A cor dos homicídios no Brasil
Cidades Controladas/Ilus.: Jean Jullien |
Entre
2002 e 2010, o país apresentou uma inquietante tendência de aumento
da distinção entre negros e brancos nos índices de mortalidade. Se
os dados globais de homicídio mudaram pouco nesse período, em torno
de 27 para cada 100 mil habitantes, foi em razão da queda dos
homicídios brancos e crescimento dos negros
Julio Jacobo Waiselfisz[*]
O
Brasil está cada dia mais longe de manifestar respeito a um direito
essencial, que é o direito à vida e à segurança sem distinção
de raça ou cor, proclamado pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
O
Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde,
construído com base nos padrões internacionais da Organização
Mundial da Saúde, é a única fonte que temos disponível, até os
dias de hoje, que verifica em nível nacional o quesito raça/cor das
vítimas de homicídio. Esse item só foi incorporado em 1996, mas
nos primeiros anos de vigência seu preenchimento foi muito
deficitário, melhorando de forma progressiva. Assim, a partir de
2002, quando a identificação da raça/cor já estava na casa de
92%, pudemos considerar os dados suficientemente confiáveis para
iniciar as análises sobre o tema. O último dado divulgado, até o
momento, corresponde ao ano de 2010.
Segundo
os registros desse sistema, entre 2002 e 2010 morreram assassinados
no país 272.422 cidadãos negros, o que dá uma média de 30.269
assassinatos por ano. Só em 2010 foram 34.983. Na cruenta Guerra do
Iraque, as estimativas mais elevadas indicam que de 2003 até fins de
2009 morreram 110 mil pessoas, incluindo civis, o que significa 15,7
mil por ano. No Brasil, país que não aparenta ter conflitos
étnicos, religiosos, de fronteiras, raciais ou políticos, morre
assassinado o dobro de cidadãos negros todos os anos e mais do
triplo – 52.260 em 2010 – de seus habitantes de todas as raças e
cores.
Embora
os números sejam preocupantes, inquieta mais ainda a tendência
crescente dessa mortalidade discriminante. Se os índices globais de
homicídio do país nesse período mudaram pouco, em torno de 27
homicídios para 100 mil habitantes, foi em razão de uma associação
inaceitável de queda dos homicídios de brancos e crescimento dos
homicídios de negros:
•
Considerando o conjunto da
população, entre 2002 e 2010 o número absoluto de vítimas brancas
de homicídio caiu de 18.867 para 14.047, queda de 25,5%. Já as
vítimas negras cresceram de 26.952 para 34.983, incremento de 29,8%.
• Com
isso, o índice de vitimização negra na população total, que em
2002 era 65,4% – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4%
mais negros que brancos –, em 2010 pulou para 132,3%.
• As
taxas de vítimas entre os jovens negros – 15 a 29 anos de idade –
duplicam, ou mais, os da população total. Assim, em 2010, se a taxa
de homicídio da população negra foi de 36 em 100 mil, a dos jovens
negros foi de 72 para 100 mil.
• Com
isso, a vitimização de jovens negros, que em 2002 era de 71,7%, em
2010 pulou para 153,9% – morrem, proporcionalmente, duas vezes e
meia mais jovens negros que brancos.
• Os
dados também apontam que essa vitimização negra está crescendo de
forma rápida e preocupante por suas implicações sociais e
políticas.
Esse
é o panorama nacional, a média do país. Mas, se olharmos para as
unidades da federação e, mais ainda, para os municípios, veremos
situações extremas que deveriam ser fonte de séria atenção:
• Seis
estados apresentaram, em 2010, taxas de homicídio acima de 50 para
100 mil negros: Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pará, Pernambuco
e Distrito Federal.
• Oito
unidades ultrapassaram a marca dos 100 homicídios para 100 mil
jovens negros: Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Mato
Grosso, Distrito Federal, Bahia e Pará.
• Na
Paraíba, em 2010, foram registrados 47 homicídios brancos e 1.335
homicídios negros. Considerando as respectivas populações, a taxa
de homicídios brancos foi de 3,1 para 100 mil brancos contra 60,5
para 100 mil negros. Dessa forma, o índice de vitimização negra
foi de 1.824: para cada branco morreram, proporcionalmente, dezenove
negros.
•
Diversos especialistas estabelecem
que níveis acima de 10 homicídios para 100 mil habitantes
caracterizam situação de violência epidêmica. Todos os estados
brasileiros superam esse patamar. As unidades com as menores taxas de
homicídios negros em 2010, Santa Catarina e Piauí, ostentavam,
respectivamente, 13,3 e 15 homicídios para 100 mil negros.
• A
heterogeneidade de situações torna-se ainda maior quando
desagregamos os dados para os municípios do país, com casos
extremos como o de Ananindeua, no Pará, onde em 2010 foram
registrados 33 homicídios brancos e 705 negros, o que origina taxas
de 29,3 homicídios para 100 mil brancos e 198,8 homicídios para 100
mil negros. No outro extremo, 2.936 municípios – 52,8% do total
nacional – não registraram nenhum homicídio negro em 2010.
• Não
muito diferente é o panorama de algumas capitais do país, como João
Pessoa (PB), onde, em 2010, foram assassinados 16 brancos e 545
negros, taxas de 4,9 homicídios brancos e 140,7 negros. Ou Maceió
(AL), com 17 vítimas brancas e 774 negras.
Dois
fatores devem ser mencionados para a compreensão da situação. Em
primeiro lugar: a crescente privatização do aparelho de segurança.
Como já ocorrido com outros serviços básicos, como a saúde, a
educação e, mais recentemente, a previdência social, o Estado vai
se limitar a oferecer, para o conjunto da população, um mínimo –
e muitas vezes nem isso – de acesso aos serviços e benefícios
sociais considerados básicos. Para os setores com melhor condição
financeira, serviços privados de melhor qualidade. Com a segurança
vem ocorrendo esse processo de forma acelerada nos últimos anos. A
pesquisa domiciliar do IBGE de 2011 é clara sobre as possibilidades
diferenciais de acesso a serviços privados de melhor qualidade: as
famílias negras tinham uma renda média de R$ 1.938,19, e as
brancas, de R$ 3.183,07, isto é, 64,2% a mais.
Em
segundo lugar, e reforçando o anterior, as ações de segurança
pública distribuem-se de forma extremamente desigual nas diversas
áreas e espaços geográficos, priorizando sua visibilidade política
e seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia.
Assim, em geral áreas mais abastadas, de população
prioritariamente branca, ostentam os benefícios de uma dupla
segurança, a pública e a privada, enquanto as áreas periféricas,
de composição majoritariamente negra, nenhuma das duas.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos, pedra fundamental de
nossa moderna convivência, estabelece que: “Toda pessoa tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal [...] sem
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
Temos ainda um longo caminho para tornar realidade esse direito
fundamental proclamado em 1948.
* Coordenador
da Área de Estudos da Violência da Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais (Flacso) e pesquisador do Centro Brasileiro de
Estudos Latino-Americanos (Cebela).
Comentários
Postar um comentário
Comentários