram a transformar
passeatas e manifestações em cenários de violência, sem que esta
sequer seja reivindicada como meio ou veículo de qualquer, a mínima
que seja, demanda. Estamos, na melhor das hipóteses, muito distantes
de qualquer manifestação anarquista (anarquismo não é anomia,
nunca foi, nem será).
O
que faz com que a imagem ou as imagens de quebradeira de patrimônio
público e de pancadaria apareça como alguma radicalização, à
esquerda, da luta social?
Em
que momento histórico vivem as pessoas que interpretam uma
pancadaria em si mesma e por si só, expressão de alguma
radicalização? Estaríamos por acaso vivendo um momento histórico
de acúmulo de luta popular, de levantes organizados, da sociedade,
em busca de direitos, que contém braços armados em suas
organizações, de setores mais ou menos sectários? Se é assim, se
é isso, por que esses supostamente radicais não emitem uma só
palavra e recusam o uso de qualquer expressão verbal? Como é isso
de revolução muda? Se são os espancamentos e as suas imagens, por
policiais, o que assegura o título de radicalização política, por
que essa radicalização não é verificada nos espancamentos, nas
torturas e nas prisões diárias, cometidas pelas polícias militares
do país, há décadas, dos pobres e miseráveis que padecem com a
velha conhecida arbitrariedade das polícias militares?
O
estado se tornou policial quando a gurizada de classe média passou a
exigir que os seus delitos, ao molde dos criminosos de colarinho
branco, sejam julgados com complacência, é isso? É o sujeito em
quem a polícia bate o que define o estado policial? Intrigante
concepção de democracia e de república essa, que requer, não a
conduta, mas os sujeitos da conduta, para considerar a
imputabilidade. Algo sem precedentes na literatura. Nenhum movimento,
nenhum sindicato, nenhum partido e nenhuma organização coletiva,
nem mesmo as anarquistas, reconhecem essa horda como uma extensão
sua.
Não
precisa muita reflexão para saber que política sem palavra é como
um círculo quadrado: não é pensável. E a questão então é esta:
por que a complacência e a tolerância com a violência e a
intolerância encontram amparo e força na internet e nas redes
sociais? O que tornou esses ambientes terreno fértil e estímulo à
violência física?
Não
há política sem palavra e não há verdade, na Política, sem
experiência
Uma
primeira resposta possível pode estar naquilo que Chomsky entendeu,
e Foucault, não, quanto à origem da linguagem. Uma segunda
resposta, em linha de continuidade ao legado chomskyano, está na
revisita ao tratamento dado por Tomás de Aquino àquilo que
justificaria o uso de palavras. O célebre debate de Chomsky com
Foucault, sobre a origem da linguagem, foi resolvido. Chomsky venceu
no quesito extensional, isto é: há prerrogativas biológicas
independentes de nossa condição cultural que nos tornam aptos à
linguagem. Foucault vigorou, devidamente, em outros aspectos, menos
na filosofia que na história das ideias, e deu duas contribuições
gigantescas ao pensamento: o magistral As Palavras e as Coisas e os
seus estudos e a grande denúncia neles contida do disciplinamento
autoritário do sofrimento mental.
O
que importa reter do que foi legado pelo maior linguista do século
passado e pelo mais consequente anarquista vivo, é que o dispositivo
voltado à fala é parte de nosso corpo. E é aí que,
surpreendentemente, a contribuição de Chomsky dá guarida a uma
leitura da metáfora do mito da queda, segundo Tomás de Aquino.
Na
Suma Teológica, I, Questões 80-86, há o tratamento do estatuto do
homem a partir do qual se pode entender a relação entre
corporeidade e uso da palavra. Por mais distantes que essas
considerações possam soar, elas constituem um pano de fundo capaz
de iluminar as trevas que tanto contaminam o paraíso distópico dos
movimentos descarnados, que encontram na internet uma tábula rasa em
permanente apagamento e preenchimento (tábua de areia, das
criancinhas no jardim de infância, talvez seja a boa imagem), quer
dizer, um ambiente sem e anti-experiência, incapaz, como vai de si,
de fazer história.
