"Por uma frente anti-imperialista mundial"
por
Georges Gastaud
entrevistado
por Rémy Herrera [*]
Pergunta
de Rémy Herrera: Há exactamente um ano foi fundado o Pôle de
Renaissance communiste en France. Quais são as origens do PRCF? Qual
é a sua identidade?
Resposta
de Georges Gastaud : Fundado oficialmente em 18 de Janeiro de 2004, o
Pôle de Renaissance communiste en France (PRCF) é o fruto de uma
longa maturação ideológica, política e organizacional. Para
compreender a sua gênese é preciso retornar à história do Partido
Comunista Francês (PCF) nas últimas décadas.
Em
meados dos anos 70, militantes do PCF opuseram-se individualmente, e
depois de modo cada vez mais coordenado, à deriva social-democrata
do PCF. Uma data chave foi o 22º Congresso de 1976 em que, sob a
cobertura de concorrer com o Partido Socialista (PS) no terreno
eleitoral, a direção do PCF abandonou espetacularmente toda
referência à ditadura do proletariado, ou seja, para além da
expressão, à concepção de classe do Estado, da democracia e da
revolução. Para reconfortar os militantes operários, a direção
do partido pretendia então que se tratava de "renovar" o
marxismo-leninismo, mas após a ditadura do proletariado foram o
marxismo-leninismo e o internacionalismo proletário que foram
riscados dos estatutos do PCF no 23º Congresso de 1979.
Na
realidade, sob o impacto das campanhas anti-comunistas e
anti-soviéticas lancinantes de que a França foi o teatro nos anos
1970, constituíram-se tendências claramente oportunistas e
revisionistas (ditas "renovadoras") no interior da direcção
do PCF, e esta, apesar de algumas veleidades de resistência,
cedeu-lhes cada vez mais terreno. A viragem anti-leninista de 1976,
que o filósofo Althusser qualificava muito justamente como "vaga
direitista", não permitiu qualquer inovação teórica, não
permitiu tão pouco manter o respeito do "aliado" (sic)
Mitterrand, que explicava diante do Congresso de Viena da
Internacional Socialista que o seu objectivo era tomar três milhões
de eleitores ao PCF. Ao contrário, como o demonstrou a experiência
histórica que se seguiu, o PCF de Georges Marchais alinhou-se com a
velha concepção social-democrata de "a" democracia acima
das classes, ou seja, a concepção pré-marxista do Estado,
abandonando na passagem a luta pela transformação revolucionária
da sociedade em nome de um utópico "avanço democrático passo
a passo para o socialismo".
Não
só este deslizamento para a direito não permitiu conter o avanço
eleitoral do PS em detrimento do PCF como os abandonos teóricos
desarmaram ideologicamente os militantes comunistas e as massas
populares que, preocupadas unicamente com a vitória da "esquerda",
não mais compreendiam a necessidade de uma vanguarda política
marxista ligada aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o PCF alinhava-se
(não sem reticências) ao "eurocomunismo", então
impulsionado por Berlinguer (Partido Comunista Italiano) e Carrilho
(Partido Comunista da Espanha). Estes multiplicavam os ataques contra
a URSS — o que nada tem a ver com o direito inalienável de todo
partido comunista à crítica construtiva — e, paralelamente,
sustentavam a construção da Europa capitalista, como indica o
vocábulo "eurocomunismo", comunismo em palavras,
europeismo de facto.
Mesmo
que o PCF se haja por vezes insurgido contra a ruinosa hegemonia de
Miterrand, nos anos 1970-1980 — corretamente, mas demasiado
tardiamente qualificado por Marchais como "atlantista
flamejante" —, ele foi levado em 1981-1984 a entrar em posição
de fraqueza no governo Mitterrand-Mauroy, um governo de gestão leal
da crise do capitalismo, que esvaziou do seu sentido as medidas
progressistas do programa comum da esquerda, praticou um
antisovietismo agressivo (Mitterrand apoiou Reagan totalmente na
crise dos euromísseis de 1984), em pôs em prática uma verdadeira
pedagogia de massa da renúncia à mudança de sociedade. Este mesmo
Mitterrand, que nossos camaradas do estrangeiro por vezes idealizam,
era um inimigo mefistofélico do comunismo, da maneira, da maneira
mais cínica possível, foi o Mitterrand que permitiu igualmente à
Frente Nacional de Le Pen (então praticamente grupuscular) aceder
aos mídias: tratava-se de por no lugar uma (perigosa) alavanca
política de maneira a perturbar a direita clássica, fixar uma parte
do eleitorado opular e dar à esquerda recentrada e realinhada com o
capitalismo uma identidade "antiracista" de substituição.
O
governo com participação comunista de 1981-1984 suprimiu a
indexação dos salários aos preços, sob o impulso do eurocrata
Delors, adoptou a política deflacionista do "franco forte",
que afundou a economia francesa e os salários durante duas décadas
em nome da futura moeda única europeia. Os Mitterrand, Mauroy,
Fabius e companhia liquidaram a siderurgia lorena, a viticultura do
Midi, as minas do Norte, etc, que eram bastiões "vermelhos".
Eles promoveram extensamente emissões de antisovietismo "de
esquerda" — utilizando renegados do comunismo, como o cantor
Yves Montand, ou renegados do esquerdismo, como o "filósofo"
exterminista André Glucksmann —, eles "reconciliaram a
esquerda com a empresa (nome em código do patronato)",
flertaram com o negocismo mais sórdido (o símbolo foi Bernard
Tapie, um bufarinheiro "de esquerda", amigo de Mitterrand),
se bem que esta "esquerda caviar" tenha duradouramente
desgostado uma parte dos assalariados em relação à política e à
possibilidade de mudar a sociedade. Eles cavaram o leito do fascista
Le Pen, e a criatura midiática de Miterrand não tardou a voar com
as suas próprias asas, cultivando o ressentimento popular contra a
falsa esquerda no poder.
PERIGO
EXTERMINISTA
RH:
Referiu-se ao "perigo exterminista". O que é isso? De que
maneira se prende com a estratégia utilizada na luta contra o
comunismo?
GG:
Sobre esse assunto, permito-me recordar que o erro fundamental do
"novo pensamento político" de Gorbatchov, antileninista
irredutível, é ter pretendido "privilegiar os valores
universais da humanidade acima dos interesses da classe do
proletariado". Ora, nunca o combate de classe teve um alcance
humano tão universal como hoje, pois o imperialismo é actualmente o
inimigo "todo-o-terreno" da humanidade: destruição dos
laços sociais pelo neoliberalismo, dilapidação dos recursos
naturais, sacrificados à obtenção do lucro, transviamento da
ciência em todos os domínios, incluindo os das bio-tecnologias, com
enormes riscos de perversão mercantil do genoma humano, genocídios
dissimulados que se estendem a continentes inteiros, mundialização
da guerra, política exterior "nazi-fascista" (Fidel) dos
Estados Unidos, corrida redobrada aos armamentos... Notemos, a este
propósito, que seria aberrante ver a Europa como um "freio"
ao militarismo dos Estados Unidos, quando a constituição da União
Europeia tem por objectivo uma "Europa poderosa"...
Recordo
que, nos finais da 2ª Guerra Fria (1975-1985), a contra-ofensiva
imperialista, cujo objectivo era "vingar a afronta" do
Vietname e pôr o socialismo de joelhos, teve por lema uma palavra de
ordem declaradamente "exterminista": "antes mortos que
vermelhos" (lieber tot, als rot). Nixon declarava, então,
abertamente: se os dirigentes russos não mudam o seu sistema
comunista, devem ficar a saber que terão a guerra. Em França, o
"filósofo" André Glucksmann, que alguns qualificam de
"míssil pensante", declarava friamente, deixando para trás
um certo Hitler, o Reagan dos anos trinta: "prefiro sucumbir com
o meu filho a quem amo e, comigo, a humanidade no seu todo, a
imaginá-lo arrastado para uma qualquer Sibéria planetária".
Em
suma, face ao "perigo" revolucionário que, até finais dos
anos 70, crescia em todo o lado (revoluções em África, América
latina, queda dos regimes fascistas na Europa, vitória do povo
vietnamita, revolução jacobina no Afeganistão, avanço das forças
de esquerda em França e Itália, revolução portuguesa dos
cravos...), a contra-ofensiva imperialista encarava, friamente, tomar
a humanidade "no seu todo" como refém, para abater o
comunismo e o movimento anti-imperialista. Nós esquecemo-nos,
geralmente, de constatar que a implantação dos euromísseis dos
Estados Unidos data de 1984 e que foi seguida, um ano mais tarde, da
chegada ao poder de Gorbatchov, no Kremlin: a cruzada anti-soviética
contra o "Império do Mal", com a sua conotação
exterminista, teve como resultado a vitória dos capitulacionistas
deste novo Munique do gorbatchovismo liquidacionista e, como prêmio
mundial, a contra-revolução de 1989-1991.
Antes
de Gorbatchov, já Andrei Gromyko, dirigente da diplomacia soviética,
começava a recuar ideologicamente perante aquela chantagem
aterradora com que a URSS estava confrontada "em tempo real".
Assim, os soviéticos renunciaram, sob esta pressão, à definição
marxista (e clausewitziana) da guerra como "continuação da
política (da luta de classes) por outros meios", declarando que
a guerra de exterminação nuclear não tinha conteúdo político,
pois prejudicaria, de igual modo, os dois campos e todas as classes.
Gorbatchov levou ao extremo esta lógica capitulacionista e o "antes
mortos que vermelhos" ocidental transformou-se sob a
"catastroika" em "antes não vermelhos que mortos",
o que se traduziu numa política soviética de desarmamento
unilateral, não só no plano militar, mas também no plano
ideológico. Ora, eu lembro que Gorbatchov chegou ao poder em...
1985. Resumindo, o exterminismo, a ameaça permanente de destruição
global que o imperialismo fez pesar sobre a humanidade é de natureza
política e teve o pior efeito político que existe: a
contra-revolução, cujas ondas de choque se traduzem hoje na
contra-reforma dos países capitalistas.
RH:
Pode-se dizer que a Europa de Maastricht é uma Europa
"contra-revolucionária"?
GG:
Sim, é uma Europa contra-revolucionária, é o efeito de reação da
implosão da Europa socialista, estando Maastricht para a Europa
pós-comunista, assim como a Europa de Metternich esteve para a
Europa pós-revolucionária. E qualquer um constata agora que não se
evita a guerra, apesar do que Nixon disse, abandonando-se o
comunismo: a Rússia pós-comunista e neoliberal de Ieltsine e de
Putine está hoje cercada por uma nova cortina de ferro de países
aderentes à NATO e à União Europeia e por bases dos Estados
Unidos, instaladas na Ásia pós-soviética... Portanto, não se
combate o exterminismo, vergando-se a ele, pondo em prática, como
Gorbatchov, um social-pacifismo capitulacionista que, em nome da paz
a qualquer preço, desemboca hoje numa terrível ameaça bélica
contra a Rússia, cercada de bases dos Estados Unidos, "revoluções
laranja" instigadas, na Geórgia e na Ucrânia, "Drang nach
Osten" (a corrida para Leste) da União Europeia imperial e as
guerras civis no Cáucaso.
Em
contrapartida, no magnífico discurso pronunciado em Camagüey, em
1989, Fidel mantinha-se firme quanto ao conteúdo de classe da guerra
e da paz, declarando que " há a paz dos ricos e há a paz dos
pobres, há a democracia dos ricos e a democracia dos pobres "
e, rematando o seu discurso com um retumbante "socialismo o
muerte!". Ora, a pequena Cuba continua lá, viva por ter
resistido, enquanto a grande superpotência soviética, nas mãos dos
neocapitulacionistas, desabou como um castelo de cartas! Não se
luta, pois, contra o exterminismo capitalista, vergando-se a ele, mas
resistindo-lhe e enfrentando-o mesmo, fazendo da acção contra o
capitalismo exterminador um novo terreno, mundial, de convergência
da humanidade progressista contra aqueles que a ameaçam de morte!
Conteúdo contra-revolucionário do exterminismo capitalista,
conteúdo exterminista da contra-revolução! E, portanto,
simetricamente, conteúdo revolucionário da luta anti-exterminista e
conteúdo anti-exterminista da luta revolucionária!
Como
tentei definir em diferentes textos, já não é só para "mudar
a vida" que a humanidade progressista necessita da revolução
socialista; é muito simplesmente para salvar a vida e continuar a
civilização. Mas esta, e voltaremos ao assunto, não será salva
pelo social-pacifismo. O pacifismo não tem sentido para aqueles,
nomeadamente no "Terceiro Mundo", cuja vida se parece com
uma morte lenta. Para salvar a vida, é preciso mudá-la e "a
paz chama-se desenvolvimento".
Esta
dialéctica está sintetizada na divisa cubana " socialismo o
muerte". Isto não significa apenas, em meu entender, que os
revolucionários tenham de morrer – e sobretudo viver – para a
revolução; significa também que, sem a derrota do imperialismo, a
humanidade está ameaçada de declínio e morte. A civilização
afunda-se na nova barbárie neoliberal, encarnada por Bush e a sua
Cruella Rice. O homem submerge-se nas " águas gélidas do
calculismo egoísta " (Marx). Esta é a aportação universal da
revolução cubana na nossa época, a sua significação
anti-exterminista, humanista, no sentido combativo que o hino
operário de Eugène Pottier reivindica, quando escreve: "a
internacional será o género humano".
RH:
Que papel especial podem ter os marxistas actuais frente ao perigo
exterminista?
GG:
O papel dos marxistas é, não o de preferir o "interesse de
classe aos valores universais" (obreirismo), nem o inverso
(gorbatchovismo), mas o de compreender que o imperialismo, no seu
duplo aspecto de contra-revolução e de exterminismo, é o inimigo
mortal da humanidade. Nós não temos a eternidade à nossa frente.
Este sistema senil, perfeitamente encarnado pelo imbecil integrista e
milionário da Casa Branca, está prestes a pôr o planeta a ferro e
fogo pelos seus interesses a curto prazo, escudando-se, para isso,
atrás de uma ideologia messiânica de morte – as referências
constantes ao Apocalipse e à batalha de Armagedão, às Cruzadas, ao
"Império do Mal", ao "Eixo do Mal", ao "fogo
da liberdade" não são, nem pouco mais ou menos, metáforas.
