A FALSA OPOSIÇÃO ENTRE ESTÉTICA E ENGAJAMENTO. Arte e política, a ação irmã do sonho
Há tempos, a arte “engajada” é
suspeita de trair a causa... da arte. Houve casos de destruidores da
criação submissos a dogmas oficiais e obras reduzidas à expressão
de uma tese. Mas, por outro lado, as escolhas estéticas sempre se
inscreveram em um conjunto de valores políticos
por Evelyne Pieiller[*]
(Cosette, personagem de Os miseráveis, em
ilustração de Émile Bayard publicada na obra original, em 1862)
Os políticos, nas nossas democracias
esclarecidas, não falam mais da arte. No programa para a eleição
presidencial que François Hollande e Nicolas Sarkozy apresentavam em
2012, a palavra “arte” estava ausente. Nada de novo: nos
discursos das “elites”, “a cultura” substituiu “a arte”.
No entanto, a cultura é uma noção vaga: ninguém sabe exatamente
de que se trata, e tudo se confunde. Para os políticos no poder há
algumas décadas, o objetivo nessa área continua sendo a
“democratização” do acesso, que deve permitir uma aproximação
das camadas sociais. Espantosa maneira de transformar a arte em
simples fator de integração e de perverter um assunto que por muito
tempo foi delicado.
Durante quase dois séculos, enquanto
se afirmava a questão social, duas concepções do papel da arte se
enfrentaram. Enaltecimento da alma ou instrumento a serviço da
transformação da situação concreta dos homens? Obra para os
esclarecidos ou arte para o povo? Interrogação importante, que não
pode fazer desaparecer num passe de mágica a do “dever de cultura”
e do “direito à cultura para cada um de nossos concidadãos”.1
Interrogação fundamental, que parece claramente se reativar hoje,
enquanto se afirmam novamente conflitos políticos e sociais.
Kash, operário da Peugeot e rapper,
escreveu “Isso não pode continuar”, que se tornou um clipe muito
visto, no qual sua cólera e ironia se conjugam a uma reportagem
sobre o fechamento da fábrica de Aulnay. Arya Aramnejad consagrou
uma canção, “Deltangui” (“O coração apertado”), ao
movimento verde iraniano, a onda de manifestações contra a fraude
durante a eleição presidencial de 2009; ele está preso há dezoito
meses. O coletivo D’ores já trabalhou no palco o sentido de 1793
com Notre Terreur [Nosso Terror]. No fim de maio, o artista
e opositor chinês Ai Weiwei postou um clipe que evoca sua detenção
em 2011. Nele se misturam rock, cinema e protestos contagiantes de
encontro à “harmonia” tão cara à propaganda do poder.
“Mais forte do que a pólvora dos
canhões”
São apenas alguns exemplos,
heterogêneos, e que não desejamos comparar, mas que dão testemunho
da importância crescente de uma arte que se reconhece em parte
ligada à política. E não é sem interesse lembrar quais são as
questões, pois a arte politizada foi por muito tempo suspeita de ser
menos “criativa” do que a arte... desengajada. A que se engaja a
arte quando o artista se engaja? A obra não se bastaria por si só?
Antes, é importante ressaltar que
essas concepções divergentes sobre o papel da arte não existem
desde sempre. Elas nasceram de uma história política e social, sob
fundo de revolução. Essa tensão do artista entre o engajamento e a
estética, entre a arte útil e a que reivindica sua autonomia, entre
a obra ligada às questões de sua época e a busca de uma beleza
atemporal, não floresceu antes do século XIX. Foi apenas nesse
momento que se generalizou o uso de assinar um quadro, que então
passou a ser considerado uma “obra”. A própria palavra “Arte”,
com maiúscula e com seu significado moderno, não parece ter
aparecido antes do século XVIII, que distingue as artes “mecânicas”
das artes “nobres”, a poesia, a música, a pintura e... a arte
militar. O artista foi assim pouco a pouco se diferenciando do
artesão, numa hierarquia de valores que privilegia o fato de que
“elas [a pintura e a poesia] não surgiram da necessidade”
(discurso preliminar da Enciclopédia). O otiumcontra
o negotium, o lazer, o luxo do inútil contra o trabalho e
sua rentabilidade.
