O rolezinho como revelador do racismo e de estigmas eufemizados no cotidiano

Santiago


COLOCANDO O DEDO NA FERIDA









 
A resposta dada pelos empresários dos shoppings não é racional, é cultural. Eles se expressaram com a única convenção social que possuem em mente: a da exclusão histórica de pobres e pretos


por João Paulo Aprígio Moreira[*], Marcio Rogério Silva[**], Maria Chaves Jardim[***], Thais Joi Martins[****]



Ao som de muito funk, acessórios e roupas de marcas, adolescentes e pré-adolescentes se identificam como “nós somos as rolezeiras”. “Rolezeira? Eu sou rolezeira”, responde a jovem à repórter do UOL. “Rolê? Rolê, para mim, é curtição, é sair, beijar na boca.” Na miríade de significados atribuídos ao “rolezinho” que encontramos na mídia, evocamos uma cena clássica a título de reflexão: a praça central das cidades natais de nossos pais e avós, pelo interior do país. A praça era dividida: em uma parte, as pessoas do “morro”; na outra, geralmente diante dos casarões que a circundam, os jovens filhos dos proprietários desses imóveis. A princípio, flertavam em convivência harmoniosa em torno do footing – uma espécie de “rolezinho de antigamente”.
O frisson causado pela atualização desses eventos em shoppings não deixa de evidenciar o que as antropólogas Rosana Pinheiro-Machado e Milene Mizrahy destacaram sobre eles. A primeira se concentrou nos elementos estruturais dessa transformação, realçando as assimetrias sociais e, novamente, a falácia da democracia brasileira, muitas vezes tendo como consequência o próprio racismo. Já Milene Mizrahy destacou a atuação dos atores e dessa “velha prática” a partir do consumo, em um “novo” uso social do shopping, chamando a atenção para o fato de que, ao contrário do que alguns defendem, o uso de marcas e a presença no shopping são feitos de modo ostensivo pelos participantes. Estes agiriam assim para se fazerem diferentes dos “outros” que cerceiam sua presença em espaços destinados às elites, mas que “são cobiçados e igualmente desprezados”. Trata-se de outro mundo, que não é, e não pretende ser, decalque do mundo dos frequentadores ordinários dos shoppings.

Muitos já presenciaram os aglomerados de adolescentes em corredores de shoppings, concentrados nas entradas auxiliares, geralmente perto dos pontos de transporte coletivo que dão acesso ao centro comercial. Tal fenômeno nunca ganhou a dimensão que teve nos últimos tempos, diante da reação à proibição de tal prática por parte de alguns administradores que logo se reuniram em peso para tentar coibi-la. Com a retaliação, os efeitos, segundo alguns, tiveram relação com os protestos de junho contra as tarifas, que mobilizaram parte da sociedade brasileira. Ainda que pela teoria oficial precisassem ser identificados, enquadrados, foi a partir das manifestações de crítica à proibição dos rolezinhos que se desencadeou a retaliação por parte da sociedade contra a criminalização da prática. Esta assumiu uma dimensão política, talvez um pouco distante das práticas das próprias rolezeiras, incrementadas, em relação ao footing, por novas relações criadas com usos específicos de aparelhos celulares, de aplicativos como o WhatsApp e do próprio shopping.

Sobre os eventos, seria importante destacar a multiplicidade de significados reatualizados, buscando não o monopólio de um ponto de vista, que se dá sempre a posteriori, e sim a complexidade dos fenômenos, dos agentes envolvidos e de suas transformações, a objetificação de pessoas, coisas e lugares, como as praças, os shoppings, os celulares, os produtos de marca, por exemplo, que constroem novas relações sem deixar de expressar, contudo, atualizações de variantes estruturais da sociedade brasileira, como o preconceito de classe e o racismo.



A herança racial no Brasil como variante estrutural

Nesse sentido, o rolezinho nos shoppings do Brasil é um fenômeno social que consegue desmascarar nossa pretensa democracia racial e as disputas de classe. Além disso, podemos desvendar os mecanismos ocultos no processo da chamada distinção social à brasileira, que se coloca bem mais complexa do que a dita distinção social à la française.

Podemos exemplificar esse processo quando caracterizamos alguns grupos sociais e seus estilos de vida, a saber, um executivo superior na França teria como disposições ou em um agir cotidiano num final de semana as seguintes atividades: ir ao teatro clássico, tipos de comportamento como o ato diferenciado de como pegar na taça de vinho, a escolha do tipo de vinho a ser degustado (Romanée-Conti) e compras nas lojas mais elegantes da Galeries Lafayette. É exatamente a “desenvoltura irônica”, a “elegância preciosa” e a “segurança estatutária” dos dominantes que permitem classificá-los como elite e desclassificar os demais como outsiders. As classes populares substituem alguns produtos consumidos pelas classes dominantes − como caviar, uísque, champanhe, cruzeiros − por espumante, corino em vez de couro, reproduções no lugar dos quadros etc.

