Judicialização da política no Brasil

O protagonismo da justiça sobre os poderes políticos.
  
 
A substituição da legitimidade do sistema político pela aristocracia do sistema de justiça revela o grande paradoxo em que vivemos: prescindir da democracia numa época em que se alcança uma liberdade segmentada, seja como consumidor, como usuário ou como eleitor

por Luiz Moreira [*]

A judicialização da política alcançou patamares alarmantes no Brasil. Sob o argumento de que vivemos sob uma democracia de direitos, o sistema de justiça passou a tutelar todas as áreas, interferindo em políticas públicas, imiscuindo-se no mérito do ato administrativo, desbordando de suas competências para envolver-se com assuntos que violam assim a autonomia dos poderes políticos, tudo submetendo ao jurídico. Essa tentativa de colonização do mundo da vida pelo jurídico se realiza mediante um alargamento do espectro argumentativo, desligando a argumentação jurídica de qualquer vinculação à lei.


Os tribunais e a democracia

Hoje, a legitimidade da democracia no Ocidente decorre dos tribunais constitucionais. Conforme esse modelo não apenas ocorre a judicialização da política, mas sua consequente criminalização, chegando-se à conclusão de que a democracia emana do direito. Esse quadro teórico contraria todo o projeto libertário contido na modernidade.

O sentido da modernidade estabelece-se com a elevação da crise à estrutura racional, tanto no patamar teórico como no prático, como é expresso por Newton na física e por Kant na filosofia. Não havendo mais oráculos para consultar nem sacralidades donde se deduzem respostas, as decisões passam a ser dos cidadãos, que, associadamente, são plenipotenciários. Não se trata de simples separação do poder em esferas autônomas, conforme uma organização horizontal, mas de estabelecer uma verticalidade, com a qual o exercício funcional do poder se submete à soberania popular. Para ser legítimo, o Estado se submete ao poder dos cidadãos, e estes atribuem aos poderes políticos a direção dos negócios estatais. Como não há Estado legítimo sem democracia, é o governo democrático que atribui legitimidade às manifestações estatais.

Os tribunais constitucionais são criados por meio de um ato político decorrente da vitória norte-americana na Segunda Guerra Mundial. Passada a guerra, a fim de esmagar a diversidade cultural, as distintas visões de mundo, e submeter todos a uma mesma orientação, os Estados Unidos impuseram aos vencidos a adoção de tribunais constitucionais. O exemplo alemão é marcante. Sem eleições nem democracia foi outorgada uma Lei Fundamental e criado o tribunal constitucional na Alemanha. Como compatibilizar a existência de um tribunal dito constitucional se não há Constituição? A resposta é simples: o exercício funcional do poder pode perfeitamente ser jurídico sem ser democrático.

O modelo dos tribunais constitucionais foi imposto à Europa como forma de enfrentar regimes totalitários, mas houve algo profundamente nazista que sobreviveu à guerra. Trata-se de orientação presente nas cartas do ministro da Justiça do Reich destinadas aos juízes alemães: o apelo ao contorno às leis, às suas prescrições, e sua substituição pela concreção dos ideais nazistas que deveria ser operada pelos juízes. O que se pretendeu com isso? Estabelecer o primado da interpretação judicial sobre a lei. O propósito é claro: trata-se de conferir supremacia política à interpretação realizada pelo Judiciário, operada por uma argumentação sem peias. Ao magistrado é conferido o papel de oráculo. Vivia-se a quebra de paradigmas com a entronização do particular sobre o universal.

Tema dos mais candentes nas democracias é o exercício legítimo do poder e o modo como se realiza sua contenção. Estabelece-se uma estrutura majoritária (a política) e uma contra majoritária (a judiciária). Desse modo, nas democracias, direitos são reconhecidos pelos poderes políticos e defendidos pelo sistema de justiça. Há assim uma tarefa positiva e outra de contenção.

A democracia subordina o poder político aos cidadãos, numa estrutura verticalizada. Assim, direitos são reconhecidos por uma estrutura majoritária em que as deliberações dos poderes representativos espelham, por vezes, contraditórias manifestações de vontade. A isso se chama “soberania popular”, e é esta que torna legítimo o poder estatal.