No século XIX, essas oposições
aumentaram. De um lado, o Estado perdeu seu monopólio em matéria de
exposição e consagração;2 do outro lado, a revolução, ao abolir
os privilégios e ao colocar em destaque a noção, espantosa, de
igualdade, fez surgir uma interrogação sobre a diferença íntima,
a excepcionalidade. Ainda mais porque o século foi atormentado por
outra (longa) revolução, esta industrial, que levantou também a
questão do povo, da multidão, da massa, que se tornou visível. A
revolução política fracassou, diversas vezes, mas suas
interrogações, suas realizações, seus ideais continuaram a
trabalhar os espíritos, enquanto a questão social veio reativá-los
e aguçá-los.
Triunfo da burguesia e de seus valores,
o trabalho, a economia, o respeito à ordem: o artista se submeteu à
lei do mercado, ele devia agradar aos que formam o público e com
quem ele não compartilha necessariamente os valores. Ele passou a
ter, então, a escolha entre duas posições: reconhecer por juízes
apenas as exigências de sua arte e reivindicar sua torre de marfim,
de onde ele poderia desprezar os filisteus incapazes de se elevar até
a Beleza, ou se considerar arauto daqueles que a classe dominante
despreza e se colocar a serviço de valores libertadores. A arte pela
arte ou a arte útil. A arte como fim em si mesma ou a arte para
servir a um fim. “A arte se torna cada vez mais a propriedade de
uma elite nesta época de democracia, a propriedade de uma
aristocracia bizarra, mórbida e cheia de charme”, comentava o
escritor Catulle Mendès no final do século.3 Situação sem saída
para aqueles que não queriam ser porta-vozes da massa nem artistas
para alguns raros eleitos. “A arte, no fim das contas, talvez não
seja mais séria do que um jogo de boliche; talvez tudo seja apenas
uma imensa piada”, avançava Gustave Flaubert em sua
Correspondência. Para que serve tudo isso?
Alguns deram respostas concretas.
Escritores, Victor Hugo em primeiro lugar, sobre quem o monarquista
católico e ainda assim dândi Jules Barbey d’Aurevilly ressaltou
que seu desenho, com Os miseráveis, conseguia “explodir
todas as instituições sociais, com uma coisa mais forte do que a
pólvora dos canhões que explodem montanhas – com lágrimas e com
piedade”.4
Atiçar o desejo de outros horizontes
Os pensadores políticos intervieram no
debate. Pierre-Joseph Proudhon lembrou que a excepcionalidade, a
particularidade do artista, era “o produto da inteligência
universal e de uma ciência geral acumulada por uma diversidade de
mestres, por meio do auxílio de uma diversidade de indústrias
inferiores” e ressaltava que ele era “chamado a competir pela
criação do mundo social” ao representar uma realidade ideal “em
vista do aperfeiçoamento físico, intelectual e moral da humanidade,
de sua justificativa por si mesma e finalmente sua glorificação”.5
Esse “máximo da grosseria socialista”, como disse Flaubert em
sua Correspondência, é o que vai se encontrar, modulado,
nervoso, preciso, ao longo do século XX, quando se enfrentaram e
confrontaram as vanguardas políticas e artísticas, principalmente à
luz das grandes esperanças criadas pela revolução de 1917 e pelos
pesadelos do século.
Duas reflexões essenciais permitiram
superar o obstáculo da oposição entre arte pura e útil, pesquisa
da beleza eterna e serviço a uma causa.
Bertolt Brecht, o arquétipo do artista
engajado, um dos grandes teóricos e práticos de uma arte política,
marxista, fundador do Berliner Ensemble na República Democrática
Alemã (RDA), lembrava que, “desde sempre, o objetivo do teatro,
como o de todas as artes, foi divertir os homens. [...] Sua única
justificativa é o prazer que proporciona, mas esse prazer é
indispensável. Não poderíamos atribuir-lhe um status mais elevado
se o transformássemos, por exemplo, em uma espécie de feira da
moral. [...] Não deveríamos pedir-lhe que ensinasse o que quer que
fosse. Pois é importante que o teatro tenha toda a liberdade de
permanecer supérfluo, o que implica, é verdade, que vivamos para o
supérfluo”.6
O que ele enuncia aqui é que uma peça
é política não quando tem um tema político, mas quando “adota
uma atitude política: o prazer de transformar as coisas, tanto
políticas quanto privadas”.7 É por seus poderes intrínsecos que
a arte pode agir. Ainda é preciso “buscar os verdadeiros prazeres
de nossa época”, o que implica inventar as formas adaptadas às
questões contemporâneas. “Se lhe perguntam se você é comunista,
mais vale apresentar como prova seus quadros do que seu cartão de
filiação ao Partido.”8 Não há receita formal: existem apenas
novas questões levantadas pela sociedade, às quais é preciso dar
uma forma tal que desperte no espectador o prazer de refletir sobre
respostas diferentes daquelas apresentadas pelo mundo onde ele vive.