O
que se deve reter do tratamento de Tomás de Aquino da queda do homem
num corpo nu, do qual o homem é consciente - consciente, vale dizer,
de sua condição desejante - instaura, segundo a tradição
teológica cristã mais rigorosa - a tomásica - a necessidade do uso
da linguagem. O que é fascinante nesse tratamento teológico, que
aqui se pretende ler metaforicamente, é que os homens só passaram a
requerer o uso da palavra na medida em que se viram como portadores
de um corpo, cuja nudez e cuja capacidade desejante introduziram
opacidade, elementos obscuros, à experiência. Antes de comer a
maçã, Adão e Eva, assim como os anjos, não falavam. Eles não
falavam porque os seus intelectos eram transparentes entre si, de tal
maneira que o uso de palavras não era requerido. A consciência do
desejo, como derivado do corpo, instaura entre os homens elementos a
serem ultrapassados, superados, e é por isso que os homens, segundo
a boa tradição cristã, isto é, aquela tradição que um dia
pensou, falam, usam a palavra e escrevem. Usar a palavra é,
portanto, condição de possibilidade de retorno ao paraíso, de
acesso à transparência perdida para sempre, com o advento da
consciência do corpo como algo a um só tempo próprio – da
consciência desejante – e voltado ao outro.
Como
saber do desejo do outro, como comunicar o desejo ao outro, como,
sendo desejante e entre seres desejantes, deixar claro o que se
pensa, agora, que o universo comunicativo está carregado de
barreiras – corporais, afetivas, desejantes – capazes de toda
opacidade e, portanto, escuridão?
Observem
como essa narrativa pode ser mais fecunda que aquela derivada do
debate de Foucault com Chomsky, quando menos no que concerne ao uso
de palavras. Falar, escrever, usar palavras, enfim, passa a ser algo
associado, ontologicamente, à experiência, à corporeidade e à
alteridade. Mais ainda: é a experiência da consciência do próprio
desejo que instaura qualquer imperativo moral, o qual se expressa
pela palavra. Pode parecer meio surpreendente que Tomás de Aquino
forneça um elemento tão iluminador para a inteligibilidade de
fenômenos como a mobilização antiexperiência, na internet. Mas
essa surpresa é característica da penúria intelectual que anda de
par com os revolucionários de rede social e os seus seguidores, que
apanham da polícia, levam até mesmo tiros, por acreditarem nas
cretinices descarnadas, desmemoriadas e, sobretudo, não vividas, dos
ilustradíssimos opositores dos pentecostais, esses seres ridículos
que eles gostam de criticar, sem saber do que são feitos, como se
lhes fossem muito diferentes.
O
que está implicado na consciência do próprio desejo?
Ter
consciência de que se é desejante, ao saber-se encarnado, implica a
necessidade de usar as palavras para comunicar o que quer e o que
pensa. Usar palavras, portanto, nunca é prerrogativa de seres
inocentes, idílicos, puros. Quem usa a palavra só o faz porque está
mergulhado, obscurecido, limitado, condenado – à finitude – à
experiência; isso é o que se pode depreender tanto de Chomsky, como
de Tomás. E a experiência é espaço temporal, sensível,
histórica, moral, política. Por isso, na medida em que há uma
explosão de violência em que uma das partes, que não a polícia,
recusa a palavra, a expressão verbal e qualquer conexão moral ou
política com os outros, tem-se uma manifestação paradoxalmente
descarnada: guarda as prerrogativas do paraíso idílico, em que
palavras não são requeridas, para denegar o uso de palavras, no
confronto físico mais imediato, o qual, paradoxalmente, conta apenas
com corpos em movimento (e onde todo pensamento e capacidade de fala
parece obnubilado).
O
que o mergulho no corpo sem consciência desejante demonstrada e
expressa em palavras revela é, assim, a materialização de uma
teologia distópica, niilista e cínica: não é preciso falar, é
preciso quebrar, não é preciso dizer o que se pensa, é preciso
destruir, não importa o que se quer, nem o que não se quer, importa
o que se faz na rua. Quem quebra, obedece ao sagrado, abençoado
pelas expressões descarnadas. E, no templo, merece os aplausos dos
membros das seitas dos descarnados que nunca vão às ruas.