O dever de contenção é exercido pelo sistema de justiça. A tarefa do Judiciário é garantir que os direitos e as garantias fundamentais sejam efetivados enquanto perdurar o marco jurídico que os instituiu. Assim, o Judiciário é, por definição, garantista. Nesta seara uma diferenciação foi introduzida no Brasil, em 1988, com as prerrogativas conferidas ao Ministério Público, pelas quais lhe cabe promover direitos. Passa a haver uma divisão de tarefas, cabendo ao Judiciário agir conforme um padrão de inércia e ao Ministério Público promover as ações necessárias ao cumprimento das obrigações jurídicas.

Essa diferenciação é especialmente relevante no direito penal e no tributário, pois, como se trata da defesa da liberdade e da propriedade, as funções se especializam em decorrência da exigência de as vedações estarem rigorosamente previstas no ordenamento jurídico.

Na seara penal, o Judiciário age como a instância que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma inequívoca o que alega. Ao acusador cabe produzir o arsenal probatório apto a efetuar a condenação. Aos cidadãos é deferida a perspectiva de defender-se com os meios que lhes estiverem ao alcance. Garante-se, nesses casos, uma imunidade conceitual erguida para salvaguardar as liberdades do cidadão ante o poder persecutório do acusador.

Ora, como é o Estado que promove a acusação, por intermédio de um corpo de servidores constituído especificamente para esse fim, ao Judiciário cabe submeter a acusação ao marco da legalidade estrita. Isso ocorre para garantir as liberdades e tem o Judiciário como seu guardião.

É essa divisão de tarefas que dá legitimidade ao sistema de justiça. Caso contrário, por que as decisões judiciais seriam cumpridas? Por que elas seriam respeitadas? Por que então os próprios cidadãos ou entes da sociedade civil não resolveriam por si mesmos tais conflitos? É o reconhecimento de um papel garantista que confere ao Judiciário o acolhimento de suas decisões. Já o reconhecimento da atuação do Ministério Público se vincula à promoção das obrigações jurídicas.

Desse modo, não se atribui ao Poder Judiciário o “fazer” justiça. O que se lhe atribui é o desempenho de um papel previamente estabelecido, pelo qual “fazer justiça” significa o cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

A legitimidade do sistema de justiça decorre de sua atuação técnica e de seu respeito a uma ordem jurídica na qual as obrigações jurídicas são democraticamente formuladas. Justifica-se o cumprimento das obrigações jurídicas e das decisões judiciais pela expectativa de que estas se realizem conforme uma correção procedimental não sujeita a humores, arbitrariedades ou imprevisibilidades.

Embora o desempenho desses papéis seja formalmente estabelecido, eles existem em razão de uma autorização expressa dos cidadãos que lhes infundem legitimidade. É assim que Montesquieu se vincula a Locke, submetendo o exercício horizontal do poder à democracia, isto é, à soberania popular. São a previsibilidade e a imputabilidade universal das obrigações que legitimam a atuação do Poder Judiciário e lhe atribuem um papel previamente delimitado. Assim, é absolutamente incompatível com o regime democrático um Judiciário que paute suas decisões por critérios extrajurídicos, conforme uma tradição aristocrática.

Cabe ao Judiciário limitar-se ao cumprimento de seu papel constitucional, distanciar-se da tentativa de constatar as vontades, aplicar aos jurisdicionados os direitos e as garantias fundamentais, sendo, por isso, garantista e contra majoritário.



O poder da Assembleia Constituinte e o poder do Parlamento

O poder que torna possível a Constituição torna possível também os códigos e as leis. Assim, o que distingue o poder constituinte do processo legislativo é a autorização expressa (o voto) dos cidadãos, dotando a Assembleia Constituinte do poder necessário para constituir todas as relações. Sua autoridade criativa repousa mais na atribuição dada aos constituintes para criarem uma nova realidade jurídica do que em um ato fundante. Assim, os cidadãos são livres e plenos de poderes para fazer tantos atos fundadores, constituintes, quanto acharem conveniente.

Por conseguinte, são os sujeitos de direito, em ato soberano, que conferem existência e autorizam o exercício do poder constituinte. Desse modo, este não é sede de poder algum, detém apenas o exercício de uma faculdade que emana diretamente dos cidadãos: a de atribuir um sentido às normas e estruturá-las conforme o sentido atribuído.

