EMPODERAMENTO DA SOCIEDADE: Como radicalizar a democratização?
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Vivemos um perigoso momento em que, por um lado, a legalidade formal e, por outro, o poder real das grandes corporações econômico-financeiras asfixiam a democracia e tomam a primazia sobre a legitimidade instituinte e constituinte da luta cidadã, da cidadania ativa que brota da sociedade civil
por Cândido Grzybowski[*]
No Brasil e na região, de diferentes formas, está perdendo força a onda democratizadora das últimas três décadas, que varreu as ditaduras. Não estamos mais no período da democracia criativa, instaurada a partir dos anos 1980, quando as contradições e disputas políticas levaram a inegáveis conquistas de direitos e práticas democráticas em detrimento de uma cultura dominante autoritária e excludente. Agora, estamos entrando em um período de democracias de baixa intensidade política, ritualizadas e com visível perda de substância democratizadora – aquela força que emana da incorporação participativa na política dos dominados, vivendo a desigualdade e a exclusão social como sujeitos cidadãos, detentores de direitos. Entramos em um processo de mais tensões do que avanços, de democracia cerceada pelos velhos autoritarismos e populismos, sem poder transformador das estruturas existentes, contentando-nos com políticas distributivas, importantes e necessárias, sem dúvida, mas subordinadas ao objetivo de promover o crescimento econômico a todo custo. O novo desenvolvimentismo, colocado acima da própria democracia, paira como ameaça tanto em termos de justiça social e direitos humanos como de gestão sustentável dos territórios.
Vivemos um perigoso momento em que, por um lado, a legalidade formal – ou, pior, a judicialização da política pela interpretação da lei por tribunais – e, por outro, o poder real das grandes corporações econômico-financeiras asfixiam a democracia e tomam a primazia sobre a legitimidade instituinte e constituinte da luta cidadã, da cidadania ativa que brota da sociedade civil. Estamos encurralados como cidadania. Temos vitórias a celebrar, olhando para trás, mas precisamos voltar a nos mobilizar e pressionar. Só assim, empurrada pela cidadania, a democracia poderá exercer seu papel. Mas, como cidadãos e cidadãs, por onde recomeçar o sonho democrático mobilizador de enormes energias coletivas? Eis o desafio para inverter esse quadro político que limita o poder transformador de nossas conquistas de cidadania. Em vez de sobressaltos provocados por forças reacionárias e autoritárias de um capitalismo revigorado entre nós, voltemos a tensionar a democracia para que ela seja ainda mais democrática.
A radicalização da democracia pela cidadania ativa como estratégia
Aqui cabe explicitar, antes de tudo, alguns pressupostos e fundamentos da reflexão que faço sobre a cidadania e a questão democrática. A democratização, em sua dimensão mais radical e substantiva, é a equalização pela ação política das assimetrias e desigualdades existentes na sociedade. Aí reside seu potencial transformador. Trata-se de um método de ação política, de disputa entre forças diferentes e até opostas, mais do que seu resultado. Ou melhor, na democracia os fins são buscados, alcançados e qualificados pelo método democrático de luta, gerador de um processo de construção coletiva resultado da luta e de negociação permanentes, de perdas e ganhos relativos para todos, nunca definitivos. Democracia não é uma questão de eficiência e resultados, mas de quanto é legítimo o processo de chegar a eles.
Apostar na democratização é apostar no processo virtuoso gerado pela radicalização do método de luta democrática, que transforma as diferentes lutas sociais de forças destrutivas umas das outras em forças de construção do possível, na diferença e oposição, num momento histórico dado. Não se trata de pasteurizar as lutas sociais. Pelo contrário, deve-se buscar extrair de suas contradições os avanços possíveis em termos de direitos e democratização. Nas lutas, os diferentes sujeitos coletivos se reconhecem e legitimam, segundo princípios, valores, direitos e regras comuns, mediados pelo poder político institucional, como expressões de cidadania. Num pacto de permanentes incertezas criativas, o próprio poder político se renova como correlação de forças em tal disputa. Emerge daí o próprio projeto de sociedade, a direção que se quer perseguir democraticamente. Adéquam-se as leis e a institucionalidade do Estado, formulam-se as políticas públicas e se alocam os recursos para colocá-las em prática.
Todas as relações na sociedade exprimem em graus e formas variadas relações de poder. Trazer os sujeitos coletivos que vivem tais relações para a arena política, segundo regras democráticas, com direito às suas identidades, vozes e demandas reconhecidas uns nos outros, é a condição para sua plena cidadania. Estando em disputa permanente, a democracia adquire força transformadora quando é tensionada por forças que emergem do seio da sociedade civil para que se torne mais inclusiva e participativa da múltipla diversidade que carregamos. Implica sempre mais participação, confundindo-se com participação cidadã. A qualidade dessa participação, expressa na abrangência da diversidade dos sujeitos participantes e na radicalidade construtiva de disputas entre eles, define, em última análise, a qualidade da própria democracia.