Aliás,
a crise do sistema capitalista só foi um pouco atenuada com a
conquista e partilha em curso dos ex-países socialistas da Europa,
sob formas novas; a baixa tendencial da taxa de lucro continua
presente e o capitalismo monopolista de Estado (CME) tomou a forma
paradoxal de um neoliberalismo pluri-continental, onde a livre
concorrência visa sobretudo os pequenos, enquanto a concentração
capitalista e a intervenção do Estado e dos super-Estados, à base
principalmente de encomendas militares, não deixa de se alargar.
Muitas pessoas confundem o Estado, sistema público de regulação,
com o Estado-Nação, sem verem que o neoliberalismo não é um novo
"liberalismo", mas uma forma paradoxal, transnacional e
monstruosa do CME. Imaginem do que é capaz, sob o seu verniz de
modernidade high tech, este sistema completamente esgotado!
Isto
mostra a urgência e a maturidade objectiva do comunismo na nossa
época: sem a assunção comum, a nível mundial, dos trabalhos,
recursos tecnológicos e naturais, desenvolvimento, proteção do
ambiente, investigação científica, a humanidade não irá longe...
Portanto, a divisa cubana "socialismo ou morte" significa
também: não ao imobilismo, tomemos iniciativas e solidarizemo-nos à
escala internacional! Significa: "resistamos!" E não só
ao imperialismo, mas ao oportunismo, verdadeiro cavalo de Tróia do
capital no movimento operário e anti-imperialista. É impossível
deter o processo contra-revolucionário mundial sem combater o
oportunismo liquidacionista, é impossível combater o oportunismo,
sem que os revolucionários se solidarizem contra ele à escala
internacional, o que significa tomar iniciativas para o renascimento
do Movimento Comunista Internacional e a Frente Anti-Imperialista
Mundial.
Simultaneamente,
eu não pretenderia fazer crer que a luta pelo comunismo mundial se
basta a si mesma. Se não se lançar concretamente na luta para
quebrar as cadeias imperialistas nos seus pontos mais fracos, para
defender o socialismo existente e para fazer emergir novas revoluções
socialistas, ficará tão encantatória como o apelo estéril do
trotskismo à "revolução mundial". Evidentemente, a
perspectiva comunista tem de impregnar cada etapa da luta
revolucionária e eu considero que a perda dessa perspectiva – o
enfraquecimento do Estado encontrava-se, por exemplo, no centro das
Teses de Abril de Lenin, desde 1917 – é uma causa de
degenerescência do sistema socialista existente.
Pelo
contrário, a insistência caracterizadamente comunista de Cuba na
educação e na saúde, segundo o princípio comunista " a cada
um segundo as suas necessidade ", é um factor permanente de
perspectiva do socialismo cubano, apesar das terríveis penúrias
artificiais que o ferem. Mas o comunismo não passa de um voto
piedoso sem a luta pelo socialismo, pela apropriação social dos
meios de produção e pelo poder dos trabalhadores. E isto,
paradoxalmente, pressupõe uma atenção mais acentuada que nunca, de
Cuba à Venezuela, passando pela França, na defesa sem complexos da
"soberania" nacional", que é hoje particularmente
atacada pelos fazedores do Império. A "mundialização"
nada tem de homogéneo e continua marcada pelo desenvolvimento
capitalista desigual, pelas rivalidades explosivas entre o Império
estadunidense e os seus rivais em curso, nomeadamente, a União
Europeia, constituída em Estado supranacional. E, neste quadro, a
divisa leninista " uma cadeia vale o que vale o seu elo mais
fraco " permanece actual. Quebrar a cadeia em tal ou tal ponto,
caminhar para o socialismo, apoiando-se na reconquista da soberania
nacional, purificada de qualquer conotação imperialista, é, ainda
mais do que em 1917, sacudir toda a cadeia imperialista. O colosso
não é, de certo, um "tigre de papel", mas tem pés de
barro! Daí, a importância mundial da resistência, de Caracas a
Katmandu, passando por La Paz.
Ao
esforçarmo-nos por bater a Constituição Europeia, pôr em causa a
integração europeia-imperialista no seu elo mais fraco francês, é
afinal de contas o dispositivo continental de dominação capitalista
que se quer abalar. Pense-se na formidável activação das lutas que
significaria reduzir a uma minoria, pelo sufrágio universal, o
parlamento francês de maioria reaccionária e o presidente da
República, que, ainda há pouco, sem mandato do povo, assinaram a
Constituição Europeia, lançando borda fora os princípios em que
assenta a República francesa: laicidade, separação da Igreja e do
Estado, unidade e indivisibilidade da República, soberania do povo e
da nação, igualdade de todos perante a lei em todo o território,
serviços públicos ... É certo que os revolucionários não criam
as crises revolucionárias que têm condições objectivas de
maturação, enumeradas antes por Lenin. Mas isso também não
significa que devam esperar passivamente pelo seu aparecimento. É
neste sentido que nós militamos pela retirada da França da União
Europeia, apoiando a ideia do Partido Comunista Grego de constituir
um Pólo Progressista Europeu contra a União Europeia do capital.
Assim,
se um pouco de "mundialismo comunista" parece afastar-nos
da nação ou das revoluções sociais iniciadas no quadro nacional,
uma verdadeira perspectiva comunista traz-nos de volta. Não existem,
de um lado, os mundialistas e, do outro, os patriotas. Há, de um
lado, o cosmopolitismo imperial e supranacional, de que o
nacionalismo "étnico" é um auxiliar (veja-se a
Jugoslávia), e do outro, um patriotismo republicano e progressista
associado a um internacionalismo de segunda geração: é o critério
materialista de classe que faz a diferença e permite ligar,
dialeticamente, perspectiva comunista e socialista, soberania
nacional e universalismo comunista.
RH:
Qual é, hoje, o ponto decisivo do debate sobre a Europa, tanto em
França como fora da França?
GG:
Temos de partir da análise concreta do conteúdo de classe da
integração europeia. Desde o começo, a Europa capitalista dos seis
foi um instrumento da guerra fria anti-soviética e opôs-se, com
Berlim na linha da frente, à outra Europa, a Europa socialista. Em
1989, a "reunificação" alemã foi, na realidade, uma
anexação da RDA e permitiu reconstituir uma Grande Alemanha
capitalista, que disputa aos Estados Unidos a liderança na Europa.
Esta Alemanha, sob um aspecto melífluo e abertamente
"anti-hitleriano", prossegue, por outros meios,
aparentemente mais "doces", os mesmos intuitos
expansionistas do imperialismo alemão de antes, como o ministro
Joschka Fisher não deixa de assumir impudentemente. Veja-se um mapa
da Mitteleuropa: todos os vizinhos da RFA implodiram, estão em vias
de implodir ou serem postos sob tutela. A Checoslováquia foi
cindida, sem consulta popular, em dois micro-estados, fáceis de
dominar. Os países bálticos tornaram-se neo-colónias. Por quanto
tempo o enclave russo de Kaliningrado (ex-Königsberg) destoará no
coração da União Europeia em marcha para Leste?
Toda
a gente conhece o papel da RFA, aliada de circunstância do
maquiavélico João Paulo II no desmembramento da Jugoslávia,
desencadeado com o reconhecimento unilateral pela Alemanha e Vaticano
da independência croata, decretada pelos herdeiros pouco discretos
dos Oustachis. A Bélgica está a morrer, morta por Bruxelas; a
própria França, aspirada pelo projeto neo-pétainista da "
Françalemanha " – é este o nome correntemente empregado
pelas nossas "elites" – declina e divide-se em
"euroregiões", contra a sua tradição jacobina de
centralização republicana e pensa-se já em "desterritorializar"
a cidade de Estrasburgo. Para onde olham a Liga Lombarda de Itália e
da Áustria de Hayder? Não estaremos em vias de reconstituir os
"Impérios Centrais" que dominavam a Europa antes da
Revolução de Outubro?
Esta
Europa não é a nossa. A sua bandeira clerical – confessadamente,
o seu criador imaginou uma bandeira mariana, com as doze estrelas dos
apóstolos – não é a nossa. Relançada pela derrota do socialismo
soviético, uma derrota para todos os povos, volto a dizer, a Europa
de Maastricht é para a contra-reforma capitalista o que a Europa de
Metternich foi para a restauração feudal depois da derrota francesa
de 1815. O projecto de Constituição Europeia visa, como o próprio
nome indica, constituir em ESTADO supranacional e expansionista, isto
é, em IMPÉRIO, a União Europeia dominada pelo grande patronato,
acobertado pelos liberais, pela democracia cristã (com um papel,
insuficientemente assinalado, do Vaticano, líder deste projecto
desde o fim da guerra, pelo menos!) e pela social-eurocracia. Esta
Constituição é claramente neo-clerical (diálogo obrigatório com
as Igrejas), imperial e militarista (o exército europeu integrado na
NATO terá por tarefa propagar a "boa governação" no
exterior da União Europeia, os orçamentos militares dos
Estados-membros deverão aumentar de ano para ano, como está
escrito!), antinacional (as leis e constituições nacionais ficam
submetidas às leis e Constituição Europeia), antidemocrática (não
é o Parlamento Europeu, mas a Comissão Europeia, o executivo não
eleito, que tem a verdadeira iniciativa das "leis"!),
totalitária (a União Europeia é definida como uma "economia
de mercado onde a concorrência é livre e não aparente").
Nenhuma
política de esquerda é possível neste quadro! É, pois, uma
política única, pré-determinada pela ordem constitucional. Por
isso, os dirigentes políticos que aceitam esta constituição são
traidores à nação e a qualquer ideia de democracia. Os que recusam
esta constituição, mas fazem acreditar ser possível uma
"reorientação progressista da União Europeia", uma
renegociação da constituição (com quem? Berlusconi? Chirac?
Blair?) são ilusionistas que enganam o povo. Não se "reforma"
uma constituição imperial, ainda que se lhe injetem questões
"sociais" (é uma hipótese acadêmica!); faz-se tudo para
a combater e fazê-la fracassar! Se assim não for, estaremos como
aqueles "socialistas" de 1914 que mascaravam a guerra
imperialista de "defesa da pátria"! Em que é que um
imperialismo será menos perigoso quando supranacional, em vez de
apoiado em nações, como em 1914?
Na
realidade, os partidários do "euro-construcionismo de
esquerda", sociais-democratas, euro-comunistas,
euro-trotskistas, são, sem se darem conta e com a melhor consciência
do mundo, sociais-imperialistas, socialistas de palavras,
imperialistas na prática. O que eles recusam analisar,
particularmente, é a natureza das contradições interimperialistas.
É verdade que hoje a Europa – incluindo a Europa alemã –
"segue" mais ou menos os Estados Unidos. E percebe-se, pois
não tem ainda um Estado (os Estados Unidos da Europa), um exército,
uma polícia, uma força nuclear europeia. Mas que acontecerá
quando, dispondo dos atributos políticos, diplomáticos e militares
da "Europa poderosa", a União Europeia estiver em
condições de afrontar os outros imperialistas – em nome, está
claro, da "paz" ou do "modelo social europeu", em
plena falência! – pela hegemonia mundial dos mercados, recursos
petrolíferos, etc? O objectivo principal da luta contra a União
Europeia é, pois, a defesa da paz mundial, no século XXI!
RH:
Então a União Europeia não apresentaria nenhuma vantagem em
relação ao imperialismo dos Estados Unidos, que é o mais perigoso
de todos?
GG:
Que a constituição em Estado da União Europeia possa, a curto
prazo, apresentar uma vantagem para os camaradas que estão na
primeira linha de luta contra o imperialismo dos Estados Unidos, não
é bem assim! A União Europeia não apoiou a resolução cubana da
ONU para Guantânamo, quando o ministro Felipe Roque defendeu
habilidosamente uma resolução inspirada no Parlamento Europeu, o
que compreendo perfeitamente. É preciso utilizar as contradições
inter-imperialistas, como fez Lenin em Brest-Litovsk. Mas eu vivo na
Europa e, sem ignorar o facto de que hoje o imperialismo
estadunidense é o mais perigoso de todos, eu tenho de combater AQUI
o Estado imperialista, que se constrói com a ajuda dos dirigentes
burgueses franceses. " O imperialismo principal está no teu
próprio continente ", diria eu cum grano salis, parafraseando
Liebknecht.
No
quadro do capitalismo, quando nenhum país europeu está empenhado na
construção do socialismo, nem faz uma política minimamente
progressista, parece-nos aberrante a ideia de verdadeiros
progressistas quererem renegociar uma "outra" constituição
supranacional. Aliás, se um dia viesse a lume um texto internacional
progressista, ele seria inter nacional e não supra nacional. A
perspectiva comunista não é o esmagamento das nações, mas a sua
fusão por cima, com cada uma delas a trazer à humanidade o que,
historicamente, produziu de melhor... e de mais original! O valor
universal concreto não é a abstracção uniformizadora de
Maastricht, do Basic English e da World Company. A sua riqueza está
na diversidade, do mesmo modo que o comunismo não é a negação do
indivíduo, mas a sociedade sem classes onde, segundo Marx, "o
desenvolvimento de cada um é a condição de desenvolvimento de
todos".
"NÃO"
À CONSTITUIÇÃO EUROPEIA
RH:
Nessas condições, como lutarmos todos juntos para que vença o
"não" à Constituição Europeia?
GG:
Não há, da nossa parte, nenhum sectarismo em relação aos outros
partidários progressistas do "não", pois é necessário
distinguir um acordo político de fundo da unidade para objetivos
concretos. Contra a Constituição Europeia, nós trabalhamos em
círculos concêntricos. Por um lado, fazemos uma campanha
francamente comunista em nome do PRCF e dos seus aliados comunistas.