Que
um adolescente não saiba o que foi a ditadura civil-militar e que a
tortura policial e armada nunca foi punida, no Brasil, é um problema
da sua escola e família. Ambas fracassaram neste quesito, que é um
quesito de cidadania elementar. Afinal, para quem é democrático,
andar na rua e dizer o que pensa não são trivialidades, mas
conquistas. Agora, que um ou vários adolescentes vão para as ruas
armados com pedras e paus para quebrar o que virem pela frente,
inclusive patrimônio público, equipamentos públicos, como
iluminação, bancos de praça, lixeiras, bancos, é um problema da
sociedade e do estado. E que o façam parasitando movimentos sociais
é um problema para a esquerda e para as forças democráticas do
país.
Isso
é claro, mas a impostura do perfeccionismo moral associado à
intolerância, descarnados na internet e nas redes sociais,
transformaram condutas delituosas em movimentos de radicalização.
Esse delírio, carregado de má-fé e imposturas intelectuais e
desavisados políticos, já está custando caro a quem está preso, a
quem foi preso, a quem foi baleado e às suas famílias. E não
adianta denunciar um novíssimo estado policial, como se a polícia
militar, no Brasil, em algum momento de sua história, tivesse sido
um interlocutor democrático de pedras, camisetas no rosto, máscaras
e pedaços de pau na mão.
A
rua é a internet. Mas a internet não é a rua.
Se
levarmos em conta uma conjuntura de 15 anos de lutas populares ou de
manifestações de rua, poderemos compreender algumas peculiaridades
esclarecedoras. A luta contra as grandes corporações, a finança
desregulada, o desfazimento do estado de bem estar social e contra o
desemprego e o precariado marca as manifestações de rua e da
juventude, sobretudo, tanto na América do Norte como na Europa. Nos
países do Magreb ainda não está claro como se articulou o
enfrentamento às ditaduras na Tunísia e no Egito. O terreno em que
as lutas e as mobilizações se dão, no entanto, é o mesmo: a
internet e as redes sociais. Foi assim possível um movimento como o
Fórum Social Mundial, hoje falecido. A velocidade e a dinâmica de
sua criação andam de par com a de sua destruição e
desmobilização. E a direita e sua agenda seguem avançando,
retirando direitos e aumentando o esfacelamento do mundo do trabalho.
Onde há ou houve violência anômica (Espanha, França em 2005,
Itália), houve uma reação regressiva da extrema direita (Rajoy,
Sarkozy, Berlusconi). Nada se acumula nem se produz e, pior, nada se
conquista.
No
Brasil, embora não haja nem tenha como haver, ainda, um diagnóstico
e pesquisas sobre as lutas que explodiram desde junho, há um outro
contexto. Aqui, a precariedade das relações de trabalho, a exclusão
social, a desagregação de direitos e o domínio do mundo privado
sobre a esfera pública, bem como a explosão de desemprego na
juventude não são fatos. A mera transposição dessas realidades,
portanto, a fim de diagnosticar o que se passa aqui constitui, na
melhor das hipóteses, uma impostura. No entanto, a articulação, o
fomento e o acolhimento, na internet e nas redes, do que está se
passando, sobretudo na sua faceta anômica e niilista, são os
mesmos. E, ao contrário do que se passou a dizer, de maneira um
tanto ligeira, que estaríamos a viver uma crise de representação,
o que se passa é o avesso disso: há uma intolerância com qualquer
ideia mesma de representação, mediação, castração, contenção,
reflexão. Não é uma questão geracional, tampouco. O problema, no
Brasil, é político, fundamentalmente político, e por ele o governo
federal é diretamente responsável.
A
“rua” em que se transformou a internet parece cumprir a função
de desaguadouro de insatisfações e críticas de deserdados da
experiência Lula. O governo Dilma, não por conta de sua relação
com o PMDB, mas por escolhas que independem disso, deu passos
regressivos na direção do acúmulo à esquerda, já havido por
ocasião do governo Lula. O governo federal hoje navega numa gestão
de excelência em manutenção do ajuste da trindade da finança
(cambio flutuante, superávit primário, controle inflacionário via
taxação de juros), no fomento ao mercado interno e no
extraordinariamente bem sucedido Brasil Sem Miséria. Mas os
ministérios da cultura, da educação e do meio ambiente, bem como a
mudez e timidez do PT em relação a temas como o avanço dos
evangélicos no Congresso e nos direitos civis e no meio ambiente,
contribuíram para que os templos descarnados do gozo das
insatisfações ficassem cheios de seguidores. Junte-se a isso a
paulatina pedagogia midiático-monopólica, de que todo mundo é
bandido, de que ninguém responde pelos crimes e de que nenhuma
instituição pública é séria e tempere com fotografias, tiradas
em smartphones e instagramizadas. O problema, no entanto, é que a
internet não é a rua. E, na rua, as coisas, a luta, ganham carne. E
é aí que os militantes online revelam a moralidade descarnada do
perfeccionismo moral e da intolerância que navega sem atrito nem
obstáculo, sem crítica nem debate algum, nas redes e sites.
