Para onde vai o governo?


Por Silvio Caccia Bava[*]

As históricas mobilizações do mês de junho mudaram o cenário da política brasileira. Elas introduziram na cena pública, depois de décadas de ausência, o cidadão indignado. Até agora mais de 2 milhões de pessoas foram às ruas em 438 municípios protestar contra a condição insuportável da vida nas cidades.

Concretamente elas se insurgem contra a precariedade ou ausência de transporte público, educação, saúde, segurança pública, saneamento e tantas outras coisas que consubstanciam o direito à cidade. E, olhando para os investimentos da Copa e das Olimpíadas, querem um tratamento “Fifa” para suas demandas.

A insensibilidade ou incapacidade política dos governos, em todas as esferas, de negociar com os movimentos só fez complicar mais as coisas. Num primeiro momento, o autismo do Congresso é sua expressão maior. Agora, depois da tentativa dos movimentos de o invadirem e a pressão direta das ruas continuar, os parlamentares apressam-se a desengavetar e aprovar projetos de interesse social contra os quais havia uma notória maioria contra.

Os símbolos do poder foram atacados, os partidos rejeitados, bancos e lojas depredados, os ícones de consumo, como tênis de grife, computadores e TVs de plasma, saqueados. Mesmo com as violências praticadas por alguns, esses milhões que foram às ruas contam com o apoio de 83% da população. Eles são uma força renovadora da democracia. São principalmente os jovens, mais de 80% não têm preferência partidária e 70% deles participam pela primeira vez de um protesto. Não parecem dispostos a parar suas manifestações. Estão maravilhados com a força das massas e com as vitórias que conquistaram.

As tarifas dos transportes coletivos já foram reduzidas em muitas capitais, aumentos em serviços públicos que estavam previstos foram cancelados, o controle social sobre os transportes públicos e suas planilhas de custos está na agenda política.

Mas há também outros importantes atores que entram em cena. A mídia conservadora que tenta orientar os movimentos sociais para a luta contra a corrupção num sentido genérico e contra o governo Dilma. Os partidos de oposição que identificam uma oportunidade inesperada de atacar o PT e o governo Dilma.

E mesmo a sugestão do comandante-geral da PM de São Paulo, Benedito Roberto Meira, feita ao Movimento Passe Livre, de inclusão na pauta de reivindicações do pedido de prisão aos condenados do Mensalão mostra o tom1. Todos olham para as eleições de 2014.

E não há forças organizadas, à esquerda, com capacidade para disputar a liderança desses movimentos sociais e se contrapor ao ataque da direita. O risco de que esses movimentos reorientem suas bandeiras é grande. Esse cenário de conflitos abre espaços na política para uma mudança de rumos. Ele desafia o governo a enfrentar os ataques e a buscar se fortalecer. Se a oposição consegue orientar os movimentos para entoarem “Fora, Dilma”, isso pode complicar as eleições de 2014.

Não se pode minimizar a importância deste momento político. Estão em jogo as conquistas sociais dos últimos trinta anos. Ou o governo do PT assume, em sua radicalidade, uma mudança de rumos, apoiado pela força de amplas mobilizações sociais, ou teremos o risco de um futuro governo conservador seguir as receitas dos ajustes estruturais que estão ocorrendo nos países europeus para enfrentar as turbulências econômicas que se avizinham.

Esses milhões que foram às ruas surpreenderam a todos, mas não se trata de um raio em céu azul. Os brasileiros têm mil formas de organização para a vida em sociedade: sindicatos, associações, entidades, clubes, partidos, igrejas, grupos de hip-hop, teatro, poesia. E foram essas redes que se mobilizaram para produzir as manifestações pela redução da tarifa. Muitos outros, depois, aderiram. Houve muita conversa antes que os movimentos acontecessem. A internet ajuda muito, mas não vertebra a mobilização. É com essa sociedade civil organizada que o governo tem de conversar, negociar, se articular. Mas não há canais líticos para isso. Os partidos e o parlamento, neste momento, estão fora desse espaço de negociação possível.

A arma de que o governo dispõe para enfrentar essa disputa é atender aos reclamos dos movimentos, democratizar e tornar transparente sua gestão, abrir à sua participação as decisões de governo, reorientar e potenciar as políticas públicas para atender ao interesse coletivo: a oferta pública, gratuita e de qualidade de bens comuns.

As propostas da presidente Dilma, mesmo com todos seus problemas, retiraram o governo da defensiva e caminham no sentido de promover as mudanças necessárias. O plebiscito e a Constituinte para fins específicos de reforma política são propostas que visam a revalorização do sistema político democrático. Mesmo com o governo tendo recuado da proposta da Constituinte no dia seguinte à sua declaração, a crise política mudou de eixo, da cobrança de melhores e mais baratos serviços públicos, ela se desloca para o questionamento da institucionalidade democrática, que não dá conta de processar os conflitos e remete para as ruas a possibilidade dos cidadãos interferirem nas políticas. Agora se abre uma disputa quanto ao conteúdo do plebiscito sobre a reforma política.

Quanto às propostas de investimento em transportes e outras políticas públicas, assim como a criação de conselhos de transporte, há problemas. Até agora, alguém ouviu alguma manifestação do Ministério das Cidades sobre a explosão de demandas que são de sua responsabilidade? É preciso recuperar esse ministério para a governabilidade direta da Presidência. E recuperar como estratégia de políticas urbanas o Estatuto da Cidade, integrar essas políticas, e ativar o Conselho das Cidades, que existe em todos os níveis
da federação para ser o canal de diálogo com a sociedade. Aí estão representados todos os setores da sociedade e muitos desses atores coletivos, fóruns e redes da sociedade civil. Se a estes se somarem os novos coletivos jovens que lideram os movimentos, os Conselhos poderão cumprir um novo papel: de canal de negociação para reorientar as políticas públicas.

Quanto aos governos estaduais e municipais, a transparência, a prestação de contas e, mais do que tudo, a democratização da gestão e a abertura à participação cidadã são as ferramentas à disposição.


*Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil


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