Por outro lado, de forma mais alargada, em sinergia com o Comité
Nacional contra a Constituição Europeia, mas também com
republicanos e defensores de esquerda da soberania nacional,
implementamos uma campanha operária, popular, anti-imperialista,
patriótica e internacionalista. De modo mais alargado ainda,
solicitamos as forças de esquerda favoráveis ao "não"
(ATTAC, PCF-Norte, etc.) a uma coordenação alargada da batalha ao
"não ". Impõe-se partir de uma ideia simples: a vitória
do "sim" bloquearia qualquer perspectiva histórica, ao
passo que a vitória do "não" reabriria o futuro.
Então,
"marchemos lado a lado e ataquemos juntos", levantando o
debate sobre a nação, a Europa, a paz, etc. À escala europeia,
desejaríamos um apelo comum por parte das verdadeiras forças
comunistas contra qualquer constituição supranacional, isto é, as
forças não filiadas no "Partido da Esquerda Europeia".
Nós mesmos assinámos um apelo comum com os espanhóis do PCPE e com
os comunistas e marxistas-leninistas dinamarqueses. De igual modo,
demos, aos camaradas gregos, o nosso acordo de princípio a um Pólo
Progressista Europeu de luta CONTRA a União Europeia e pela retirada
de todo e qualquer país dessa União.
Um
terreno importante é o desenvolvimento da Europa das lutas,
particularmente a revogação do "pacto de estabilidade",
ligado à moeda única, essa polícia continental dos salários que
rompe com todos os direitos sociais adquiridos e reduz as despesas
sociais de cada país europeu, colocado sob a tutela meticulosa de
Bruxelas. No que se refere ao alargamento a Leste da União Europeia,
dizemos que é um presente envenenado aos povos de Leste, polacos,
bálticos, etc, que vão absorver as deslocalizações para quebrar a
classe operária ocidental e servir de mão-de-obra superexplorada,
exportável para toda a Europa, em detrimento de toda a possibilidade
de restaurar a sua indústria nacional e os direitos adquiridos no
período socialista... E agimos, principalmente no quadro do Comité
Erick Honecker de solidariedade internacionalista, para ir em ajuda
dos partidos comunistas perseguidos num bom número de países. Além
disso, procuramos muito particularmente estar em contacto com os
nossos camaradas alemães, pois, face ao eixo imperial "
Françalemanha ", colocado sob o apadrinhamento mítico de
Carlos Magno, torna-se necessário desenvolver o eixo franco-alemão
do proletariado, como aconteceu na época de Thaelmann e de Thorez,
na sua luta antifascista.
RH:
Será possível congregar as lutas, na Europa, na base de um projeto
social europeu, de um programa positivo?
GG:
Poderíamos, talvez, assentar no princípio de que nenhuma legislação
europeia deve ser pior do que a que os trabalhadores já obtiveram no
quadro nacional, recolhendo o que há de melhor em termos sociais,
democráticos e culturais. Mas isso deixaria supor que é possível
uma "Europa boa", quando o que conta antes de mais é
romper o espartilho supranacional e travar a marcha do Estado
imperial, que também é um perigo enorme para os povos do Terceiro
Mundo. É evidente que, se um ou vários países se orientassem num
sentido progressista, a primeira preocupação deveria ser a de se
libertarem da tutela supranacional, para encontrar de novo uma margem
de manobra interna, ao mesmo tempo que apelariam à solidariedade de
todos os trabalhadores da Europa.
Falar,
hoje, de um projeto social europeu, parece-nos que é alimentar a
ilusão de uma Europa social. Sem uma planificação socialista do
desenvolvimento, utópica ou reativa, sem uma ou várias revoluções
socialistas na Europa, é impossível, por exemplo, pensar num SMIC
(salário mínimo) europeu que não seja uma regressão ou, no melhor
dos casos, a pílula dourada provisória, mas necessária à
social-democracia, para fazer passar o Estado europeu do capital, um
quarto Reich do capital que esconde uma mão de ferro sob uma luva de
veludo!
De
uma forma mais alargada, "metodológica", os marxistas têm
de distinguir o terreno europeu, que deve ser evidentemente
trabalhado de maneira internacionalista, do quadro político europeu,
que se impõe atacar frontalmente, tão perigoso é para o movimento
operário. Os "euroconstrutivistas" de esquerda confundem
estas noções, dando a entender que o quadro europeu é indiferente
ao conteúdo social, como se fosse uma garrafa onde se poderia
verter, indiferentemente, vinho tinto ou vinho branco, segundo as
relações de força do momento. Na realidade, numa garrafa adaptada
apenas ao vinho branco, o vinho tinto azeda, quando lá é vertido.
E
é precisamente por isso que os capitalistas franceses, incapazes de
dominar pelos seus próprios meios a sempre rebelde classe operária,
optam pelo terreno supranacional, onde podem apoiar-se nas outras
burguesias para vergar a República. É já uma velha política: dos
emigrados de Coblence, que combatiam Robespierre nas forças da
Coligação contra-revolucionária, a Adolphe Thiers, chamando
Bismarck em seu auxílio para esmagar a Comuna, ou a Pétain e Laval
que "colaboravam" com Hitler para destruírem as conquistas
da Frente Popular, a burguesia "francesa" mostra uma grande
continuidade – se exceptuarmos o episódio gaulista, que coincidiu
com a criação de monopólios capitalistas nacionais – na sua
raiva em destruir o quadro nacional, que nunca deixara de a assustar
de 1936 a Maio de 1968. Por isso, tendo como alvo a Europa
capitalista, não nos desviamos do combate contra os "nossos"
exploradores nacionais que, na realidade, são anti nacionais.
Mais
uma reflexão: temos de ser prudentes, no quadro geográfico europeu,
enquanto "território" para uma construção política
progressista. E isso, mesmo no futuro, quando o pêndulo da história
se inclinar para o lado do progresso social. Um quadro geográfico
nunca é totalmente neutro, historicamente falando. Associar a
Alemanha, a Itália, a França, a Grã-Bretanha, a Espanha, a
Holanda, matrizes históricas do imperialismo, num mesmo quadro, que
esses mesmos países dominariam inevitavelmente, é correr o risco de
constituir um superimperialismo ou até, no futuro, um
social-imperialismo "branco". Não é impunemente que se
juntam as antigas metrópoles coloniais. Como evitar que um tal
conglomerado se volte contra a Rússia, os países de África e do
Magrebe? Pelo menos, um quadro destes deve e deverá estar
sistematicamente aberto e associado aos países do Leste e do Sul da
Europa.
POR
UMA EUROPA DAS LUTAS
RH:
Nessas condições, não é talvez preferível falar da Europa das
lutas?
GG:
De facto, nós falamos da Europa das lutas, porque há um interesse
comum imediato para todos os trabalhadores da Europa: derrotar a
política económica decidida em Bruxelas e Frankfurt. Pode ser útil,
para desenvolver essa Europa das lutas – coisa bem diferente da
inexistente "Europa social" – pôr a tónica na ideia da
"nação social e democraticamente mais favorecida", isto
é, num alinhamento por cima das legislações sociais e dos
salários, com tudo o que lhe é correlativo, pois patrões e
governos apresentarão sempre uma regressão como um avanço: o
direito de veto para cada povo e para aqueles que representam os
trabalhadores de cada país, em qualquer reforma europeia. Mas isto
rebentaria manifestamente com a máquina supranacional enquanto tal.
Em suma, nós não fazemos "sonhar", nas condições
actuais, com a "bela Europa" do futuro. Primeiro, há que
reaprender a dizer não, de punhos fechados, e não correr de modo
nenhum o risco de atenuar esse "não" com um... "nim".
Enfim,
a reconquista da independência nacional que preconizamos interessa a
todos os amigos do progresso. Quando se examina o conteúdo real da
Constituição Europeia, damo-nos conta de que, não só barra o
caminho a qualquer regresso ao socialismo no Leste da Europa, não só
ataca as conquistas democráticas resultantes da relação de forças
mundial que se seguiu à derrota do nazismo – o que é
particularmente verdadeiro em países como a França, onde os
comunistas foram a ponta-de-lança do governo de libertação
nacional de 1945-46, com avanços sem precedente nos salários –,
mas ainda sapa as conquistas da Revolução de 1789-94. Uma
contra-revolução anticomunista pode assim esconder uma outra –
anti-República burguesa.
A
Europa em construção é três vezes "branca": no sentido
racista da palavra (em todos os países, há agora imigrados
(europeus" e "não-europeus"!), no sentido dos russos
brancos de 1918-21 e no sentido dos "Brancos", Vendeanos e
outros Chuãs que se insurgiram contra a Primeira República e
combateram a Revolução Francesa com a ajuda da Inglaterra. As
conquistas importantes da revolução burguesa democrática que são,
e não apenas para a França, os princípios de soberania do povo, de
laicidade, de igualdade jurídica dos cidadãos e, mesmo, a separação
dos poderes, filha da reflexão de Montesquieu, estão ameaçadas e,
com elas, o legado da filosofia das Luzes, por toda a parte atacada
pela ideologia antiprogressista dominante.
Acrescento
que a França burguesa de De Gaulle que levava a cabo, no interior,
uma política de reação e, no exterior, uma política de
não-alinhamento e, até, de confrontação com os Estados Unidos, só
foi possível no quadro de uma relação de forças mundial, marcado
pelo equilíbrio Leste-Ocidente. Tendo ruído essas relações de
força geopolíticas, a França independente e "gaulista"
tornou-se insustentável – e eu evoco aqui, dando-lhe um alcance
geopolítico, as análises clássicas de Marx acerca do bonapartismo
como emergência de uma força relativamente independente,
aproveitando um antagonismo de classe, momentaneamente, equilibrado –
excepto quando a classe dos trabalhadores assalariados trava luta
para se erigir em "classe nacionalmente dominante", isto é,
segundo as palavras de Marx, para se "tornar a nação".
Se
a formação social francesa for laminada pela Europa capitalista,
isso será uma nova derrota de âmbito internacional para o campo do
progresso. Um país capitalista, mas bastante "atípico",
onde os serviços públicos eram poderosos, onde a Educação
permanece nacional e laica, onde a "excepção cultural" é
defendida, mesmo por uma parte da burguesia, contra as "leis do
mercado", onde a esquerda e o comunismo encontram raízes
históricas e uma parte dos seus "mitos" fundadores,
desaparecerá e isso será ainda mais duro para todo o mundo. Que se
tenha na memória o Iraque, fossem quais fossem as segundas intenções
de Chirac, ao resistir – sem grande apoio da Rússia e da China,
diga-se de passagem – à guerra programada pelos falcões de
Washington.
RH:
Alguns camaradas dizem "ser demasiado tarde", que "a
integração capitalista europeia é irreversível"... Que
resposta é que se lhes dá?
GG:
Era essa exatamente a atitude daqueles que, em 1940, consideravam que
a subordinação da França à "nova ordem europeia" se
tornara incontornável. Mas temos de ser prudentes com a ideia da
irreversibilidade na história. A contra-revolução no Leste, o
"desfazer" do campo socialista e, depois, da URSS,
começaram com a improvável "saída" do Tratado de
Varsóvia da... Polônia! E a URSS existia há 70 anos, enquanto a
União Europeia está longe ainda de se encontrar consolidada. Não
seria um paradoxo menor se o "desfazer" da Europa de
Maastricht começasse por um dos grandes Estados que criaram o
Mercado Comum.
SAÍDA
DA UNIÃO EUROPEIA
RH:
Mas é possível hoje, de facto, a saída da França da União
Europeia?
GG:
A saída da França da União Europeia só seria uma catástrofe para
a grande burguesia francesa, seus homólogos e mentores. Os
funcionários dos serviços públicos, os operários deslocalizados,
os beneficiários da segurança social, os pequenos e médios
agricultores... soltariam um suspiro de alívio. Os trabalhadores da
Europa sentir-se-iam encorajados. Claro que seria necessário
acompanhar tal saída com uma reconquista resoluta da soberania
econômica E da cooperação internacional em todos os domínios,
centrada no desenvolvimento do sector público e na procura de
parcerias diversificadas, principalmente com os países do Sul. Mas,
sobretudo, seria necessário começar resolutamente a luta pela
transformação revolucionária da sociedade e apelar à
solidariedade dos povos da Europa e de outros continentes.
Se
Cuba se "mantém", face ao bloqueio, em condições mil
vezes mais duras, se a Venezuela bolivariana resiste e desenvolve-se,
apesar da espada de Damocles dos Estados Unidos lhe pender sobre a
cabeça, por que é que um país como a França, que forçou sozinha
o destino em 1789, não poderia tentar a sua sorte, contando, sem
exageros, com um grande movimento internacional de solidariedade e de
luta? O que nos deve guiar até essa etapa é a audaciosa afirmação
de Lenin: "não se consegue dar um só passo se se receia
caminhar para o socialismo". Tomando esta frase a sério, basta
analisar a linguagem – que é o melhor indicador da relação de
forças ideológicas – para compreender até que ponto o quadro
supranacional europeu é mais negativo para a revolução social:
para socializar a produção – objectivo sem o qual o socialismo é
pura tagarelice – há que começar por "europeizar" ou
por "nacionalizar" as grandes empresas? Todos os
trabalhadores sabem que, quando uma grande empresa como, por exemplo,
a EDF (Electricité de France), é "europeizada", isso
significa que é... privatizada, o que mostra à evidência que os
dois quadros, nacional e supranacional, não são equivalentes para a
transformação socialista da sociedade!
Repitamos,
então, que o determinante aqui é os comunistas continuarem fiéis
ao marxismo-leninismo, na Europa, unirem-se o mais cedo possível,
apelarem juntos ao "não" a qualquer constituição
supranacional capitalista, fazerem passar, da teoria à prática, a
ideia de um "Pólo Europeu Progressista" de luta contra a
União Europeia. O que não significa que seja preciso cortar as
pontes com os trabalhadores (apenas com os dirigentes) influenciados
pelo euroconstrutivismo. Temos de estar a seu lado nas suas
movimentações, mas para os esclarecer e não para reforçar as suas
ilusões! A ilusão é por vezes motivadora, admito, mas a questão é
saber em que sentido é colocada. Nem que fosse apenas por respeito à
classe trabalhadora, eu atenho-me à divisa de Gramsci: a verdade é
revolucionária!
