Rio: marca registrada da participação pacificada
Inauguração UPP na Rocinha |
Ao
contrário da política de segurança, cujo comando e missão estão
definidos, a parte social da pacificação sofre de várias
debilidades. As mais evidentes são a desarticulação com as
políticas universais de saúde e educação e a falta de coordenação
entre os vários agentes que promovem o desenvolvimento urbano e
social
por
Sonia Fleury[*], Julio Borges, Frederico Bertholini, Sabrina Guergu[**]
Antes
temida pela violência, a cidade se reinventou. Paz é, hoje, a
“marca registrada do Rio de Janeiro”. Igualmente, a propaganda
oficial anuncia que “o Rio de Janeiro é marca registrada do
Brasil” (Marca RJ) como potência mundial
emergente que procura combinar crescimento, combate à pobreza e
expansão de sua presença no cenário global. Assim diz a propaganda
oficial, que vende o Rio de Janeiro como destino da atenção mundial
no presente decênio, palco dos principais megaeventos
internacionais. Não é, portanto, exagerado afirmar que existe em
curso um projeto de metrópole vendável, a qual se possa posicionar
vantajosamente enquanto mercadoria consumível no contexto global.
Essa marca tem muitos produtos, e a favela carioca talvez seja um dos
mais cobiçados. Claro, estamos falando apenas daquelas favelas
incrustadas nos bairros mais ricos da Cidade Maravilhosa e que estão
dentro do circuito dos megaeventos, por onde circularão os turistas.
A
favela se tornou uma mercadoria diferenciada. Não se trata apenas de
reconhecer e explorar esse território como mercado consumidor, mas
sim de transformá-lo em suvenir negociável, cujos valores
principais são sua localização privilegiada, a paisagem exuberante
e a exótica cultura dos favelados que dão vida ao lugar, como as
festas na laje, hoje consumidas pela classe média do asfalto. No
entanto, para a favela ser consumível tornou-se necessário um
processo de crescente pasteurização. As Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) tornaram possível esse projeto ao abrir caminho
para a oferta de novas mercadorias e serviços, explorando o
potencial de consumo dos moradores, e permitem que a própria favela
seja consumida pelos que vêm de fora. A esse processo tem sido dado
o nome de integração, apesar da flagrante persistência das
desigualdades entre as condições de vida das populações das
favelas e aquelas de seu entorno.
As
transformações recentes no cenário do Rio de Janeiro têm como
força motriz a articulação íntima de políticas públicas urbanas
e de segurança a partir das UPPs e dos megaeventos. Uma articulação
que, de tão íntima, as confunde, não sendo possível dizer se o
poder público está sendo apoiado pelos empresários ou o contrário.
Essas políticas se apoiam mutuamente para produzir espaços urbanos
mercantilizados. Afinal, uma cidade vendável demanda projetos que a
tornem consumível. Após a ocupação militar nas favelas e a
instalação das UPPs, outros órgãos, públicos e privados, começam
a atuar nesses territórios, dando continuidade à política de
pacificação. Para tal, foram criados inúmeros projetos sociais e
fóruns de participação que deveriam construir a negociação por
meio do diálogo e “escuta forte” das comunidades onde se
instalaram as UPPs.
Ao
contrário da política de segurança, cujo comando e missão estão
claramente definidos, a parte social da pacificação sofre de várias
debilidades. As mais evidentes são a desarticulação com as
políticas universais de saúde e educação e a falta de coordenação
entre os vários agentes que promovem o desenvolvimento urbano e
social nas favelas. Dois programas se propõem a articular e
coordenar as políticas sociais na favela: a UPP Social, que responde
ao nível municipal e está alocada no Instituto Pereira Passos, e os
Territórios da Paz, vinculados ao governo estadual e inseridos na
Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Com objetivos
similares – promover a interlocução entre Estado, sociedade e
mercado – e ações que se sobrepõem em diversos aspectos, esses
programas teriam o intuito de promover a coordenação das políticas
locais e a participação dos moradores, permitindo um fluxo contínuo
de informações entre gestores das políticas e demandas
comunitárias.