A
pergunta pelas origens dessa anomia, como apontou, com propriedade,
Wanderley Guilherme dos Santos, passa longe de uma explicação
suficiente, agora. No entanto, pode-se e deve-se fazer algumas
questões: o que a ausência de corporeidade consciente, no que
aparece e é divulgado, em altíssima velocidade, na internet,
implica, para a experiência da democracia brasileira? Por que o
terreno fértil para o perfeccionismo moral e a intolerância foram
recepcionados por soi disant militantes ou intelectuais de esquerda?
Como se chegou a embarcar num ambiente paralelo, cravejado de
sagrados, que mais parece apontar para um mito do eterno retorno, nos
termos formulados por Mircea Eliade, do que para uma arena da
experiência histórica, do discurso, do debate, da escuta e da fala,
num contexto afetivo?
Desprezar
os crentes, conversar com os descrentes
Vale
dizer que a duplicação do real, constitutiva dos mitos do eterno
retorno, segundo Eliade, é característica de sociedades
pré-estatais, em acepção moderna da palavra. Diante de um contexto
de obscurantismo e dificuldade, postula-se ou projeta-se,
imaginariamente, um ponto ao qual o retorno é não apenas possível,
como devido, quer dizer, postula-se uma normatividade que torne a
experiência moral, linguística e política possíveis e portadoras,
como vai de si, de sentido e de história. Com o advento e a
conquista do estado moderno e das instituições, e, em seguida, da
democracia republicana, a experiência normativa também se atualizou
e a sacralização perdeu, progressivamente, o poder. É por vivermos
ou termos tido aqueles que há duzentos anos fizeram essa travessia,
que as figuras religiosas antirrepublicanas nos agridem ao intelecto
e ao gosto.
Por
que, então, legitimar e reconhecer tamanha regressão política e
histórica? O governo, o PT e os demais partidos da esquerda, bem
como alguns dos mais poderosos movimentos sociais obviamente que
devem responder por isso. A lista de irresponsabilidades é longa.
Ninguém discute a irrelevância dos revolucionários de rede social,
cujo compromisso político e histórico se encerra com o computador
desligado. O que é preciso levar a sério é a violência de que
esses anjos distópicos, mudos, inexpressivos, não-reconhecidos –
talvez até mesmo em suas famílias -, são capazes. E o quanto essa
violência convida a mais regressão. Não é a sua irrelevância
político-eleitoral o que está em jogo, não é o esquerdismo de
ocasião, que associa, com o refinamento intelectual de uma jamanta,
a violência anômica a uma expressão anárquica ou a uma
radicalização de movimentos sociais.
O
que está em jogo é a relevância político-eleitoral dos que seguem
surfando acima e além desses anjos distópicos, desprezando essa
teologia descarnada, a um só tempo perfeccionista e intolerante. O
que está em jogo é o que a esquerda, que ainda há, e o governo, no
que há, farão, com os anjos descrentes de tudo.
O
descompasso entre avanços econômicos e de políticas de combate à
miséria, e a qualidade política e cultural dos avanços do governo
é lancinante. O governo, já que o quadro partidário é
lamentavelmente de penúria política sem precedentes, deve retomar o
terreno perdido para a barbárie descarnada derivada das portas
fechadas à esquerda, neste governo.
Não
é preciso conversar com os crentes que os animam ou abençoam, como
abençoando à própria covardia enquanto seres desejantes. É
preciso conversar e escutar e dialogar e enfrentar os descrentes.
Antes que o casamento da rudeza intelectual com a robusta ignorância
histórica resolva adotá-los. Aí, sim, teríamos um inferno.
* Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS)
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