"A
VITÓRIA DA NAÇÃO IRAQUIANA INTERESSA A TODOS OS PATRIOTAS DO
MUNDO"
RH:
Passemos agora a uma questão absolutamente fundamental. Qual é a
posição do PRCF relativamente à solidariedade com o povo iraquiano
em luta?
GG:
A resistência iraquiana tem uma importância mundial. Os resistentes
iraquianos já transformaram a "vitória" estadunidense num
atoleiro e nós só podemos desejar a derrota das tropas
imperialistas, o fracasso do poder fantoche erigido pelos Estados
Unidos. A vitória dos Estados Unidos ou, mesmo, uma simples
estabilização, significaria uma guerra contra o Irão e contra Cuba
e uma série infinita de novas predações. Significaria a tutela de
todo o Próximo Oriente e a sufocação do movimento de libertação
dos povos árabes, a possibilidade, para os Estados Unidos, de
consolidar as suas posições no flanco sul do Irão e da Rússia,
nas proximidades da Índia, o domínio total dos Estados Unidos sobre
o Mar Mediterrâneo, a liquidação da luta nacional palestiniana...
A derrota deste objectivo seria um encorajamento formidável a todas
as lutas nacionais. Quando o direito das nações a dispor de si
mesmas está no coração da luta contra o totalitarismo capitalista,
a vitória da nação iraquiana interessa a todos os patriotas do
mundo.
Evidentemente,
nesta luta de libertação nacional, nós sentimo-nos mais próximos
das forças laicas e progressistas, muito especialmente dos
"comunistas iraquianos – quadros de base", que se
afastaram do Partido Comunista oficial, totalmente integrado –
apesar da sua linguagem dúplice de antes da guerra – na
reconstrução do Estado fantoche estadunidense. Esperamos vivamente
que o povo iraquiano saiba evitar as manobras do ocupante, tendentes
a desenvolver uma guerra inter-religiosa ou "inter-étnica"
como manobra de diversão aos horrores da ocupação.
RH:
Que pensa o PRCF da atitude da França quando esta se opôs, numa
certa altura, à agressão dos Estados Unidos contra o Iraque?
GG:
Dizer que a oposição de Chirac à agressão contra o Iraque tinha
apenas motivos nobres, é um reducionismo. Os interesses das
petrolíferas francesas que se aproveitavam do bloqueio estadunidense
para explorar ainda mais os mercados, a "política árabe"
da França que é uma sobrevivência do império colonial francês, a
vontade de preservar o peso da ONU, onde a França dispõe de um
assento no Conselho de Segurança, são os verdadeiros motivos da
atitude de Chirac. Nós não podemos mostrar-nos reticentes mas
apelámos ao governo francês para dar provas de uma atitude
consequente, apresentando o seu veto contra a guerra na ONU,
condenando a agressão dos Estados Unidos, exigindo que a agressão
seja qualificada pela ONU por ser o que é, um crime contra a paz,
retirando a França da NATO, uma aliança agressiva, dominada pelo
estado-gângster estadunidense, disfarçado de "polícia do
mundo".
O
IMPERIALISMO EM ÁFRICA
RH:
Qual é o papel do imperialismo francês contra ou ao lado do
imperialismo dos Estados Unidos?
GG:
No que respeita ao imperialismo francês, em África muito
particularmente, ele está bem vivo. O desequilíbrio nas trocas
econômicas e a dívida testemunham e demonstram que as empresas
monopolistas franco-europeias continuam a pilhar o continente
africano. Nós condenamos a intervenção militar neocolonial na
Costa do Marfim e exigimos a retirada das tropas neocoloniais
francesas de África, de Abidjan a Bangui. Ao mesmo tempo, vemo-nos
forçados a constatar que as rivalidades inter-imperialistas estão
na origem de um bom número de guerras civis, reais ou supostas, na
África subsariana. Os Estados Unidos vêem o imperialismo francês
enfraquecido e procuram tomar o seu lugar. É importante que as
forças progressistas africanas se demarquem de qualquer
imperialismo, porque isso ajudaria enormemente a solidariedade, com
elas, dos internacionalistas da ex-metrópole. Mas, também aqui,
como ajudar o movimento espontâneo das massas africanas a combater
eficazmente o imperialismo se o Movimento Comunista Internacional, se
a Frente Anti-Imperialista Mundial não se reconstituirem? Os
partidos, os movimentos mais fortes destes dois conjuntos têm uma
responsabilidade mundial e nós, fraternalmente, apelamos ao
rompimento com a retracção nacional que tão cara saiu ao Movimento
Comunista Internacional nos anos de 1970-80.
A
nossa jovem organização está longe ainda de ter desenvolvido laços
sólidos com os progressistas africanos. Está longe ainda, mesmo
quando alguns dos nossos camaradas têm responsabilidades no
movimento de apoio aos "sem-papéis", de ter tecido uma
aliança sólida com os trabalhadores e os jovens imigrados desses
países, que são o laço concreto entre a resistência popular
francesa e a resistência africana. São estas as tarefas
prioritárias. A África está sendo crucificada pela remundialização
do capitalismo e a destruição da URSS e do campo socialista foi
particularmente catastrófica para ela. Tiremos disso as
consequências práticas, não para nos lamentarmos, mas para
organizarmos concretamente a solidariedade internacionalista de
combate. Desde o princípio desta entrevista, as minhas palavras
seriam puro nacionalismo, se, ao mesmo tempo, o PRCF não lutasse sem
concessões contra as tentativas de manter o imperialismo francês.
Nós
reclamamos a supressão das leis anti-imigrantes que mergulham
milhares de operários e de jovens na insegurança. Nós exigimos
direitos de cidadania para os trabalhadores estrangeiros e, em
primeiro lugar, a sua elegibilidade nas eleições territoriais.
Consideramos que a integração cidadã dos estrangeiros passa,
contra qualquer diligência "humanitarista" ou
comunitarista, pela integração dos trabalhadores estrangeiros na
luta pela reconquista da soberania nacional, a exemplo do que fez o
PCF durante a guerra de 1939-45, com a criação dos
Franco-atiradores e Resistentes da Mão-de-obra Imigrada. E estamos
orgulhosos de contar, entre os nossos, com Léon Landini e Arsène
Tchakarian, duas figuras de proa deste combate patriótico e
internacionalista. É, pois, fundamental para nós a questão da
relação com os trabalhadores imigrados que, em França, têm de
sofrer simultaneamente uma terrível política repressiva do Estado,
o racismo cultivado por Le Pen, mas maciçamente rejeitado pela
juventude: 80% das pessoas, pelo menos, não querem de momento
"fachos" no poder, nem discriminações de qualquer tipo.
RH:
Que lugar ocupa (no programa do PRCF) a solidariedade com os povos do
Sul em luta contra o imperialismo? E com a Palestina?
GG:
O PRCF é solidário com todos os povos em luta. E, certamente, com o
povo palestiniano, que está em plena "frente" de luta
contra o imperialismo, representado pelo exército colonial do
criminoso de guerra Sharon e dos seus comparsas trabalhistas. O
imperialismo estadunidense e o governo de Israel esforçam-se por
dividir a resistência palestiniana, apoiando-se naquela parte da
burguesia, cuja principal preocupação é fazer a paz a qualquer
preço, para desenvolver "negócios". A paz a qualquer
preço quereria dizer um pseudo-Estado, um bantustão israelense, sem
continuidade territorial, sem desenvolvimento auto-centrado, sem
acesso à água, etc.
Maquiavelicamente,
o poder israelense e os seus mentores transatlânticos pretendiam que
a autoridade palestiniana consagrasse o essencial das suas forças a
perseguir os resistentes, de maneira a substituir a Intifada por uma
guerra fratricida e a evitar o "trabalho sujo" em Tsahal. O
povo palestiniano e a sua heróica juventude frustraram já
tentativas desta natureza. A insurreição necessita também de
iniciativas populares, coordenadas mundialmente, a fim de evitar o
isolamento, a divisão, a derrota, para pôr em cheque estas
manobras, de modo que o povo palestiniano possa finalmente gozar de
uma paz justa, respeitosa da soberania popular e da integridade
territorial.
É
bem evidente que nós saudamos os soldados e oficiais do exército
israelense que se recusam a servir nos territórios ocupados, como
vários camaradas simpatizantes do PRCF e veteranos do PCF recusaram
combater no exército francês de ocupação da Argélia.
"TEMOS
DE NOS DEFENDER COM A CUBA SOCIALISTA"
RH:
E Cuba, cujo povo e governo revolucionários são em França,
actualmente, alvo de uma campanha de agressão?
GG:
Cuba socialista está no âmago da identidade do PRCF, como
recentemente reafirmou a delegação do PRCF a José Balaguer, membro
da Comissão Política do Partido Comunista Cubano, delegação
composta por Daniel Antonini, presidente da Comissão Internacional,
Odile Hage, membro da Comissão Política, e eu próprio. Como repete
o deputado Georges Hage, membro da nossa presidência colegial e
decano da Assembleia Nacional Francesa, "da mesma maneira que,
no século XIX, qualquer progressista tinha duas pátrias, a sua e a
França, qualquer progressista moderno tem duas pátrias, a sua e
Cuba socialista". A nossa solidariedade não é somente motivada
pela simpatia com o povo cubano, tão caloroso, vivo, inventivo,
corajoso, criativo, diverso. Assenta também nos factos: nesta nossa
época de remundialização do capitalismo, de avanço do
totalitarismo neoliberal, de ofensiva da contra-revolução e do seu
cavalo de Tróia oportunista, de ameaça imperialista à paz mundial
e à soberania de todos os países, Cuba socialista encarna, pelo
contrário, a resistência do socialismo, a recusa do mundo unipolar
e monocolor, a defesa comunista dos serviços públicos de saúde, da
educação para todos, do primado do pleno emprego e da investigação
científica, da igualdade dos sexos, da solidariedade
anti-imperialista, da recusa do oportunismo gorbatchoviano, da
procura de novas vias para prosseguir no caminho do socialismo, da
defesa intransigente da soberania nacional, indissociável do
socialismo.
Nós
admiramos a maneira como o regime revolucionário cubano e o seu
inventivo chefe de fila histórico sabem, simultaneamente, agir –
inclusivamente quando recua, se há necessidade disso, e sem
mascarar, nessa altura, a verdade ao povo – e manter o rumo do
comunismo. Nós admiramos a maneira como a própria perspectiva
comunista – a cada um segundo as suas necessidades, no domínio da
saúde, por exemplo, - continua presente em Cuba, mesmo nos momentos
em que é imprescindível fazer concessões controladas à "economia
de mercado". Nós admiramos a maneira como Cuba exporta os seus
valores progressistas, enviando milhares de professores e de médicos
para os países pobres. Nós admiramos a maneira como Fidel, aquando
presidente do Movimento dos Não-Alinhados, denunciou, então, a
orientação exterminista do capitalismo mundial. Eu digo por que
razão a divisa " socialismo ou morte " comporta, segundo
nós, uma dupla ressonância, heróica e anti-exterminista,
significando: o capitalismo é a morte, o socialismo é a vida.
RH:
Como reagem vocês aos ataques incrivelmente violentos e caluniosos
de que Cuba é alvo no nosso país?
GG:
Nós reagimos com indignação à campanha, indiretamente validada
pela direcção do PCF-PGE e levada a cabo pela organização
anticomunista RSF (Reporters sans Frontières), com o tema: "Cuba
sí, Castro no!" Para nós, a solidariedade com o povo cubano é
indissociável da defesa do seu regime revolucionário: toda a gente
sabe muito bem, aliás, que, se o socialismo caísse em Havana, a
ilha seria imediatamente recolonizada pelos Estados Unidos. E nós
vamos mais longe, pois somos partidários da verdadeira ditadura do
proletariado, a que Marx, ao analisar a Comuna de Paris, e, depois,
Lenin, ao estudar o movimento dos sovietes, definiam como "democracia
para as largas massas, ditadura para a minoria exploradora e
contra-revolucionária". Tal como durante a Revolução burguesa
francesa, atacada pela reação feudal em 1793, quando Saint-Just
declarava "nada de liberdade para os inimigos da liberdade",
Cuba tem o dever de defender o seu povo contra indivíduos que não
escondem sequer as suas ligações em dinheiro com a potência
inimiga, que ameaça, cerca e bloqueia o seu país há vários
decênios. Se há um problema de "direitos do Homem"
relativamente a Cuba e aos cubanos, é o de Guantânamo, onde
prisioneiros de guerra dos Estados Unidos estão detidos, fora das
garantias dadas pela Convenção de Genebra. E, também, o dos Cinco
de Miami, presos de maneira cruel e arbitrária, quando agiam numa
acção preventiva pacífica contra as manobras terroristas da máfia
de Miami, protegida por Bush III, o governador da Flórida.
É
por isso que nós não dizemos que é preciso defender Cuba
socialista, mas que temos de NOS defender COM a Cuba socialista. Os
Estados Unidos aguardam uma ocasião para invadir a ilha,
aproveitando eventuais distúrbios, provocados artificialmente pelos
seus homens de mão pinguemente remunerados. Se os Estados Unidos
reconquistassem Havana – coisa ainda mais difícil que Bagdad,
porque a direção cubana é comunista, porque o povo cubano tem
armas e sabe o que tem a fazer em caso de invasão, porque Castro é
mil vezes mais popular em Cuba do que o tirânico Saddam Hussein era
no Iraque, porque Cuba goza de um largo capital de simpatia na
América Latina e no mundo –, então uma muralha decisiva ruiria.
Ficaria aberto o caminho para uma caça às bruxas mundial e sem
limites contra todos os países subversivos, contra todas as
organizações não-alinhadas com os Estados Unidos. A léria
"antitotalitária" dos inimigos de Cuba socialista não tem
qualquer cabimento: Cuba socialista é um bastião da democracia na
marcha da remundialização totalitária do Rei Lucro! Assim, nós,
ao defender Cuba, estamos a defender os nossos serviços públicos,
as nossas conquistas sociais, o nosso direito à saúde e à
educação, o nosso direito à soberania, à paz, a uma alternativa
progressista no nosso país!