Entretanto,
a falta de poder político, a frágil institucionalidade e a noção
limitada de participação dessas políticas resultam em vazio
democrático e pouca efetividade das ações promovidas, já que o
social está a reboque das decisões tomadas na área responsável
pela reforma urbana. Apesar do propósito de cobrir a dimensão
social da política de pacificação de forma participativa e
articulada com outras políticas públicas, UPP Social e Territórios
da Paz não encontram uma descentralização de poder ao nível do
governo que lhes confira autoridade e recursos suficientes para
responder às demandas da população local. Ao contrário,
introduziu-se um modelo decisório extremamente fechado no qual a
convocação à participação é frequentemente denunciada pelas
lideranças locais como mera representação, incapaz de responder de
forma eficiente às demandas estruturais da favela, como saúde,
saneamento, moradia, trabalho e renda.
Por
um lado, a falta de informações compartilhadas mantém os moradores
numa situação desigual de conhecimento sobre as ações públicas,
provocando a desconfiança de que tais espaços sirvam meramente para
referendar decisões já tomadas. Por outro, a falta de capacidade
concreta dos moradores para reagir de forma coletiva às questões
que afetam a comunidade torna os fóruns um momento catártico, com
baixa efetividade. Moradores passam a ser meros consumidores –
frustrados, diga-se de passagem – da atenção que lhes é dada por
agentes públicos com parcos recursos de poder. Nesses espaços, é
permitido vocalizar angústias e desejos sobre a ação
governamental, mas não há brecha real para definir prioridades e
ações substantivas das políticas públicas. Em suma, essas
instâncias consistem em instrumento apaziguador dos conflitos,
procurando referendar as decisões já vinculadas à política em
curso. Potencialmente, são mecanismos de esvaziamento da já
debilitada organização comunitária, docilização das
resistências, adestramento dos jovens, cooptação das lideranças.
Essa suposta pedagogia da cidadania esvazia perversamente seu
componente libertário e emancipatório, reduzindo a noção de
cidadania ao conhecido slogan “ordem e progresso”, minando assim
as bases solidárias que asseguraram a capacidade de resistência da
favela até mesmo ao tráfico.
Se
participação é compartilhamento de poder, capacidade de
interpelação ativa da cidadania aos governantes para que seus
interesses sejam incluídos na agenda pública, esse processo tem
sido buscado por meio de outros recursos e alianças: contralaudos
técnicos, denúncias de movimentos sociais, intelectuais e
parlamentares, enfrentamentos pessoais e resistências coletivas,
ações da Defensoria Pública, desobediência civil em relação ao
toque de recolher e à proibição do funk etc. Sem deixar de atender
aos apelos dos agentes públicos para participar, moradores e
lideranças têm cada dia mais clara a consciência de que, nos
fóruns participativos, a participação é, ela mesma, pacificada.
Como
toda mercadoria tem um prazo de validade para ser descartada, a
pergunta que se fazem moradores e estudiosos é sobre o futuro dessas
comunidades, diante do avassalador processo de integração no qual
deixam de ser sujeitos para ser objetos da política atual de
reurbanização, cujo resultado pode ser uma remoção também
pacificada.
* Sonia
Fleury
Doutora
em Ciência Política, professora titular da Escola Brasileira de
Administração Pública e de Empresas (Ebape/FGV), onde coordena o
Programa de Estudos da Esfera Pública (Peep), ex-presidente do
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e membro da Plataforma
Política Social – Agenda para o Brasil do Século XXI.
** Julio
Borges, Frederico Bertholini, Sabrina Guergu
São
pesquisadores do Programa de Estudos da Esfera Pública (Peep) da
Ebape/FGV.
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