Trajetória e deslocamento distributivo no Brasil


Desde 2003 vem ocorrendo um processo de inversão de prioridades. Com isso, houve menor deslocamento de recursos públicos ao rentismo, bem como o estabelecimento de novas políticas de renda acrescidas ao apoio às classes trabalhadoras na forma de emprego em profusão e elevação da renda na base da pirâmide social.

por Marcio Pochmann[*]







A livre evolução das forças de mercado aponta historicamente para a concentração da renda e da riqueza. Pela mão do Estado, a intervenção sobre a dinâmica capitalista permite produzir resultados distintos, dependendo da correlação de forças políticas, capaz de reverter a trajetória distributiva centralizadora na forma de ações institucionais que desloquem fluxos de renda apropriados por proprietários e segmentos privilegiados da sociedade para as classes do trabalho.

De acordo com a atual literatura internacional especializada, países capitalistas avançados que até pouco tempo eram referência em termos de trajetórias distributivas menos concentradoras voltaram a se conectar com o passado perverso. Ou seja, um retorno dos indicadores alarmantes da crescente pobreza e da piora na repartição da renda em decorrência das políticas neoliberais.1

O Brasil, por outro lado, segue perspectiva distinta desde 2003, quando abandonou o receituário neoliberal e passou a reduzir simultaneamente a pobreza e a desigualdade de renda. Esse positivo movimento se mostra específico na comparação com os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que não conseguem combinar a redução da pobreza com a diminuição da desigualdade de renda.

Já os países do continente americano que realizaram mudanças constitucionais progressistas por meio da formação de maiorias políticas avançadas (Bolívia e Equador) apresentam desempenho superior em termos do rebaixamento conjunto na pobreza e na concentração da renda. No caso de nações da região que prosseguem aliadas às políticas neoliberais (Colômbia e México), a performance brasileira tem sido bem melhor em comparação.

Diante disso, o presente artigo procura identificar as distintas trajetórias distributivas no Brasil desde 1960, quando o IBGE passou a pesquisar a renda da população. Na sequência busca-se descrever o recente deslocamento no fluxo da renda a partir dos anos 2000, capaz de explicar a queda tanto na pobreza como na desigualdade no país.



Trajetórias distributivas

Nas últimas cinco décadas, a distribuição na renda do trabalho no Brasil apresentou três trajetórias distintas, em conformidade com as estatísticas oficiais. A primeira ocorreu entre os anos de 1960 e 1980, com a diminuição no peso relativo do rendimento do trabalho na renda nacional de 11,7% e com a piora da desigualdade na distribuição pessoal da renda de quase 22%.

A segunda trajetória distributiva aconteceu entre os anos de 1981 e 2003, quando a participação do rendimento do trabalho na renda nacional acumulou prejuízo de 23%. Ao mesmo tempo, a desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho permaneceu praticamente inalterada, com a queda média anual de 0,1%.

Por fim, a terceira trajetória distributiva encontra-se em curso desde 2004, com a elevação na participação do rendimento do trabalho na renda nacional de 21,2%. Em relação à desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho, constata-se diminuição de 12,3%.

O gráfico 1 registra a evolução dos índices de participação no rendimento do trabalho na renda nacional e na desigualdade pessoal na renda do trabalho, medida pelo índice de Gini.



Deslocamento recente nos fluxos de renda

Na primeira década do século XXI, o deslocamento no fluxo de renda expressou tanto a contenção dos ganhos financeiros (rentismo) como o crescimento do rendimento do trabalho acima da expansão da renda nacional. A deflação dos ganhos financeiros sustentados pela transferência de recursos públicos enquanto proporção da renda nacional resultou da inversão de prioridades por parte das políticas governamentais.

Para que ocorresse a redução relativa das transferências de recursos públicos aos proprietários de aplicações financeiras foi necessário o reposicionamento do governo federal em relação ao endividamento do setor público herdado em 2003. Inicialmente, ressalta-se o encerramento da longa fase dos repasses de parcela do excedente econômico gerado pelo país ao exterior, por meio da resolução da dívida externa durante o governo Lula.

Recorda-se que a partir da crise da dívida externa, logo no início da década de 1980, o Brasil passou a transferir parte anual da renda interna aos credores externos. Por força da política econômica de ajuste exportador, o país conseguiu deslocar para o exterior cerca de 4% do PIB como média ao ano.

Essa quantia chegou a ser maior em alguns anos, como na crise financeira de 1998, que levou o Brasil a solicitar novamente um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar a quebra de sua economia. Mas, a partir dos anos 2000, o Brasil transitou da condição de devedor para a de credor do FMI, tendo resolvido o problema da dívida externa que implicava deslocar ao exterior parcela dos fluxos de renda interna gerada.

Na sequência, ressalta-se a contenção do processo de deslocamento no fluxo da renda interna para o processo de financeirização da economia brasileira. Isso porque na década de 1980, por exemplo, as transferências dos recursos públicos para os detentores das aplicações financeiras ocorriam por meio das altas taxas de inflação e acompanhadas da ampla indexação financeira.

Assim, a dívida pública interna, que era responsável pelo deslocamento de recursos públicos para os segmentos com posse de títulos financeiros, passou de 29,7% do PIB em 1981 para 57,6% em 1984. Em 1994, a dimensão da dívida líquida do setor público representava 30,9% do PIB.