Nestas
condições, apelamos às organizações progressistas francesas que
se solidarizem a 100% com o povo cubano E a sua revolução.
Propomo-nos igualmente organizar em Paris – centro da campanha
anticastrista, levada a cabo pela RSF – uma grande concentração,
para a qual serão convidados progressistas de toda a Europa. Um
clima novo desenvolve-se na Europa, sobretudo depois da derrota de
Aznar, para que se reatem os contatos com a ilha de Che. Ao
"desdolarizar" a sua economia, Cuba cria os meios de voltar
à ofensiva. Chegou a hora de passar da defensiva ao contra-ataque,
em defesa de Cuba e da auto-defesa mundial dos povos, ao lado de
Cuba.
A
atitude quanto a esta questão é a pedra de toque do
internacionalismo proletário de segunda geração a que aspiramos,
pois Cuba cristaliza ao mesmo tempo a continuidade comunista
internacional, a passagem de testemunho das revoluções de ontem às
de amanhã e a reconstrução da frente anti-imperialista mundial, na
sua dimensão anticapitalista, de luta contra a remundialização
capitalista!
RH:
Uma revolução popular magnífica está também em curso na
Venezuela, a revolução bolivariana. Qual é a posição do PRCF
quanto a isso?
GG:
Será preciso dizer que o PRCF olha com imensa simpatia a revolução
bolivariana na Venezuela? Por várias vezes, o regime popular soube
desmontar as tentativas contra-revolucionárias forjadas por
Washington. Qualquer pessoa vê, contudo, que o mais difícil está
por fazer e que, à medida que o movimento bolivariano aprofunda as
medidas sociais e anti-imperialistas, mais ameaçadora terá perante
si a reação patronal e a 5ª coluna dos Estados Unidos.
Toda
a gente se lembra do 11 de Setembro chileno, quando o exército e a
CIA esmagaram sob as suas botas uma classe operária chilena
desarmada. Não duvidamos de que o presidente Hugo Chavez, senhor da
experiência adquirida, tanto na forma como no estilo generoso e
inovador que são seus, faça o necessário, chegado o momento, para
que a verdadeira democracia, a do povo, vença finalmente o fascismo
de aparência democrática made in Washington.
COLÔMBIA
RH:
E quanto ao povo colombiano, cuja luta pela emancipação social e
nacional é hoje "criminalizada"?
GG:
O povo e os comunistas colombianos merecem a nossa total
solidariedade, tanto mais que os "livres" Estados Unidos e
a "democrática" União Europeia puseram as FARC na lista
das "organizações terroristas". No entanto, são o
governo colombiano e os seus esquadrões da morte que melhor
mereceriam esse nome. A sabotagem das negociações do governo
colombiano, um governo traidor, que acaba de entregar aos Estados
Unidos o exemplar patriota Simon Trinidad é que impede a libertação
da franco-colombiana Bitancourt e não a atitude aberta das FARC. O
que nós vemos é que a luta de libertação nacional na Colômbia,
como na Venezuela, comporta intrinsecamente uma dimensão social,
socialista mesmo. Será demasiado audacioso dizer que, quanto mais a
remundialização capitalista e a recolonização imperialista do Sul
e do Leste coincidirem, mais convergirão a luta anti-imperialista e
o combate pelo socialismo, o que alargará as possibilidades de ligar
o Movimento Comunista à frente anti-imperialista mundial?
Relativamente
às FARC, o nosso papel deve ser lutar em França e na Europa pela
sua total descriminalização, pois a sua criminalização equivale a
criminalizar o direito dos povos a lutar pela sua independência
política e econômica. Quanto ao tráfico de droga, os imperialistas
estadunidenses, que tudo fizeram para abater o poder popular no
Afeganistão com a ajuda de grupos ultra-reacionários e mafiosos,
que se entregavam ao narcotráfico, estão mal colocados para falar
disso. Como o tráfico de armas, o tráfico de drogas é vital para o
sistema capitalista (e pouco interessam os jovens que esse tráfico
exterminista destrói), que se alicerça na morte e na loucura. De
forma mais geral, é preciso ligar a luta anti-imperialista à
construção de laços de solidariedade sólidos, aqui mesmo, em
França, entre trabalhadores franceses e imigrados, vindos dos países
do Sul. A nossa América também está em Paris!
RH:
Voltando à França, quais as grandes linhas das reivindicações
políticas e sociais do PRCF para uma verdadeira transformação
social?
GG:
Temos de partir da ideia, que só é válida para França, de que
nenhuma solução de fundo para os agudos problemas sociais do nosso
país – desemprego, desigualdades, recuos sociais impressionantes,
baixa do poder de compra popular, desmantelamento dos serviços
sociais, desagregação dos laços sociais, insegurança social
generalizada – poderá ser encontrada fora de uma transformação
revolucionária, socialista, da sociedade. Houve um tempo em que o
reformismo podia, em determinadas condições, contribuir para uma
melhoria da condição dos assalariados. Nas condições de crise
crónica do capitalismo remundializado, de contra-revolução
política, de contra-ofensiva imperialista, de neoliberalismo, de
fascização da democracia burguesa, o reformismo só pode servir de
acompanhamento puro e simples das contra-reformas. A
social-democracia, pelo menos na Europa, mostra cada vez mais a sua
natureza de cão de guarda "social" dos recuos de
civilização, próprios do capitalismo. Por detrás da sua fachada
modernista, está na ordem do dia a barbárie mais sofisticada, como
foi largamente demonstrado no colóquio de Serpa (Portugal), nos
discursos de Miguel Urbano Rodrigues (Portugal), de John Catalinotto
(Estados Unidos) e outros camaradas.
Mais
que nunca, a nossa época é a de contradição extrema entre a
socialização objectiva da produção, que a "mundialização"
e a produção intensas exprimem de maneira capitalista e deformada,
e a privatização / concentração exacerbada da propriedade dos
meios de produção e de poder, quaisquer que sejam as formas dessa
apropriação privada. A "superação do capitalismo é
impossível, digam o que disserem os neo-reformistas, sem a
socialização dos meios de produção, sem a conquista do poder
político pela classe dos produtores assalariados em aliança com os
outros trabalhadores, sem a destruição do aparelho repressivo
burguês. Isto resulta da experiência destes últimos anos e não de
"dogmas" marxistas.
Num
ensaio intitulado "O Estado e a Contra-Revolução", tentei
demonstrar, que mutatis mutantis, a contra-revolução tinha
desenvolvido em sentido inverso – confirmando, deste modo, a
contrario – as leis da revolução socialista, estudadas por Lenin
em O Estado e a Revolução. Os contra-revolucionários, também
eles, passaram por uma fase de acumulação de forças e de reformas
preparatórias, no próprio interior do sistema socialista. Também
eles, tiveram, por objectivo, de imediato, romper, no seu ponto
fraco, a cadeia de relações internacionais que constituÍam o campo
socialista (Tratado de Varsóvia, depois, a própria União
Soviética), quebrar o Estado dos Sovietes, inclusive, por fim, dois
golpes de Estado sucessivos, o de Ieltsine, nos finais de Agosto de
1991 e, depois, o bombardeamento do Soviete da Rússia em Outubro de
1993. O objectivo final fora definido por Ieltsine, quando ainda
membro do PCUS(!), no seu livro "extremista" em que a ideia
central era a " propriedade privada ". Em suma, os
contra-revolucionários como Ieltsine e os seus "pontas-de-lança",
os neo-termidorianos do grupo de Gorbatchov, praticaram uma política
de contra-reformas, constantemente subordinadas ao objectivo final
contra-revolucionário: conquista do poder político, destruição do
poder político soviético (PCUS e Soviete, Forças Armadas
Soviéticas), privatização das grandes empresas e da terra, criação
de um novo aparelho de Estado.
Naturalmente,
este esquema não é "puro", já que a restauração de um
poder reaccionário não pode ser o simétrico estrito da instauração
de um poder revolucionário. O final da nossa luta actual é, de
todos os modos, o socialismo, como o final da remundialização
capitalista seria a erradicação de tudo que lembre o socialismo, de
perto ou de longe: Estado, organizações ou militantes.
No
caso do socialismo, a estratégia da unidade da esquerda com o PS de
Maastricht falhou, ainda que o PCF actual, para lá da roupagem e da
"conversa", não tenha nada mais a propor que uma reedição
dessa alternância, sem uma verdadeira aposta social. Primado do
movimento popular e da luta de classes, articulação das lutas
sociais e dos combates eleitorais (sem excluir boicotes em certas
ocasiões, nomeadamente eleições para o pseudo-"parlamento"
europeu) sob o primado das primeiras, convergência popular
maioritária, por iniciativa da classe operária, contra o grande
capital de Maastricht, saída da União Europeia e enfrentamento de
classe entre o movimento popular e a oligarquia capitalista, tudo
isto desembocando na questão decisiva: a do poder político e
económico, isto é, a revolução propriamente dita.
INCITAR
À RUPTURA COM MAASTRICHT
RH:
Enquanto conceito e prática, continua a revolução, em França, na
ordem do dia?
GG:
É certo que a actual relação de forças não põe diretamente –
e é o menos que se pode dizer – a revolução na ordem do dia.
Mas, objetivamente, ela é a alternativa e torna-se necessário,
permanentemente, com formas vivas e apropriadas, acusar o grande
capital, incitar à ruptura com a Europa de Maastricht e avançar com
a necessidade do socialismo. De resto, se o enfrentamento latente de
classes, em França, apesar da euro-esquerda conciliadora, entre o
mundo do trabalho e o grande capital, desembocar, um dia, na união
de todos os explorados – " todos juntos " é a palavra de
ordem mais popular nas manifestações francesas, desde Dezembro de
1995 –, se esse enfrentamento de classes salutar for dinamizado
pela vitória do "não" à Constituição Europeia,
situações de crise política e de recomposição política e
sindical poderão rapidamente vir ao de cima e precipitar a
clarificação da situação política nacional, dominada ainda hoje
pelas ilusões da "alternância esquerda / direita". O PS
de Maastricht, dividido entre as suas referências simbólicas de
esquerda e a sua adesão ao euro-liberalismo, pode cindir-se.
Uma
questão decisiva é a reconstrução de um verdadeiro instrumento
político comunista em ligação com as lutas. Nós nada excluímos,
inclusivamente que as condições emerjam um dia com um governo
popular de reconquista social e nacional, que se inspire nos
princípios do Conselho Nacional da Resistência, rompendo
radicalmente com a tutela de Maastricht, tirando a França da NATO,
encetando uma política econômica e social baseada na
reindustrialização planificada do país, na reconstituição e
alargamento do sector público, no aprofundamento da democracia
directa e representativa, na nacionalização democrática dos
sectores-chave da economia, na cooperação internacional, numa
política plenamente independente em relação aos Estados Unidos,
etc.
Dentro
deste espírito, enquanto o PCF não adoptou nenhum programa desde
1986, o PRCF dotou-se de um programa comunista de luta e de um
Manifesto para o Renascimento Comunista, que expõem a sua política
e as suas propostas. Muito evidentemente, é preciso que este
programa de reconquista democrática, nacional e social, se traduza
em propostas imediatas, susceptíveis de serem adotadas pelo
movimento popular. O PRCF está plenamente consciente das suas
limitações atuais, mas nem por isso deixa de ter a responsabilidade
de fazer ouvir nas lutas uma palavra comunista clara. Por isso, nós
viramo-nos, prioritariamente, para os movimentos reivindicativos nas
empresas, nos bairros populares e universidades, e as nossas
propostas programáticas devem ser concebidas como um instrumento,
que os trabalhadores moldarão para criar laços de solidariedade
entre os sectores em luta. Tal é necessário porque os
estados-maiores políticos e sindicais não têm já plataforma
política ou sindical, mesmo pouco global, indispensável à unidade
dos movimentos sociais.
De
imediato, nós pomos à frente a necessária ruptura da França com o
pacto de estabilidade monetária, a necessária renacionalização a
100% das empresas privatizadas pelos sucessivos governos de direita e
de "esquerda", a nacionalização-requisição das empresas
que despeçam ou se deslocalizem depois de terem recebido fundos
públicos em nome do emprego (!), a criação de um plano nacional de
reindustrialização do país, a revogação da totalidade das
medidas euro-liberais tomadas desde Mitterrand a Chirac, a
implementação de uma verdadeira semana de 35 horas, pagas como 39 a
todos, a transformação de todos os empregos precários em empregos
estáveis, o aumento sensível dos pequenos e médios salários, a
taxação dos lucros, do capital e da fortuna, a regularização da
situação dos operários imigrados, ditos "sem-papéis",
etc.
Contrariamente
aos mutantes responsáveis do PCF que opõem o "social" ao
"societário", pretendendo que "nem tudo é política",
nós pensamos que se impõe articular estes dois aspectos da
transformação social. Já dissemos mais atrás, ao criticar o "novo
pensamento político" de Gorbatchov, que não há razão para
opor os "valores universais" aos "interesses de
classe" proletários. A luta, por exemplo, para impedir os
monopólios capitalistas dos medicamentos de desvirtuar as
investigações do genoma humano, tem um carácter simultaneamente
universal e anticapitalista. Portanto, esta luta deve unir os
trabalhadores e os que precisam de medicamentos sob o princípio
comunista da saúde pública.
A
ECOLOGIA FAZ PARTE DO MARXISMO
RH:
E passa-se o mesmo relativamente aos grandes problemas ecológicos
com que estamos hoje confrontados?