As mudanças fundamentais na sociedade precisam sempre ocorrer no Estado/poder político ou na economia/mercado ou, ainda, nos dois ao mesmo tempo, como nos lembra Gramsci. Mas nem o Estado nem a economia, per se, puxam a democratização. Na democracia, a força instituinte e constituinte dos processos que empurram e transformam o Estado e a economia provém da sociedade civil, por meio da cidadania ativa.
Concebo o “estado” da cidadania ativa como o nível histórico em que iguais direitos são referência para todos os membros da coletividade, sem discriminações em razão de sua origem, situação e condição. Direitos e responsabilidades cidadãs de todos são os dois lados dessa relação política de igualdade, como relação compartilhada politicamente. Se não é assim, onde a existência de um direito implica sua negação para os demais, tais direitos deixam de ser direitos de cidadania e viram privilégios baseados no maior poder de quem se considera seu titular. Aliás, no Brasil, dada nossa profunda cultura autoritária e patrimonialista, particularmente vinda dos “donos de terras, gado e gente”, que molda profundamente o poder estatal, ele mesmo violento e excludente, ainda nos defrontamos quase diariamente com privilégios tornados direitos, porque estão em leis (ilegítimas, diga-se de passagem, mas leis existentes) ou mesmo acima delas.
A cidadania é o direito fundamental de todos a ter direitos, sem distinção. Reconhecer-se e agir como cidadão implica ver a si mesmo como titular de direitos e reconhecer a mesma condição em todos os demais, o que exige corresponsabilidade, balizada pelos princípios e valores éticos da liberdade, da igualdade, da diversidade, da solidariedade e da participação, que são o cimento social agregador possível de uma democracia substantiva, hoje em dia.
O locuspor excelência da cidadania é a sociedade civil. Tomo a sociedade civil em seu sentido sociológico e político de esfera constitutiva da vida social, entre o mercado/economia e o Estado/poder. Esfera em que as contradições embutidas nas relações, estruturas e processos das sociedades se expressam na forma de competição, disputa e conflito entre diversos sujeitos coletivos, por meio de suas associações, organizações, movimentos, instituições e aparatos de hegemonia, como mídia, igrejas, universidades. São portadores de interesses, ideias, valores, crenças e propostas, que os levam a disputas, pactos e acordos buscando a hegemonia. Portanto, sociedade civil é um modo de ser, um espaço público, mais ou menos desenvolvido dependendo das condições históricas de cada sociedade concreta. Não é boa nem ruim, mas a possível historicamente, fruto de processos e lutas no interior da sociedade considerada. O que caracteriza as sociedades civis históricas é o estado da cidadania, não o contrário. Como, por extensão, é também a cidadania que define a qualidade do poder estatal e do desenvolvimento econômico. Maior ou menor alargamento do espaço da cidadania é, antes de mais nada, um alargamento do espaço público que conforma a sociedade civil, prenhe de contradições, encontros e desencontros, de tensões e lutas.
As sociedades civis se expandem e se fortalecem por força da ação e da participação cidadã, como “trincheiras socais” de resistência e ação, na expressão de Gramsci, articulando-se em redes, coalizões, plataformas e fóruns, sempre para incidir no espaço público, seja no debate, no imaginário social e cultural, na definição de agendas, seja nas instâncias do poder, nas políticas públicas e na ação de empresas e na operação dos mercados, como condicionante socioambiental. Disso resultam uma visão de interesse público e bem comum, as “ondas” de opinião pública e de democratização, os projetos de sociedade que alimentam os movimentos de cidadania nos diferentes contextos históricos de sociedades concretas.
As lutas da cidadania ativa, a partir de seus territórios, podem ser portadoras de nova onda democratizadora
Voltando ao ponto de partida, minha premissa é que as indignações e as insurgências socioambientais de hoje, Brasil afora, pela diversidade de situações, de sujeitos coletivos e de expressões no espaço público da sociedade civil têm potencial emancipatório e construtivo de uma nova onda democratizadora. As lutas socioambientais trazem ao centro da arena política o desafio maior para a jovem democracia brasileira. A democratização não vai avançar na construção de uma sociedade de inclusão sem discriminações, de sustentabilidade da vida e preservação da natureza, de bem viver, se não forem gestadas as condições políticas para uma transição democrática transformadora do modelo de desenvolvimento econômico industrial-produtivista e consumista, socialmente concentrador, excludente e ambientalmente destruidor.
As lutas socioambientais emergem de territórios concretos em que vivemos, nosso endereço de cidadania. Os territórios não são espaços físicos em si, mas espaços geográficos dinâmicos, com história humana passada e história em construção pela ação atual. O uso humano do território qualifica sua organização e lhe dá sentido histórico. Estamos diante do modo de ocupar e usar o espaço natural, de organizá-lo enquanto território humano, de vida em movimento. A relação com a natureza, como condição do próprio viver, é de dependência e troca. As formas dessa relação são diversas, tanto porque a biosfera e as condições naturais variam de um lugar a outro como porque nós mesmos, criadores de cultura, de relações e estruturas, de economias e de poder somos muito diversos em nossa comum humanidade de sujeitos cidadãos e cidadãs. Os territórios, como territórios de cidadania, exprimem essa diversidade resultante da simbiose de seres humanos com a natureza e entre si, que se renova historicamente.