Há, portanto, uma vida que reconhece o desapossamento, e este último não é somente econômico, mas duplica-se no desapossamento cultural, que por sua vez fornece a melhor justificativa para o desapossamento econômico. Desprovidos de cultura oficial (aquela transmitida via escola), que é a condição da apropriação conformista do capital cultural objetivado nos objetos técnicos.

Os dominados tendem a se atribuir o que a distribuição lhes atribui, recusando o que lhes é recusado, contentando-se com o que lhes é concedido, avaliando suas expectativas segundo suas oportunidades, definindo-se como a ordem estabelecida os define e reproduzindo o veredicto da economia sobre eles. Existe um “conformismo lógico”, como diria Émile Durkheim, ou seja, a orquestração de categorias do mundo social que, por estarem ajustadas a divisões da ordem estabelecida (e aos interesses dos que dominam), se impõe com aparência de necessidade objetiva.

No caso do Brasil, vemos a raça acompanhada de elementos de posição de classe como componente fundamental de privação (daquele que não o tem), e este fato é percebido como uma mutilação que atinge a pessoa em sua identidade e dignidade humanas, condenando-a ao silêncio em todas as situações oficiais em que precisa aparecer em público, mostrar-se diante dos outros com seu corpo, sua maneira de ser e sua linguagem. No caso do fenômeno dos rolezinhos, esse silêncio é quebrado por meio do desejo de comprar, de ser visto e de compartilhar um espaço destinado simbolicamente aos membros da elite, em geral constituída por pessoas brancas.

Inserimos, portanto, uma questão que torna esse jogo mais complexo, pois as classificações ditas sociais e raciais se travestem de classificações espaciais. Os shoppings sempre foram um espaço de elite, dos grandes agentes endinheirados (como cita Jessé Souza em suas entrevistas), que têm como objetivo agregar a um ambiente de consumo elementos de socialização de um grupo que se distingue pelo dinheiro, por condições fenotípicas e pela dimensão simbólica de como portar-se nesses espaços, de como vestir-se e de como socializar-se com outras pessoas.

Para além da questão do preconceito fenotípico − pois fica muito evidente que a maioria dos jovens que aderem ao movimento do rolezinho é negra − e para além de uma discriminação de classe − pois também é evidente que esses indivíduos não possuem a marca de distinção social das elites frequentadoras dos shoppings, como o estilo das roupas, o modo de socializar entre si e de se comportar socialmente −, devemos levar em conta o traço da distinção que se dá pela segregação espacial.

Esses acontecimentos tornam explícito o fato de: (1) habitarmos um país que não vive uma verdadeira democracia racial, como assinalava Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala – o que o senso comum replica, perpetuando essa ideia desde os anos 1930 –; (2) a questão de classe ter se tornado muito mais complexa em razão da abertura proporcionada pela gestão petista para reverter o quadro social por meio do empoderamento econômico dos ditos “batalhadores do Brasil”; e (3) a questão espacial transcender a da criação de espaços livres para o lazer (como acentua o sociólogo João Clemente Neto, da Universidade Presbiteriana Mackenzie), mas tocar na questão da segregação espacial e da criação de verdadeiras trincheiras simbólicas, diante das quais aqueles que fogem ao padrão heteronormativo da família burguesa, branca, elegante e distinta (modelo do período da Revolução Francesa) se encontram completamente fora.



Abrindo possibilidades para a reflexão

Em termos analíticos, o fenômeno rolezinho mostra que os empresários brasileiros não estão preparados para o novo grupo social que ascende socialmente e que por sua vez passa a frequentar os espaços ditos de classe média, como os shoppings. Esse grupo, em grande parte desempregados estruturais na década de 1990 ou herdeiros destes, ascenderam economicamente nos últimos dez anos por meio de políticas de distribuição de renda e geração de empregos, sobretudo na base da pirâmide social.

O episódio nos faz lembrar depoimentos de gerentes da Caixa Econômica Federal – por ocasião de uma pesquisa sobre o Bolsa Família realizada por autores deste texto – que afirmaram que, com a introdução do programa, tiveram de preparar seus funcionários para que estes atendessem os beneficiários do programa, afinal, o público atingido pelo Bolsa Família não é costumeiramente o cliente que frequenta bancos, possui conta bancária e domínio cultural das ferramentas das finanças. Com o Bolsa Família, os funcionários foram preparados para falar com o grupo. Não somente tecnicamente preparados, mas emocionalmente. Eles tiveram de se acostumar com outros hábitos linguísticos, outras vestimentas, outros odores, distintos do público que tradicionalmente frequenta o banco.

Portanto, a chegada dos beneficiários do Bolsa Família ao banco (os quais chamamos provocativamente de miseráveis) exigiu uma alteração cognitiva dos funcionários da Caixa. Alteração essa que não acontece em curto prazo, pois exige convencimento, mudança real no plano das ideias. Logo, é uma alteração que está em processo.