GG:
A humanidade chegou hoje a uma fase do seu desenvolvimento histórico
em que, depois de ter estado totalmente submetida à natureza
exterior – o que se traduz ideologicamente pelo ancestral domínio
das religiões sobre a natureza –, depois de ter pretendido dominar
a natureza na imagem prometeica da revolução industrial –
Descartes fixou como objectivo para a humanidade futura tornar-se
"senhora e possuidora da natureza" – precisa, sob pena de
morte, produzir e reproduzir as condições naturais da produção. A
manutenção e a reconquista de um ambiente viável serão, amanhã,
não uma questão secundária de produção, mas uma tarefa central
(é o que nos diz, por exemplo, sob uma forma mítica, a ideia da
ficção científica da terraformação de Marte). Portanto, dizer
que a produção deve ser ecológica não significa apenas que deve
poluir menos, mas que, a prazo, tem de mudar de finalidade: visar,
não o lucro privado, mas a satisfação das necessidades humanas e,
para isso, privilegiar política, científica e tecnologicamente a
(re-)produção social das condições naturais de produção. Isto
não significa um retrocesso, uma idealização reacionária da
natureza pré-humana, mas uma aceleração da revolução
tecnológica, liberta das amarras do capital.
Mais
que nunca, a investigação científica, sacrificada ou fortemente
instrumentalizada pelo capital, é vital para o futuro da humanidade
– como, aliás, Cuba bem compreendeu. Ora, dialeticamente, para que
o Homem possa responsabilizar-se, racionalmente, pela natureza
exterior, ele tem de vencer a natureza quando esta domina o próprio
Homem social, sob a forma incrivelmente selvagem do capitalismo
neoliberal. Prometeu deverá aliar-se a Espartaco para se encarregar
da "Gea". A ecologia não é, pois, exterior ao comunismo,
é-lhe consubstancial, por muito pouco que integremos, na "análise
concreta da situação concreta", a tomada de consciência
exacta da significação histórica do comunismo na história das
relações entre o Homem e a natureza, enquanto essas mesmas relações
forem mediatizadas pelas relações – políticas! – do Homem com
o outro Homem. O materialismo histórico explica como o utensílio é
o mediador histórico desta relação dupla, assim como a apropriação
colectiva do utensílio pelo Homem, hoje mais fácil que nunca,
graças às tecnologias de informação e comunicação (TIC).
RH:
Deve-se abordar aqui, também, a questão tão importante da
igualdade entre os sexos?
GG:
De certo, essa questão da igualdade entre os sexos está tipicamente
na interface do social e do societário, pois a diferença sexual tem
um papel estruturante na formação da subjetividade humana, como
demonstraram não só Freud, mas o grande psicólogo marxista Henri
Wallon. Perder de vista o aspecto diretamente social do problema
seria irresponsável. As mulheres, principalmente, e não só as das
classes trabalhadoras e dos países de Leste, são atacadas
brutalmente pela contra-revolução. Uma diretiva, por exemplo, da
União Europeia, imediatamente transposta para o direito francês por
Jospin, restabeleceu, há anos, o trabalho noturno das operárias.
Ideologicamente,
as piores ideologias patriarcais, as religiões nas suas formas mais
regressivas, reflorescem à sombra da contra-revolução ideológica,
de Bush a Ben Laden. Porquê, então, desligar, como no feminismo
burguês, a luta pela igualdade do combate geral pela emancipação
social? Como dissociar a luta das mulheres da luta ideológica, numa
concepção racional e crítica do mundo?
E,
inversamente, como orientar o combate anticapitalista e, mesmo, a
construção do socialismo futuro na perspectiva do comunismo,
concebido como superação geral das alienações sociais, sem
afrontar as tradições patriarcais no seio do movimento operário?
Tradições que se traduzem, por vezes, no movimento operário, por
uma religiosidade profunda que teve consequências gerais terríveis
quando o partido ou os seus líderes assumiram a figura de Pai!
Engels e, depois, Clara Zetkin deram ênfase, com toda a razão, à
solidariedade profunda do combate de classe e de emancipação social
e ideológica do sexo feminino.
RH:
Que balanço se pode fazer das experiências do comunismo que
realmente existiram no século XX?
GG:
Relativamente ao passado do movimento do comunismo, os fundadores do
PRCF consideram que temos de assumi-lo globalmente. Assumir não
significa, de modo algum, aceitar tudo de forma acrítica, mas é,
situando-nos resolutamente na continuidade do comunismo dos séculos
XIX e XX, especialmente na linha de Outubro e da III Internacional,
que nós poderemos herdar do comunismo como comunistas, isto é,
praticando o que Lenin chamava a "assimilação crítica da
experiência". Como dizia o filósofo comunista Georges
Politzer, "o espírito crítico, a independência intelectual
não consistem em ceder à reação, mas, sim, em não lhe ceder".
O requisito indispensável a qualquer crítica comunista do comunismo
é defender o nosso legado comum contra o revisionismo e o
negacionismo históricos. O objectivo dessa atitude é apagar a
memória e criminalizar o passado para, simultaneamente, fechar o
futuro das revoluções e impedir que o futuro socialista beneficie
da crítica construtiva do passado. É, também para poder conhecer,
pensar, criticar, retificar que temos de assumir a história, e,
principalmente "manter o passo dado", como disse Arthur
Rimbaud.
De
um ponto de vista de classe, não é possível avaliar o balanço
histórico da primeira experiência socialista da história, a que se
abriu em Outubro, sem fazer o balanço da contra-revolução. Ora,
quaisquer que sejam as críticas retrospectivas que possamos dirigir
ao socialismo passado, o balanço atual da sua destruição é,
objetivamente, equivalente a um "tsunami histórico-social".
Sem a URSS, sem o campo socialista, o mundo está nas mãos da
hegemonia ilimitada do imperialismo, entregue à sua natureza
desmesuradamente predadora. A relação mundial das forças entre
trabalho e capital, entre forças de progresso e de reacção, foi
brutalmente desequilibrada com a anexação da RDA – perdão, a
"reunificação"! – e com o desmantelamento
antidemocrático da URSS. Recordemos que, menos de um ano antes, 76%
dos soviéticos tinham votado a manutenção da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas. Quando dizemos que Ieltsine é um traidor ao
povo do seu país, não o fazemos com base na cólera, mas nos
factos.
As
contradições interimperialistas, contidas com a simples existência
da URSS, voltaram à sua violência anterior a Outubro e é, antes de
mais, neste quadro, que deve ser compreendida a criação da Europa
de Maastricht. As conquistas do socialismo, com tudo o que
significavam como ponto de apoio para os trabalhadores de todo o
mundo – direito à habitação, ao pleno emprego, princípio da
economia planificada, agricultura colectiva, direito de todos aos
cuidados de saúde, à educação, desenvolvimento cultural e
científico, políticas para a infância, apoio às lutas dos países
do Sul, vitória histórica do Exército Vermelho sobre o nazismo em
Estalinegrado, etc – foram demolidos. Com o desaparecimento deste
outro mundo REAL, por imperfeito que se queira, mas diferente desta
selva planetária que se chama capitalismo, a consciência de que um
" outro mundo é possível " recuou perigosamente. A luta
de classes avança mais um passo, mas a iniciativa da classe
dominante esforça-se por retomar todas as conquistas sociais
concedidas desde 1917 e, até, no que à França se refere, algumas
conquistas que datam de 1789, como a soberania nacional.
É
grave, pois, a responsabilidade daqueles que, cedendo à ideologia
dominante, qualificaram o colapso dos regimes socialistas de "
transformações democráticas a Leste ", desorientando as
massas populares. Não é a contra-revolução, sozinha, que produz a
atual desorientação planetária do campo progressista. É o seu
disfarce em " revolução democrática ". A última palavra
neste jogo de máscaras é a maneira como os meios de comunicação
ocidentais apresentam a vitória do ultraliberal Ioutchenko,
pinguemente subvencionado com dinheiro dos Estados Unidos e
"promovido" pela União Europeia, como uma " revolução
laranja ", quando o intuito deste movimento, justamente
combatido pelos mineiros do Don, é anexar a Ucrânia à União
Europeia, subjugar o movimento operário ucraniano e fechar o cerco
imperialista à Rússia.
É
igualmente grave a responsabilidade daqueles que falam de "fracasso"
do socialismo e acusam inconsideradamente o pretenso "modelo"
leninista, como se a derrota sofrida pelos partidos comunistas do
Leste não tivesse senão causas internas e fosse independente da
luta de classes mundial e dos seus efeitos internos nos países
socialistas, com o desenvolvimento da corrente liquidacionista,
encarnada por Gorbatchov. De maneira deformada – pois os defensores
burocratizados e muito disciplinados do socialismo nunca chamaram as
massas soviéticas a defender a URSS –, a luta aguda entre
"renovadores" capitalistas e defensores do socialismo
refletiu, no interior da URSS e do PCUS o enfrentamento secular entre
capitalismo e socialismo.
RH:
Os representantes da ideologia dominante, no exterior, não foram ao
ponto de criminalizar o comunismo?
GG:
De facto. Em vários escritos, eu apelei a que a análise
revolucionária da contra-revolução substituísse a criminalização
contra-revolucionária das revoluções, que é hoje maciçamente
ensinada nas escolas do "mundo livre". Para compreendermos,
como revolucionários, os factores desta implosão induzida, é
preciso, em meu entender, evitar uma leitura unilateral do processo
contra-revolucionário, que é um processo sobre determinado e
plurifatorial. Assim, como se pode iludir a enorme pressão
imperialista que a URSS, ou a RDA, por exemplo, tiveram de sofrer
durante decênios, não falando já das consequências diferidas
sobre várias gerações da guerra de exterminação levada a cabo
por Hitler contra a parte ocidental da URSS? A esgotante corrida aos
armamentos imposta à URSS – cada etapa desta corrida foi iniciada
pelos Estados Unidos –, a chantagem da exterminação nuclear, a
segunda guerra fria (terceira corrida aos armamentos) iniciada por
Carter e, sobretudo, por Reagan, as avassaladoras e incontornáveis
despesas com armamentos que a URSS foi obrigada a consentir para
garantir a sua segurança, tudo isso constituiu um rol de
contingências deformantes no desenvolvimento socialista do país. E
não só no plano quantitativo, pois esses recursos eram desviados da
construção de uma vida livre e feliz, mas também no plano
qualitativo, dado que o florescimento do socialismo em comunismo –
a orientação para o enfraquecimento do aparelho de Estado, por
exemplo, – era sucessivamente adiado pela pressão ideológica,
política, militar e económica do imperialismo.
Durante
os anos de Reagan, em que a tensão Leste-Ocidente foi levada à
incandescência, como resposta, aliás, aos avanços revolucionários
no mundo, essa pressão externa ajudou enormemente a corrente
liquidacionista gorbatchoviana a abrir o caminho do poder, em nome da
aspiração geral dos soviéticos à paz por qualquer preço. Ora,
essa corrente, longe de modernizar o socialismo, tudo fez para o
desarmar unilateralmente, neutralizá-lo ideologicamente, paralisar o
PCUS e as massas operárias, de maneira a escancarar as portas às
forças contra-revolucionárias, pilotadas pelo Ocidente.
Por
sua vez, este triunfo do oportunismo no PCUS não teria sido possível
sem, por um lado, a vitória do oportunismo em muitos grandes
partidos comunistas ocidentais (Itália, França, Espanha...), sem a
lenta burocratização prévia dos regimes socialistas, sem o seu
abandono efetivo da perspectiva comunista, sem o fosso crescente
entre o aparelho de direção e as massas comunistas e operárias.
Não
há necessidade de aderir ao trotskismo para estabelecer uma ligação
entre esta burocratização e a situação de recuperação com que
se viu confrontada a primeira experiência histórica do socialismo.
Lenin explicava, em 1917, que seria fácil começar a revolução no
Oriente, onde as contradições eram explosivas, mas difícil
construir lá o socialismo, dado que a grande indústria estava no
Ocidente. Em contrapartida, seria mais difícil, explicava ele,
começar a revolução no Ocidente, onde o imperialismo atenuava as
contradições sociais das metrópoles capitalistas, utilizando o
sobrelucro colonial, se bem que fosse mais fácil, em princípio,
edificar lá o socialismo, dado o desenvolvimento superior das forças
produtivas e da cultura. Ora, em 70 anos, embora o socialismo tenha
recuperado uma larga parte do atraso inicial, sobretudo até aos anos
de 1960, ele não se estendeu aos países capitalistas ocidentais e o
esmagamento da revolução alemã, na década de 1920-30, pesou muito
nesta situação. No essencial, a classe operária do Ocidente
continuou sob a alçada da social-democracia e onde apareceram
grandes partidos comunistas de massas, como em França, Itália, etc,
esses partidos, por vezes, descomunizaram-se bastante, na década de
1970, com o eurocomunismo.
Em
suma, a distorção imperialista da contradição capital / trabalho
permitiu ao capitalismo dividir permanentemente o proletariado
mundial e instalou o socialismo, durante um longo tempo, numa
situação de graves constrangimentos deformadores. De modo que o
debate "causas internas ou causas externas" da
contra-revolução está mal posto: os constrangimentos externos
agiram, durante um longo período, no interior e os desvios internos
tornaram o país mais permeável às agressões externas,
principalmente no plano ideológico. Uma verdadeira guerra mundial
ideológica foi lançada contra a URSS na década de 1970,
apoiando-se, por exemplo, nos livros de Soljenitsyne. "O
externo" e "o interno" estão ligados entre si, como
no famoso anel de Moebius, tão caro a Hegel.
NÃO
AO "COMUNISMO LOCAL"
RH:
Não estamos aqui a retomar o debate sobre a viabilidade da
construção do socialismo num único país?
GG:
Claro que sim. Tudo isto foi dito por Lenin, antes de Trotsky.
Contudo, nunca chegou à conclusão falsamente revolucionária e, na
realidade, derrotista de que era impossível fazer-se a construção
do socialismo num só país. Lenin compreendia que o confinamento do
socialismo às fronteiras da Rússia tornava possível, não só uma
agressão militar, a qualquer momento, contra os Sovietes, mas uma
degenerescência interna do poder pela burocratização do partido e
do aparelho de Estado. Foi Marx, aliás, e não Trotsky, o primeiro
que, numa nota de A Ideologia Alemã, assinalou que o comunismo
"local" não poderia manter-se, embora pudesse existir
durante um certo tempo, em caso de "universalização das
trocas". Não se universalizando ele mesmo, o "comunismo
local" não socializaria senão a penúria e, com a concorrência
subterrânea que implica sempre escassez, o "comunismo local"
reproduziria infalivelmente "die selbe Scheise", isto é, a
mesma "merda capitalista, nas próprias palavras de Marx.