Uma forma brincalhona que leva ao espanto, desabitua das falsas
evidências, provoca a dúvida a respeito da perenidade da ordem
existente, ajuda a desejar se libertar do que impede o humano de
viver mais amplamente. O que resulta em... prazer.
Essa saída do dilema arte de elite,
solitário, e arte degradada em propaganda, Brecht não foi o único
a formular. Os “românticos revolucionários”,9 os grandes
inventores da Revolução de Outubro, assim como os surrealistas
souberam procurar o “mito em relação com a sociedade que julgamos
desejável”. Sem formalismo e também sem “coisa barata
revolucionária, apenas rica de boas intenções”, como dizia
Anatoli Lounatcharski, comissário de instrução na URSS de 1917 a
1929.10 O “realismo socialista” também era tão vazio quanto os
exercícios estéticos.
Havia outra saída, complementar:
transformar um artigo de luxo em bem universal − o que pretendiam
fazer, por exemplo, os artistas que apoiavam a Frente Popular, em
1936. Eles escolheram ser assalariados para ensinar e popularizar sua
arte: foi o começo programado da descentralização teatral. Franz
Masereel, grande xilogravurista, dirigiu uma academia de pintura
financiada pela União dos Sindicatos do Sena: “Não sou esteta o
suficiente para me satisfazer sendo apenas um artista”. La
Marseillaise, de Jean Renoir, é um “grande filme nacional,
oficial e democrático, coberto por uma subscrição pública”,
sobre o qual Louis Aragon escreveu no jornal Ce Soir (1º
fev. 1938) que “o grande milagre foi ter feito, apesar dos
figurinos, apesar do cenário, apesar do tema de La Marseillaise,
um filme tão atual, tão instigante, tão humano, que nos toma, nos
leva, como se fosse nossa própria vida que se debatesse diante de
nossos olhos. E, de fato, é a nossa própria vida”.
O que acontece nesses exemplos é a
recusa de recorrer, em nome de um ideal de esquerda, à simplificação
dos meios de expressão e paralelamente a escolha de formar aptidões
ao julgamento estético. A ambição maior é então contribuir para
a chegada de uma “sociedade emancipada”, em que “cada um poderá
se satisfazer livremente, entre outras atividades, com a criação.
Não haverá pintores, mas pessoas que, entre outras coisas,
pintam”.11 Foram os teóricos políticos que disseram: Karl Marx e
Friedrich Engels. Um poeta lhes fez eco, Lautréamont, afirmando que
“a poesia deve ser feita para todos, e não para um” (Poesias
II). Artistas seguiram esse caminho, principalmente nos anos
1960-1970, tentando acabar com a sacralização do autor em proveito
do coletivo, fazendo o espectador intervir como ator e encontrando
novos meios de produção e de difusão alternativos.
Em outras palavras, o que traduz a arte
que se diz política é que o homem está inacabado; há muito a
transformar para atingir as condições de um florescimento de suas
capacidades; e, quando ele cumpre seu papel, é o de um sabotador das
representações dominantes e de um provocador do desejo de outros
horizontes. Então, ele aprende a “cobiçar o impossível: o que o
poder das sociedades estabelecidas proíbe desejar para impedir de
nascer e que deve ser conquistado”.12
Ele não pode mudar o mundo, mas cria a
emoção de sentir que há jogo na ordem estabelecida, nas cabeças,
nas aspirações − o que não poderia ser reduzido a estampar bons
sentimentos progressistas nem à pequena busca pela provocação, que
frequentemente se contenta em chocar o burguês, contente de ser
burguês...
Mas essa arte não poderia também se
dissolver na animação cultural nem ser esquecida pela educação
artística, pois ela com certeza não busca “reencantar o mundo”:
ela faz da crise de nossas realidades uma “festa das
possibilidades”13 – nossas possibilidades coletivas e íntimas.