Mas quais são as relações entre os beneficiários do programa Bolsa Família e o fenômeno do rolezinho?

Como já dito, esse grupo de jovens faz parte de uma geração resultante de diversos programas sociais, inclusive o Bolsa Família. Como mostra Marcelo Neri, o Brasil criou nos últimos dez anos “uma nova classe média”. Independentemente das classificações (nova classe média? batalhadores? ascensão dos miseráveis?), é fato que nos últimos anos um grupo historicamente excluído do acesso ao banco e ao consumo passou a fazer parte desses espaços. No plano macro, tivemos diversas políticas públicas que possibilitaram essa “recomposição dos grupos sociais”: Bolsa Família, microcrédito, Prouni, Enem...

Essa mudança macro, via políticas públicas e projetos sociais, obviamente repercute no nível micro, nos indivíduos de carne e osso, os quais jamais foram apreendidos com exatidão pelas Ciências Sociais. E são esses indivíduos que passam a circular em outros espaços sociais, fazendo-se notar. Trata-se de uma guerra simbólica muito mais do que uma guerra material. E, como toda guerra, essa é também política. Trata-se de uma disputa política e simbólica por símbolos e representações, que por sua vez reflete as lutas entre as classes e os grupos sociais no Brasil contemporâneo.

No caso específico do rolezinho, de um lado da trincheira estão os grupos de classe popular, com seus hábitos e habitus particulares, seus ritmos, seus hábitos alimentares, linguísticos e de vestimenta. Do outro estão os empresários dos shoppings (e seus funcionários, assim como os clientes ditos oficiais desse espaço e alguns segmentos da imprensa), que assim como os funcionários da Caixa não estão preparados para falar e dialogar com esse grupo de “transgressores sociais”, que querem entrar no templo do consumo e da ostentação.

A resposta dada pelos empresários dos shoppings não é racional, é cultural. Eles se expressaram com a única convenção social que possuem em mente: a da exclusão histórica de pobres e pretos; os funcionários, idem; assim como determinados segmentos da imprensa. Essa convenção social de exclusão não é mais uma prática individual, e sim uma prática incorporada nos corpos e nas mentes, um habitus coletivo do grupo dominante. Quando fazemos um retrocesso e olhamos historicamente para os programas sociais e as políticas públicas de inclusão dos pobres no Brasil, encontramos uma convenção social que pressupõe direitos sociais como “favor”, assistencialismo. O que é oferecido ao pobre não é visto como direito no Brasil. Portanto, uma análise aprofundada dos direitos sociais no país nos mostra a cristalização do habitus de exclusão do pobre e preto.

Contudo, o fenômeno do rolezinho nos sinaliza questionamentos desse habitus, dessas convenções sociais. Remetendo a Erving Goffman, diríamos que esses adolescentes e jovens estão quebrando o sense of one’s place, ou seja, o lugar predefinido para eles. Claro que mudanças provocam conflitos no plano das ideias, sobretudo as mudanças culturais. Assim, poderíamos dizer que, agindo “fora do lugar de origem”, fora do esperado, esses jovens incomodam diversos segmentos. Tanto o empresariado do setor de shopping como os funcionários e “clientes tradicionais” – frequentadores desse espaço de distinção – sentem-se fortemente ameaçados pelos “miseráveis” em ascensão.

Nesse sentido, são interessantes as propostas que estão emergindo dos empresários e como essas disputas estão circunscritas no plano político. Em São Paulo, o presidente da Associação dos Lojistas de Shopping (Alshop), Nabil Sahyon, reuniu-se com o governador Geraldo Alckmin, que prometeu disponibilizar para os jovens espaços, chamados “rolezódromos”, os quais poderiam abrigar shows com patrocínios das lojas. O prefeito Fernando Haddad diz haver um exagero na repressão, pois se trata de jovens com menos de 18 anos, que querem namorar e se encontrar para conversar, e que estava sendo estabelecida uma gestão compartilhada nos CEUs e clubes comunitários para disponibilizar esses espaços.

Finalmente, a forma como a imprensa, os empresários e a política reagiram ao rolezinho foi apenas uma indicação cultural de que “as coisas estão fora do lugar”. Isso seria resultado da recomposição dos grupos sociais no Brasil, que por sua vez é resultante das políticas públicas de redistribuição de renda. O fenômeno é revelador de que mudanças econômicas acontecem, mas as transformações culturais ainda estão por vir. E, para nós, são estas últimas que têm realmente a capacidade de uma “revolução simbólica”, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu.

Transformação econômica sem transformação cultural deixa um grande impasse para os grupos menos favorecidos economicamente, e o rolezinho é exemplo disso.

* professor da Uems

** doutorando da UFSCar

*** professora da Unesp-Araraquara

**** doutoranda da UFSCar

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