Lenin,
porém, não baixou os braços: apontar os obstáculos, no campo
técnico ou no domínio político, é criar os meios para superá-los.
E Lenin explica claramente, nos seus últimos textos, que a Rússia
dispunha dos meios para construir o socialismo, se identificasse e
combatesse os factores de deformação inerentes ao "socialismo
num só país". Lenin, por exemplo, procurou "emagrecer"
o aparelho administrativo do Estado, desenvolver medidas propriamente
comunistas, incrementar a industrialização do país à custa não
do campesinato, mas do aparelho de Estado. Contrariamente a Trotsky,
que queria ter mão nos sindicatos, Lenin concitou os sindicatos a
defenderem o Estado operário, resistindo ao Estado operário. Lenin
criou a Inspeção Operária e Camponesa (rabkrin) para vigiar o
aparelho de Estado.
No
que se refere ao partido, ele impulsionou o desenvolvimento das
direções colectivas e a proletarização dos quadros. A nível
internacional, deu a maior atenção ao desenvolvimento da
Internacional Comunista e da Frente Anti-Imperialista. Relativamente
à Federação Soviética, combateu qualquer ideia de dominação
russa e entrou em conflito agudo com Estaline e Ordjonikidze,
conhecidos por "esbirros da Grande-Rússia", dada a extrema
brutalidade com que tinham feito a integração da Geórgia na URSS.
Quanto à política económica, Lenin não tinha nada de dogmático e
sabe-se que, após o comunismo, ele propôs a NEP e, chamando os bois
pelo nome, considerou esta etapa de "capitalismo de Estado"
– hoje dir-se-ia de "socialismo de mercado" – como um
recuo imposto pelas circunstâncias.
RH:
Isso revela subtileza táctica na implementação da sua estratégia
de marcha para o comunismo, não é?
GG:
Lenin deu provas de uma extraordinária subtileza táctica, sem
perder o rumo do comunismo, inclusivamente, ao visar a todo o momento
o enfraquecimento do aparelho de Estado, o alargamento máximo da
democracia popular e isto nas piores circunstâncias históricas.
Como já disse, essa era a linha constantemente lembrada em O Estado
e a Revolução, das "Teses de Abril": Lenin nunca opôs
socialismo a comunismo, ditadura do proletariado a enfraquecimento do
Estado. Ele sempre teve presente no espírito a frase de Marx de que
"a ditadura do proletariado é apenas uma etapa histórica para
a dissolução de todas as classes e para a sociedade sem classes",
o que não o levou de modo nenhum a baixar a guarda contra os
inimigos da revolução, sendo, para ele, a ampliação da democracia
socialista e o armamento do povo ("milícia popular") o
melhor antídoto contra o inimigo. Evidentemente, o enfraquecimento
do Estado, última etapa da ditadura do proletariado, não tem nada
em comum com o desmantelamento neoliberal dos serviços públicos,
organizado em paralelo com o reforço da polícia e do exército
profissional.
Consequentemente,
Lenin – gravemente debilitado pela doença, pôs as suas últimas
forças neste combate, sem ser verdadeiramente escutado – propôs
antídotos políticos para o risco, claramente diagnosticado por ele
desde os anos de 1920, de degenerescência do jovem Estado soviético,
ameaçado de "asiatismo". Foi neste quadro que se opôs, no
seu famoso "testamento", a José Estaline, a quem acusava
de "brutalidade" e gosto pelo poder. E a conclusão dessa
carta era, pura e simplesmente – para desgosto dos que pretendem
apontar a Lenin os erros cometidos pelo seu sucessor – afastar
Estaline do posto de secretário geral.
RH:
O menos que se pode dizer é que Estaline não teve em conta esses
avisos...
GG:
De facto. Com Estaline, o enfraquecimento do aparelho de Estado, de
certo transitoriamente impossível em virtude da ascensão do
fascismo, da guerra e, depois, da guerra fria, saiu decididamente da
perspectiva. Na época de Brejnev, já nem se falava disso e, pelo
contrário, o aparelho de Estado, submetido cada vez mais ao aparelho
policial, controlou as massas e o próprio partido, quando o que
Lenin queria era o inverso. Em plena guerra, a Internacional
Comunista foi dissolvida por iniciativa do partido russo – e jamais
restaurada a seguir –, com as graves consequências ulteriores de
divisão do movimento internacional. Quanto à necessária
coletivização da agricultura, ela nem passou pela "cooperação"
que implicava, em primeiro lugar, ajuda econômica à coletivização
e ao voluntariado (como propunha Lenin), mas fez-se pelos métodos
brutais e contraproducentes que se conhecem.
Enquanto,
no tempo de Lenin, o Partido Bolchevique realizava intensos debates
internos e linhas opostas podiam afrontar-se nos congressos, sendo
possível votar em orientações diferentes – coisa bem diferente
do direito às tendências permanentes e organizadas –, sem que por
isso a disciplina militante fosse menos sólida uma vez a decisão
tomada, o monolitismo, de fachada, como se viu depois da morte de
Estaline, era a regra no partido estalinizado e a eliminação
policial dos opositores reais tornou-se norma, em total contradição
com o que acontecia na época leninista. E tudo isto se complica pelo
facto de, como atestam os arquivos soviéticos, certos opositores
estarem, pura e simplesmente, a pactuar com o inimigo. Que a paranóia
política tenha às vezes razão, isso não a impede de ser uma
paranóia, tal como o reconhecimento objectivo de uma traição real
não significa que se dê direito ao delírio político da
perseguição. Após a guerra, o Partido Soviético tardou oito anos
a fazer um congresso, quando, entre Fevereiro e Outubro de 1917, em
plena efervescência revolucionária, as assembleias democráticas do
Partido Bolchevique se multiplicavam.
Como
se vê, as condições objectivas não são tudo: o marxismo, aliás,
não serviria para nada se não permitisse orientar a ESCOLHA
política neste ou naquele sentido. Uma via leninista, não
estalinista, era pensável em meados da década de 1920. O possível
existe na história. A necessidade dialéctica não é uma
necessidade mecânica e determina as alternativas concretas e as
condições de escolha, não o conteúdo concreto das políticas, que
são da responsabilidade dos partidos e direções políticas. Se as
forças produtivas determinam a história em última instância, é a
luta de classes que decide concretamente as escolhas históricas,
nesta base objectiva. Quanto a estas questões, a discussão
continua, aliás, aberta no seio do PRCF.
RH:
Como se situa o PRCF relativamente ao que se chama a
"destalinização"?
GG:
O PRCF não enfileira no consenso "anti-estalinista" que
está na moda. Por um lado, Estaline teve o mérito, contra Trotsky e
as suas teses, realmente, mencheviques, de entregar-se de corpo e
alma à construção do "socialismo num único país". Os
seus desvios de tipo centralista, autoritário e dogmático custaram
caro aos comunistas, muitos dos quais injustamente eliminados.
Todavia, esses desvios foram durante muito tempo compatíveis com o
desenvolvimento da URSS que, para construir a sua indústria, sair do
subdesenvolvimento, resistir ao cerco capitalista, organizar a sua
produção de guerra, liquidar o desemprego, ganhar a guerra contra
Hitler e, depois, reconstruir-se, tinha objectivamente necessidade de
uma direcção fortemente centralizada. O período estalinista não
foram apenas as purgas, mas também a industrialização, a
modernização do país, a criação de uma base técnica,
científica, militar e cultural de nível mundial. E foi, sobretudo,
a vitória histórica da URSS sobre o fascismo, inseparável do nome
de Estalinegrado. Foi, também, o alargamento do campo socialista,
após a guerra.
No
Ocidente, a consolidação do socialismo, quando o capitalismo se
afundava na crise de 1929 e o fascismo se espalhava por toda a
Europa, foi uma formidável esperança que catalisava as lutas
populares. Nesse sentido, a amálgama actual "estalinismo =
fascismo" é odiosa e perigosa: reabilita o fascismo,
criminalizando o socialismo; liberta os fascistas, apontando a porta
do cárcere aos militantes da classe operária.
De
forma contraditória, a herança de Estaline foi difícil de gerir
para os comunistas do período pós-estalinista. Como, após um tal
mestre (maestro), reaprender a gerir democraticamente as contradições
no seio do partido, no seio do povo e no seio do movimento comunista
internacional? A "destalinização", intentada por
Kruchtchov, operou-se sob formas perfeitamente "estalinistas".
O seguidismo, o monolitismo, a disciplina antes do debate (!) são o
pior legado desses anos e contribuíram grandemente para a
liquidação, sem oposição, dos partidos do Leste. Alguns deles
foram ao ponto de aceitar a dissolução do partido... por
"disciplina partidária"! Unanimemente, recusemos
continuar! À boa maneira religiosa, queimou-se o que se tinha
adorado. O anti-estalinismo, mais do que contestar e retificar o
estalinismo, inverteu-o.
E,
sobretudo, a "destalinização" deitou fora a criança com
a água do banho. Primeiro, fez um julgamento simplista e maniqueísta
da obra do próprio Estaline, cultivando o negacionismo,
desbaptizando, por exemplo, a cidade heróica de Estalinegrado.
Depois, longe de propor uma análise crítica materialista,
dialéctica e leninista do período de Estaline, adoptou muito
largamente as teses propriamente revisionistas e direitistas. A
"destalinização" foi, na realidade, sinônimo de
"dessalinização", de edulcoração do socialismo.
Cultivaram-se
ilusões sobre o papel positivo do lucro quantificável, empresa a
empresa. Cultivou-se a ilusão da passagem puramente pacífica e
parlamentar ao socialismo. Adoptou-se uma falsa concepção da
coexistência pacífica, colocando em primeiro plano as teses
internacionais que negavam o antagonismo de princípio entre
socialismo e capitalismo. O travão posto por Brejnev gelou a
situação, parando, na verdade, o debate sobre o passado na URSS,
agravando a herança burocrática, sem retificar a errada orientação
econômica, posta em prática por Kruchtchov. Em suma, a igual
distância do "estalinismo" e do "anti-estalinismo",
há que fazer uma leitura crítica deste período, caracterizado ao
mesmo tempo por sombras trágicas e grandes luzes.
IUGUSLÁVIA
RH:
Que pensar das outras experiências de socialismo? Já evocámos
Cuba, que continua de pé. E a Jugoslávia?
GG:
Em Cuba, a herança propriamente comunista de Guevara está presente,
inclusivamente quando é necessário fazer um recuo para o socialismo
"con el mercado".
Quanto
às outras experiências do século, elas foram marcadas, em
diferente grau, pela unilateralidade.
A
Jugoslávia de Tito era certamente um paraíso em comparação com o
que fez a restauração capitalista integral, consecutiva ao
desmantelamento e ocupação da República Federal pela NATO. Mas "a
autogestão" titista não era, seguramente, uma solução: na
prática, a ausência de plano fez crescer os desequilíbrios entre
as repúblicas federadas e subsistiram o desemprego em massa e a
emigração. Além disso, durante todo um período, a Jugoslávia
esteve no campo anti-soviético, a pretexto do não-alinhamento,
antes de acompanhar a evolução para a esquerda do Movimento dos
Não-Alinhados, nos finais da década de 1970.
A
experiência jugoslava mostra, pelo menos, que a autogestão tem de
ser enquadrada por uma planificação central democrática, sem o que
as empresas socialistas comportam-se umas em relação às outras,
como empresas privadas e é o mercado, na realidade, em última
análise, o mercado mundial, que tem o papel de "regulador",
aumentando todas as desigualdades.
CHINA
RH:
Voltemo-nos agora para a China, a de Mao e, depois, a das "reformas",
da qual depende cada vez mais uma grande parte do futuro do mundo.
GG:
A nova China de Mao, depois de ter dado um enorme contributo ao povo
chinês, derrapou para o esquerdismo, para o aventureirismo, para o
anti-sovietismo, ao ponto de entrar em namoro com o imperialismo dos
Estados Unidos, na época de Chu En Lai, e fazer guerra ao povo
vietnamita.
Quanto
a mim – mas o debate continua aberto no seio do PRCF –, o
"socialismo de mercado" atual não parece ser uma solução
viável a longo prazo. Se ainda os dirigentes chineses apresentassem
o seu modelo actual como uma fase de recuo táctico, como fez Lenin
com a NEP, seria um mal menor. Mas será possível apresentar como um
avanço a transformação das zonas costeiras em zonas de ausência
de direitos sociais e sindicais, a pauperização de milhões de
camponeses expulsos das suas terras, o desemprego de dezenas de
milhões de assalariados, o envio para a morte de centenas de
mineiros chineses nas minas encerradas por falta de segurança, a
transformação da China em bomba de sucção mundial das
deslocalizações que matam o proletariado industrial e desestabiliza
as bases sociais da luta de classes no Ocidente, a privatização do
sector estatal e os despedimentos daí decorrentes, o desenvolvimento
de uma classe capitalista exploradora e milionária e a sua admissão
no seio do Partido Comunista Chinês(!), o desaparecimento de
qualquer alusão ao imperialismo, nos textos oficiais do PCC, o facto
de, ao fim e ao cabo, a China "comunista" se ter oposto
menos que a França capitalista à invasão do Iraque?
Não
digo isto para dar lições aos comunistas chineses, pois sei que os
tempos são duros. Mas, pelo menos, o marxismo contemporâneo não
"teoriza" este "socialismo (?) de mercado – em Cuba,
nada de confusões, fala-se de "socialismo com o mercado",
o que aponta a contradição em vez de a escamotear – como o futuro
do socialismo, enquanto o desenvolvimento neoliberal da China for, no
presente, essencial ao equilíbrio da economia capitalista mundial,
como bem sabe a Cruella Rice que, nos seus discursos, ataca
frontalmente Cuba, a Coreia popular e o Zimbabwe, poupando
hipocritamente a China.