Com o fim da fase de superinflação, a partir de 1994, o endividamento do setor público voltou a crescer, chegando a atingir 55,5% do PIB em 2002. Além disso, o predomínio das políticas neoliberais nos anos 1990 levou ao aumento da carga tributária e à venda de parte do patrimônio produtivo estatal ao setor privado.

O deslocamento no fluxo de renda interna ao rentismo se apresentou contínuo, tendo o pagamento dos juros da dívida pública alcançado 14,2% do PIB em 2002. Na média do período de 1995 a 2002, o Estado transferiu anualmente cerca de 9% do PIB para os detentores da dívida pública brasileira. Em oito anos, a quantidade de recursos públicos transferida acumuladamente ao rentismo equivaleu a 70% do PIB de 2002.

O abandono da política neoliberal desde 2003 implicou a reversão gradual do volume de recursos deslocados do setor público ao rentismo. Por meio da substancial diminuição da dívida pública, acompanhada do alongamento nos prazos dos títulos do endividamento, da recomposição de seus indexadores e do rebaixamento da taxa de juros, a economia no pagamento dos juros se fez presente.

Em 2013, por exemplo, a quantidade de recursos comprometida com o pagamento dos juros da dívida pública foi de 5,7% do PIB, o que equivaleu a apenas 40,1% do que havia sido transferido para o rentismo em 2002. Contribuiu para isso a redução relativa da dívida pública em 40%, uma vez que passou de quase 60% do PIB, em 2002, para menos de 35% do PIB, em 2013.

Em 1980, quando o processo de financeirização de riqueza ainda não havia se instalado no Brasil, o pagamento de juros da dívida com recursos públicos representava menos de 2% do PIB ao ano. Naquele ano, a dívida pública equivalia a apenas um quarto do PIB.

Em síntese, a contenção do fluxo de renda gerado para as aplicações financeiras a partir de recursos públicos equivaleu à economia de cerca de cinco a seis pontos percentuais do PIB na comparação dos anos 2000 com a década de 1990.

De todo modo, a interrupção do neoliberalismo no Brasil permitiu a poupança do setor público em torno de 8,5% do PIB, se comparados os gastos com despesas financeiras entre o ano de 2013 e o de 2002. Com o esvaziamento dos recursos públicos transferidos ao rentismo, novas oportunidades de realocação de parcela do fluxo da renda nacional foram abertas para os investimentos públicos, as políticas sociais e as garantias de renda aos segmentos pertencentes à base da pirâmide social.

Em função disso, a massa de rendimentos do trabalho cresceu acima da expansão do PIB nos anos 2000, o que apontou para a inflexão da trajetória de parcela da renda nacional tradicionalmente apropriada pelos proprietários (renda da terra, lucros, juros e aluguéis). De acordo com o gráfico 2, verifica-se o deslocamento concentrado nos segmentos de baixa renda na curva de distribuição dos rendimentos individuais dos brasileiros entre 2011 e 2001.

Nos termos da distribuição do rendimento monetário auferido pela população brasileira em 2011, constata-se que a faixa de remuneração situada entre R$ 150 e R$ 600 mensais foi a que mais se distanciou da curva da distribuição de 2001. Em grande medida, esse estrato de rendimento expressa o impacto dos aumentos no valor do salário mínimo nacional, assim como das políticas sociais de garantia de renda aos inativos beneficiados pela Previdência Social.

Também se destaca que a ampliação na quantidade e nos valores reais dos benefícios pagos pelos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, se mostrou determinante para o deslocamento da curva da distribuição da população nos menores rendimentos entre os anos de 2011 e 2001.

Por força da geração de mais de 20 milhões de novas ocupações ao longo dos anos 2000, sendo 90% delas com remuneração de até dois salários mínimos, passou a se conformar o novo proletariado brasileiro, que expressa o movimento do deslocamento de parte do fluxo de renda para os trabalhadores. Em outras palavras, o crescimento da massa de rendimento do trabalho acima da renda nacional convergiu para que o segmento que responde a entre 6% e 38% dos brasileiros mais pobres no conjunto da população pudesse ascender econômica e socialmente.

Em função disso, o sucesso recente do Brasil no enfrentamento da pobreza e desigualdade de renda refere-se à mudança na trajetória distributiva herdada até 2002. Para que isso viesse a ocorrer, foi necessário alterar o deslocamento de renda anteriormente concentrado na transferência de parcela dos recursos públicos para o rentismo e no esvaziamento das políticas de apoio à massa dos rendimentos dos trabalhadores.

Desde 2003, todavia, vem ocorrendo o processo de inversão de prioridades. Com isso, houve menor deslocamento de recursos públicos ao rentismo, bem como o estabelecimento de novas políticas de renda acrescidas ao apoio às classes trabalhadoras na forma de emprego em profusão e elevação da renda na base da pirâmide social.

Ainda há muito mais o que fazer em termos de combate à má repartição de renda, bem como no processo de inclusão social; entretanto, o que já foi feito apresenta resultados inegáveis e de difícil comparação histórica. 



* Marcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do TRablho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Ilustração: Lollo

Notas


1 Ver a respeito: Oxfam, Working for the few [Trabalhando para poucos], Londres, 2014; ILO,Global employment trends [Tendências do emprego global], Genebra, 2014; Thomas Piketty,Capital in the twenty-first century (O capital no século XXI), Cambridge, HUP, 2014.





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