Com falta de recursos públicos e incentivo à privatização, Saúde está na encruzilhada
POR
LIGIA BAHIA[*]
A
impressão da maioria dos brasileiros é que o SUS tem graves
problemas de corrupção. As reiteradas imagens de desmazelo
patrimonial que se projetam nos ambientes degradados de serviços
públicos e as reiteradas denúncias e comprovações de atos
ilícitos envolvendo orçamentos públicos comprovam fartamente o mau
uso e desperdício de recursos. Esse disseminado sentimento sobre a
centralidade do problema da corrupção no SUS, captado pelas
coalizões governamentais, substituiu as expectativas de
enfrentamento dos problemas estruturais do financiamento de um
sistema universal de saúde pelas promessas de “fazer mais com
menos” ou “fazer mais com o mesmo”.
Nenhum
dos três problemas relativos ao financiamento do SUS, a natureza das
fontes, o volume das receitas e sua destinação, integram as agendas
públicas sobre as políticas de saúde. Embora o Brasil apresente
gastos com saúde menores do que os de vários países da América do
Sul, o debate setorial segue concentrado nos critérios de rateio do
orçamento do Ministério da Saúde e nos valores das tabelas de
procedimentos e, em termos mais gerais, pela adoção de alternativas
gerencialistas apresentadas como uma solução à corrupção. O
descompasso entre os fundamentos do problema e as alternativas para
resolvê-lo culminou com a aprovação da regulamentação da EC29,
sem aumento de recursos para a saúde. Uma clara manifestação
contrária da coalizão política PT-PMDB às reivindicações de
movimentos sociais e prestadores privados de serviços vinculados à
rede SUS.
A
política contencionista de recursos para o SUS pari
passu à renovação e ampliação de
deduções e subsídios fiscais à oferta e demanda de planos e
seguros privados de saúde sedimenta o padrão estratificado e iníquo
das políticas públicas de saúde. Na prática, os gastos privados
com saúde, que já superam os públicos, tendem a crescer,
acompanhando o aumento das renúncias fiscais e as taxas de elevação
dos públicos menores do que as de arrecadação de tributos e
contribuições sociais. O fato de o aumento da carga tributária não
redundar na oferta de uma atenção pública de saúde de melhor
qualidade termina por confirmar as acepções sobre a existência de
excessivos recursos para a saúde.
Falta
de recursos para a rede pública e políticas públicas ativas de
apoio à privatização conduziram o sistema de saúde a uma
encruzilhada. Nem o SUS, nem os planos privados conseguem responder
adequadamente às demandas e necessidades de saúde. A novidade é
que o aporte adicional de recursos públicos à privatização da
saúde, no contexto favorável ao rentismo, modificou não apenas a
fisionomia, mas também o protagonismo político das instituições
que atuam na saúde. As associações de empresas setoriais com
fundos de investimentos e a consolidação do papel de hospitais
“filantrópicos-lucrativos” como plataformas de incorporação
tecnológica do país passam a ditar agendas da saúde pautadas pela
segmentação de subsistemas de acordo com status sócio-econômico.
Atualmente,
as contradições entre o público e o privado, inclusive aquelas
incidentes na terceirização e quarteirização da contratação de
trabalhadores para o SUS, são consideradas naturais, inexoráveis.
Entre as consequências do aplainamento das contradições dos
interesses públicos e dos privados, situam-se: 1) a redução do SUS
a de qualquer outro “operador de saúde” à de mero prestador de
serviços, e reafirmação de um modelo de atenção segmentado e
fragmentado; 2) a ampliação de deduções e isenções fiscais para
estimular a oferta de planos e seguros; 3) a nomeação de executivos
do setor privado para cargos públicos e a proliferação de
“sub-comandos” locais e regionais via atuação de simulacros de
redes das OS´s.
Com os
estímulos (subsídios públicos) para que os 60 milhões de
integrantes da “nova classe média” tenham planos privados, o SUS
passaria a ter duas funções: assistência aos pobres e resseguro,
das coberturas caras negadas pelo setor privado.
* Ligia
Bahia, médica, doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo
Cruz, é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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