Fundando-se no poder dos cidadãos, tanto o processo constituinte quanto o processo legislativo permitem a atualização de um poder que estrutura a liberdade e a assegura por meio de um ordenamento conceitualmente concatenado.

O processo constituinte e o processo legislativo decorrem da soberania popular e, como formas de exercício da representação do poder político circunscrito apenas aos cidadãos, não se distinguem entre si, pois o mandato de ambos é obtido da mesma fonte, ou seja, dos cidadãos.

A transformação da Assembleia Constituinte em instância apartada da política resultou em uma engenharia institucional em que a representação do poder é deslocada das instâncias que decorrem do voto para as instâncias judiciárias, pois caberia às cúpulas dos tribunais e ao Ministério Público garantir a efetividade da Constituição. A interpretação constitucional fecha o circuito da judicialização da vida, substitui o espaço da política ao atribuir sentido às normas e submete a democracia deliberativa ao processo judicial.

Acossada por um sistema jurídico que entende o Parlamento como maculador da pureza herdada da Assembleia Constituinte, a sociedade vê-se desprovida de formas de expressão de sua vontade e de sua representação, substituídas por um ativismo do Judiciário e do Ministério Público, que passa a ser o titular da formulação, da interpretação e da efetividade das normas, reunindo, sob seu arbítrio, as prerrogativas legislativas, judicativas e executivas. Esse Estado de exceção ganha efetividade através de três passos.

Primeiro, com a judicialização da política, operada pela submissão dos poderes políticos aos tribunais e ao Ministério Público; segundo, com o protagonismo da justiça eleitoral, que transforma as eleições de ato político em jurídico, nas quais os candidatos são substituídos pelos juízes e promotores eleitorais; e terceiro, com a submissão da política à técnica, mediante a dicotomia entre Estado e governo, formulada para a blindagem das carreiras de Estado ante o resultado das urnas.


Democracia no Brasil: um projeto inacabado

A judicialização da política se estabelece tanto com a burocratização das decisões cotidianas como com a exclusão dos que são investidos pelo voto para tomá-las. A substituição da legitimidade do sistema político pela aristocracia do sistema de justiça revela o grande paradoxo em que vivemos: prescindir da democracia numa época em que se alcança uma liberdade segmentada, seja como consumidor, como usuário ou como eleitor. Acreditando que a liberdade se realiza no conjugar das particularidades, o homem moderno foi privado de sua cidadania, até o limite em que se converteu em jurisdicionado.

Há uma afirmação muitas vezes repetida e pronunciada como “mantra” pelos juristas no Brasil: “Cabe ao STF errar por último”. Esse poder de errar por último blindaria suas decisões à crítica, tornando-as indisponíveis, inquestionáveis. Disso decorre outro dogma segundo o qual “decisões judiciais não se discutem, cumprem-se”. Essas posições indicam clara supremacia judicial, resultando em protagonismo do sistema de justiça sobre os poderes políticos.

Posições como essas são inconciliáveis com regimes democráticos, servindo de fundamento à confusão proposital que se faz entre Estado de direito e democracia ou entre Estado de direito e Estado democrático de direito, como se, no caso brasileiro ou em todos os demais, as ditaduras do século XX não tivessem sido todas constitucionais, mantidas com estrita colaboração do sistema de justiça, isto é, pelo Judiciário e pelo Ministério Público.

Nesse sentido, então, é preciso desinterditar a política no Brasil. Assim, creio ser fundamental adequar o cenário institucional à democracia, estruturando os poderes segundo uma lógica vertical, conforme o princípio da soberania do povo.

Por isso, é imprescindível que a política seja desinterditada e para tanto é preciso estabelecer um novo marco para as relações institucionais, de modo a oferecer saídas (1) no campo do direito administrativo, especificamente no que diz respeito à caracterização da improbidade administrativa; (2) na gestão pública, relativamente ao conceito de legalidade e de moralidade; e (3) na esfera política, aplicando a separação dos poderes à justiça eleitoral.



* Doutor em Direito e mestre em Filosofia pela UFMG e diretor acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem (MG).

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