Voltar a nos olhar como parte dos territórios, como nosso locus fundamental de existência, com suas possibilidades e limites, seus conflitos e sua história, é um caminho para refazer e reconstruir a relação sociedade-natureza de forma sustentável, de respeito mútuo, de trocas vitais que reproduzem e regeneram, sem destruir. É caminho também a relação da cidadania com o poder e a economia, em uma onda democratizadora que promova os direitos de todos antes e acima da acumulação capitalista predatória.
Os impasses da democracia brasileira são o outro lado do novo desenvolvimentismo como prioridade, que transforma os territórios da cidadania em territórios a serem ocupados segundo uma lógica de negócio e de acumulação de riquezas sem limites. O capital que se investe num território determinado, quase sempre com suporte do poder governamental, faz parte de uma estratégia de desenvolvimento que é determinada, em última análise, pela taxa de sua valorização. Com isso, é forçoso reconhecer, de um ponto de vista cidadão, que estamos diante de uma reinvenção de colonialismo, em que a ocupação dos territórios não é para produzir bens e serviços e servir à vida da população aí existente, respeitando suas condições e seus direitos de cidadania. Para as grandes corporações econômicas e financeiras, os territórios não passam de um diferencial para seus negócios, um plus na competição entre empresas por mercados e por lucros crescentes. Para elas, trata-se de ocupar os territórios com estratégias definidas fora e para fora. A especificidade dos territórios não é limite, é vantagem competitiva num mercado nacional e global. Por isso, os grandes projetos que colonizam os territórios ignoram condicionalidades e limites socioambientais, de direitos de cidadania.
Neste contexto, muda o caráter das disputas nos territórios e para os territórios. Tais disputas adquirem uma dimensão que extrapola os territórios em si. As contradições em movimento nos territórios os fazem parte de processos nacionais e mundiais. A cidadania ativa local, a partir da sociedade civil, com suas formas e dinâmicas, reage e luta contra a lógica mercantilizadora e exploratória dos grandes projetos do desenvolvimentismo que lhe são impostos de fora. Na luta de resistência e de busca de alternativas, em sua especificidade, está contida uma dimensão universalizante, que a torna solidária com todas as diversas lutas Brasil e mundo afora contra o capitalismo desterritorializado e sua lógica de apropriação privada, de mercantilização e domínio. As lutas nos territórios, emanadas do interior das sociedades civis que aí se organizam, apesar de sua fragilidade, enfrentam um desenvolvimento submetido ao mercado, imposto pelo poder político do capital e sua expressão nas políticas governamentais, gerador de riquezas para fora, deixando destruição, lixo, exclusões e desigualdades nos territórios. O potencial democratizador das lutas socioambientais concretas, de hoje, por serem todas territorializadas e, ao mesmo tempo, de dimensões nacionais, regionais e mundiais, as torna embriões de alternativas democráticas ao desenvolvimento, voltadas à defesa e ampliação dos direitos de cidadania, de construção da sustentabilidade da vida e das próprias sociedades civis, contra a economia e o poder do capital globalizado.
As disputas territoriais, no sentido aqui definido, estão em toda parte, nas cidades e no campo. Fazendo uma cartografia das lutas socioambientais no Brasil de hoje, estaremos vendo emergir uma espécie de geopolítica da cidadania ativa antissistêmica em movimento. Seu potencial de transformação reside aí. As várias lutas territorializadas precisam se conceber e se convencer do potencial que carregam, conectando-se, articulando-se, formando redes e coalizões, criando fóruns e plataformas, alimentando com isso uma nova onda de revitalização da democracia no Brasil.
Em síntese, uma nova onda democratizadora depende da cidadania ativa emergente das lutas socioambientais
Uma nova onda democratizadora tem possibilidades a partir dos territórios em que a cidadania local se organiza e age contra as investidas do novo desenvolvimentismo, de baixo para cima e de dentro para fora. Para transformar a economia e o poder, com uma perspectiva de sustentabilidade da vida e democracia substantiva, é necessário olhá-los a partir das demandas e possibilidades locais e territoriais, incorporando as visões e propostas que emanam da cidadania ativa no seio de suas sociedades civis. A própria economia e a democracia precisam se relocalizar, reterritorializar, funcionando de baixo para cima, de forma subsidiária. Fortalecer os conflitos socioambientais nos territórios é o caminho da democratização no Brasil atual, pois é aí que se gestam sujeitos que reivindicam sua cidadania plena, a luta por direito a ter direitos reconhecidos. Emergem nas sociedades civis dos territórios de cidadania, como fermento transformador, ideias e projetos de construção de democracia radicalmente inclusiva, econômica, social e culturalmente sem desigualdades ou discriminações de qualquer espécie.
* sociólogo e diretor do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.
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