* Jornalista
Ilustração: Émile Bayard
1 Discurso da Ministra da Cultura,
Aurélie Filippetti, Rencontres d’Avignon, 15 jul. 2012.
2 Cf. Nathalie Heinich, Du peintre à l’artiste [Do pintor ao artista], Minuit, Paris, 1993.
3 Citado por Jules Huret, Enquête sur l’évolution littéraire [Pesquisa sobre a evolução literária], Bibliothèque Charpentier, Paris, 1891.
4 Cf. Les Misérables, un roman inconnu? [Os Miseráveis, um romance desconhecido?], Maison de Victor Hugo – Paris Musées, 2008.
5 P ierre-Joseph Proudhon, “Du principe de l’art et de sa destination sociale (extraits)” [Do princípio da arte e de sua destinação social (trechos)]. In: Émile Zola e Pierre-Joseph Proudhon, Controverse sur Courbet et l’utilité sociale de l’art [Controvérsia sobre Courbet e a utilidade social da arte], Mille et Une Nuits, Paris, 2011.
6 B ertolt Brecht, Petit Organon pour le théâtre [Pequeno Organon para o teatro], L’Arche, Paris, 1970.
7 Manfred Wekwerth, em “Bertolt Brecht”, Europe, n.856-857, Paris, ago./set. 2000.
8 B ertolt Brecht, “Appel aux jeunes peintres” [Chamado aos jovens pintores], Écrits sur la littérature et l’art [Escritos sobre a literatura e a arte], L’Arche, Paris, 1970.
9 Michael Löwy e Robert Sayre, Révolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité [Revolta e melancolia. O romantismo na contracorrente da modernidade], Payot, Paris, 1992.
10 A natoli Lounatcharski, Théâtre et revolution [Teatro e revolução], Maspéro, Paris, 1971.
11 Karl Marx e Friedrich Engels, L’idéologie allemande [A ideologia alemã] (1846), Éditions Sociales, Paris, 1976.
12 Henri Maler, Convoiter l’impossible [Cobiçar o impossível], Albin Michel, Paris, 1995.
13 Ersnt Bloch, Le principe espérance [O princípio esperança], três volumes, Gallimard, Paris, 1976, 1982 e 1991.
2 Cf. Nathalie Heinich, Du peintre à l’artiste [Do pintor ao artista], Minuit, Paris, 1993.
3 Citado por Jules Huret, Enquête sur l’évolution littéraire [Pesquisa sobre a evolução literária], Bibliothèque Charpentier, Paris, 1891.
4 Cf. Les Misérables, un roman inconnu? [Os Miseráveis, um romance desconhecido?], Maison de Victor Hugo – Paris Musées, 2008.
5 P ierre-Joseph Proudhon, “Du principe de l’art et de sa destination sociale (extraits)” [Do princípio da arte e de sua destinação social (trechos)]. In: Émile Zola e Pierre-Joseph Proudhon, Controverse sur Courbet et l’utilité sociale de l’art [Controvérsia sobre Courbet e a utilidade social da arte], Mille et Une Nuits, Paris, 2011.
6 B ertolt Brecht, Petit Organon pour le théâtre [Pequeno Organon para o teatro], L’Arche, Paris, 1970.
7 Manfred Wekwerth, em “Bertolt Brecht”, Europe, n.856-857, Paris, ago./set. 2000.
8 B ertolt Brecht, “Appel aux jeunes peintres” [Chamado aos jovens pintores], Écrits sur la littérature et l’art [Escritos sobre a literatura e a arte], L’Arche, Paris, 1970.
9 Michael Löwy e Robert Sayre, Révolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité [Revolta e melancolia. O romantismo na contracorrente da modernidade], Payot, Paris, 1992.
10 A natoli Lounatcharski, Théâtre et revolution [Teatro e revolução], Maspéro, Paris, 1971.
11 Karl Marx e Friedrich Engels, L’idéologie allemande [A ideologia alemã] (1846), Éditions Sociales, Paris, 1976.
12 Henri Maler, Convoiter l’impossible [Cobiçar o impossível], Albin Michel, Paris, 1995.
13 Ersnt Bloch, Le principe espérance [O princípio esperança], três volumes, Gallimard, Paris, 1976, 1982 e 1991.
Comentários
Postar um comentário
Comentários