Seria
catastrófico para a relação mundial de forças que a República
Popular da China acabasse por cair no lado capitalista. Uma corrida
feroz se seguiria, para a partilha deste país que, à falta de um
desenvolvimento socialista, conhece um certo desenvolvimento
nacional, o qual, a prazo, não pode deixar de desagradar ao
imperialismo dominante, pouco disposto a dar lugar à China e à
Rússia, mesmo que se tornem capitalistas. Ora, se a classe
capitalista se desenvolver na China, como é incontestavelmente o
caso, e se, por outro lado, as contradições de classe e a luta de
classes são negadas pelo Partido Comunista Chinês, mais cedo ou
mais tarde haverá tentativas para que este país mude
definitivamente de cor. Aliás, deu-se já uma tentativa deste gênero
em Tiananmen, quando elementos pro-ocidentais exploraram as
reivindicações estudantis, legítimas, sem dúvida, para edificar
uma "deusa da liberdade", indubitavelmente de inspiração
estadunidense.
Quando
sabemos os sacrifícios que os comunistas e as massas populares
chinesas tiveram de consentir em prol da República Popular, não
podemos senão estar muito atentos à situação deste país cheio de
futuro, onde se joga, em grande parte, o relançamento do socialismo
internacional ou a aceleração do processo contra-revolucionário
mundial.
CONTRA
O MARXISMO ANTI-LENINISTA
RH:
Que lugar reservam vocês ao marxismo? Em que medida a referência a
Marx é central para o PRCF? E a referência a Lenin?
GG:
Eu alerto para a atual tentativa de separar Marx de Lenin, avançando
com um "bom" Marx, crítico, fino, recuperável por finos
universitários que de tudo se servem para alimentar o moinho
ideológico do reformismo, contra um "malvado" Lenin,
violento, dogmático e pouco inteligente. Não caiamos na armadilha
deste "marxismo – antileninismo" grosseiro, que visa
castrar o marxismo e separá-lo da classe operária militante,
fazendo dele uma piedosa "utopia". O marxismo não é nem
uma utopia – com tudo o que essa palavra comporta, por definição,
de impotência aceite –, nem um chão "realismo político".
O seu papel é estudar o mais objectivamente possível as
contradições da realidade natural e social e apreender, nesta base,
como os homens, especialmente os trabalhadores, podem superar essas
contradições pelo trabalho, pela ciência, pela luta – e, em
certos casos, pela criação artística –, em vez de serem
cilindrados por elas.
A
moda ideológica antileninista, mesmo na extrema-esquerda, é a
rejeição da vanguarda e da teoria, o culto do espontaneísmo. A
pretexto de modernidade, trata-se de um regresso a Bernstein, o
fundador do revisionismo, que, a princípios do século, declarava: "
o movimento é tudo, o objectivo final não é nada ". Em plena
continuidade de Marx – "em todas as sociedades divididas em
classes, o pensamento dominante é o da classe dominante", "a
classe materialmente dominante é também a classe espiritualmente
dominante" –, Lenin estabeleceu que o movimento espontâneo
das massas só podia conduzir ao reformismo ou, quando o
descontentamento é muito, ao aventureirismo de esquerda. "Sem
teoria revolucionária, não há movimento revolucionário". E
acrescenta: "sem teoria da contra-revolução, não há
resistência eficaz à contra-revolução".
É
precisamente para conquistar a sua independência ideológica,
cultural e política, relativamente às classes dominantes, que as
classes exploradas necessitam de uma teoria científica e de um
partido político de vanguarda que lhes permitam pensar por si
mesmas. De vanguarda, significa aqui: capaz de resistir à ideologia
dominante, ir contra a corrente, afrontar, por vezes, a ideologia
espontânea das massas que, por detrás de uma aparência "informal",
está, na verdade, largamente eivada de ideologia burguesa, pelo
menos em períodos contra-revolucionários.
Contrariamente
ao que nos diz o empirismo, o pragmatismo e outras velharias
remoduladas do arsenal ideológico burguês, temos de ter conceitos
para poder pensar, uma filosofia para nos libertarmos tanto das
concepções religiosas como do materialismo burguês vulgar, uma
teoria política para escapar ao pensamento dominante. E é,
paradoxalmente, para aceder à própria consciência e tornar-se um
agente histórico plenamente capaz, que a classe dominada precisa de
um partido seu, que aja a partir da análise mais objectiva possível
da realidade social.
A
"desideologização" da sociedade socialista, promovida por
Gorbatchov em nome do "pensamento novo", isto é, em nome
de uma... ideologia, desarmou os trabalhadores soviéticos, que são
hoje menos livres que nunca, despojados como estão de qualquer
pensamento autónomo sobre o curso da história. Em França, a
travagem progressiva da formação marxista no seio do PCF – que
fazer, aliás, de uma formação marxista, quando os estatutos do PCF
já não contêm nenhum quadro teórico preciso, desde 1994? – teve
igualmente consequências funestas no desmoronamento organizacional
e, mesmo, eleitoral deste partido, que contava com 700 mil aderentes
em 1977.
A
necessidade de uma teoria revolucionária está comprovada, hoje
ainda mais, quando a classe burguesa dispõe de um aparelho mediático
de poder inaudito, campanhas ideológicas são orquestradas
mundialmente e secundadas por todos os meios de comunicação, uma
língua única é imposta, de facto, ao mundo, com as consequências
ideológicas que se adivinham, a escola e a universidade difundem
maciçamente o anti-sovietismo e o anticomunismo, nenhuma atividade
humana escapa à publicidade que, através desta ou daquela marca,
gaba incessantemente, na realidade, o todo-poderoso "mercado",
grande número de organizações da esquerda oficial – estou a
falar da Europa – e mesmo do "comunismo refundado"
transmitem os ideais burgueses e tudo se faz para separar e opor os
trabalhadores, inclusivamente com a atomização dos contratos
colectivos de trabalho.
RH:
Significa isso que, face à pressão da ideologia dominante, os
revolucionários devam reapropriar-se da teoria marxista?
GG:
O nosso primeiro dever é reapropriarmo-nos da teoria. Antes de
proclamarmos imbecilmente que " Marx, Engels, Lenin estão
ultrapassados ", temos de lê-los e descobri-los. A sua imensa
obra é terrivelmente mal conhecida e mal compreendida, não apenas
pelos "antimarxistas", mas por um bom número de
"marxistas" superficiais. Aperceber-nos-emos, então, que
os princípios e a metodologia da sua obra não estão ultrapassados.
Aliás, como é possível estar "ultrapassada" uma teoria
materialista que põe em primeiro plano, na própria teoria, o
critério da prática? Como é possível estar "ultrapassada"
uma metodologia dialéctica que põe em primeiro plano o papel motor
da contradição e da negação e cuja essência é "crítica e
revolucionária"?
Descobrir-se-ão,
igualmente, jazidas incríveis de "modernidade" nestes
grandes pensadores que, indubitavelmente, como todos os cientistas,
mostraram algumas incertezas ou enganaram-se neste ou naquele ponto –
a investigação científica tem este preço –, mas sempre
procuraram descobrir as linhas estratégicas do desenvolvimento
social e intelectual, a ponto de anteverem, de forma extraordinária,
as necessidades teóricas do nosso século XXI, que tão mal começou.
Por isso, o PRCF considera a formação uma prioridade absoluta e, em
primeiro lugar, a da juventude comunista.
É
evidente que o "marxismo" não consiste numa doutrina
fixada para todo o sempre. Temos de fazer com o marxismo-leninismo o
que Lenin fez com o marxismo. "Marxista ortodoxo",
"marxista sem mais", nas suas próprias palavras, este
poderoso pensador de envergadura mundial que foi Lenin fez progredir
consideravelmente o marxismo numa série de pontos: análise do
imperialismo e do capitalismo monopolista, teoria do socialismo,
teoria do Estado, teoria do partido e do centralismo democrático,
renovação da epistemologia marxista e muito mais ainda. Lenin, como
Engels, acompanhava a investigação científica de ponta da sua
época, nomeadamente a Física.
RH:
Em torno de que grandes eixos problemáticos se poderá reconstruir
um pensamento marxista da modernidade?
GG:
Retomando as linhas fundamentais dos princípios marxistas, hoje
temos de voltar a trabalhar nas condições do mundo actual e do
futuro possível.
A
análise do imperialismo: contradições internas na tendência para
a "mundialização unipolar", emergência de contradições
interimperialistas e carácter exterminista e absolutamente
regressivo do sistema...
A
economia política do capitalismo: que é hoje o trabalho produtivo?
E o parasitismo econômico? Como se estão transformando a classe
operária e o proletariado? Em que medida são nacionais ou mundiais?
O neoliberalismo é, realmente, um novo "liberalismo" ou
uma forma particularmente perversa do velho capitalismo monopolista
de Estado, em fase de continentalização?
A
filosofia marxista: na véspera de empolgantes revoluções
científicas que ameaçam alterar por completo as relações
tradicionais entre ciência e filosofia, como relançar o
materialismo dialéctico a partir do movimento das ciências?
A
teoria política: que relação há entre o mundial, o continental e
o local? Que articulação fazer entre socialismo e comunismo? Entre
lutas democráticas e lutas revolucionárias? Que formas novas
encontrar para o poder do povo, para a vanguarda e sua relação
dialéctica com o movimento espontâneo de massas? Que relações
estabelecer entre a luta colectiva pelo comunismo e a luta pela
desalienação dos indivíduos e das relações entre indivíduos,
hoje maciçamente dominados pelo fetichismo do mercado?
O
essencial é não deixar cair nenhuma ponta da meada: princípios
fundamentais do marxismo e do leninismo, materialismo, dialéctica,
ponto de vista de classe a orientar a luta por uma sociedade sem
classes realmente universal; empenhamento fraternal e caloroso, mas
também reflectido e crítico, nas lutas de massas e na experiência
operária e popular, resistência ideológica ao quotidiano, com
atenção particular às manipulações mediáticas, cuja essência
bélica, anti-social, antinacional e contra-revolucionária é cada
vez mais manifesta.
RH:
Quais as publicações teóricas e políticas difundidas pelo PRCF?
GG:
A Iniciative Communiste publica mensalmente uma "Página de
Teoria", com temas já abordados, como o exterminismo, a
ditadura do proletariado, a luta de classes, a dialéctica da
natureza, a construção europeia, a "ciber-revolução",
etc. E a revista teórica EtincelleS já abordou aprofundadamente
diferentes assuntos: forma e matéria nos diferentes campos da
prática e da teoria, atualidade dos conceitos marxistas em economia
(nomeadamente, trabalho produtivo e neoliberalismo), dialéctica da
natureza, a questão do "terrorismo", etc.
Ao
teorizarmos, o nosso intuito não é "teorizar": a
elaboração teórica é parte integrante da luta ideológica e é
diretamente uma dimensão da prática militante. Retomando os
conceitos de Gramsci – que riqueza, contraditória, a da nossa
herança, de Brecht a Luxemburg, de Fidel a Ho Chi Min, de Aragon a
Léontiev, de Lukacs a Dimitrov! – de hegemonia cultural e de bloco
histórico, queremos contribuir para a crítica radical do novo bloco
histórico, constituído nos anos de Reagan, em torno da noção de
"antitotalitarismo", com o duplo desígnio de banalizar o
nazismo e diabolizar a URSS. Constituído a seguir à "incómoda"
batalha de Estalinegrado, onde a URSS, dirigida por Estaline – é
um facto! –, esmagou, com os seus próprios meios, a máquina de
guerra nazi, o bloco histórico do pós-guerra alicerçava-se, pelo
contrário, no antifascismo. O socialismo era, então, mais fácil de
ser combatido pela ideologia dominante, tanto mais que o fascismo
tinha realmente laços com o capitalismo. Foi, de forma simbólica,
esta hegemonia cultural antifascista que Reagan, Thatcher, Mitterrand
e Kohl atacaram frontalmente, quando vieram recolher-se juntos, no
cemitério alemão de Bitburg, em 1984, se bem me recordo, em plena
crise dos euromísseis, a poucos metros dos túmulos de soldados da
Wehrmacht.
Combater
numa frente única a criminalização do comunismo, escrever o "Livro
Negro do Anticomunismo", para contrapor ao fascizante Stéphane
Courtois, que pretende agora obter das instâncias europeias um
"Nuremberg do Comunismo", devia ser, para os comunistas e
outros antifascistas, um ponto de honra ligado, de resto, à
auto-defesa e à sobrevivência, pois, se este gênero de nojeira
vinga, todos os democratas que não tiverem reagido ao anticomunismo
serão apanhados pela reação. "Se não participas no combate,
dizia Brecht, participarás na derrota".
Um
último ponto: peço desculpa por esta resposta demasiado longa e,
contudo, muito incompleta. Como dizia Mme de Sévigné, "faltou-me
o tempo para escrever uma carta mais curta". É que eu sou um
professor do ensino secundário e não um funcionário da política.
Saúdo fraternalmente todos os que me acompanharam até ao fim desta
entrevista, quaisquer que sejam os seus eventuais desacordos, já que
vibram como eu à bela palavra "rebelião". "Liberdade,
igualdade, fraternidade ou morte", como dizia o grande
revolucionário francês Marat, dirigindo-se a todos os povos do
mundo!
Algumas
referências:
Georges
Gastaud, Mondialisation Capitaliste et Projet Communiste, Le Temps
des Cerises , 1997.
Essai
pour la Renaissance Communiste, a encomendar directamente ao autor.
Communisme,
Quel Avenir ?, obra colectiva de debates, Le Temps des Cerises, 2002.
Intervenção
no Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie" ,
Serpa, Portugal, 2004.
Brochuras
do PRCF: "Programme Communiste de Lute", "Manifeste
pour la Renaissance Communiste", "Appel au Mouvement
Communiste Internacional", "Status du PRCF".
Para
receber Initiative Communiste ou EtincelleS (números sobre
"L'héritage Communiste", "Ressourcer la Critique
Marxiste de l'Economie", "80 ème Anniversaire du PCF",
"Dialectique de la Nature") escrever para :
Cercle
Lenin de Culture Populaire
199,
rue Emile Zola
62800
Liévin
França
[*]
Georges Gastaud é filósofo, director político de Initiative
Communiste, publicação mensal do Pôle de Renaissance communiste de
França e director da revista teórica ÉtincelleS. Remy Herrera é
economista, investigador do CNRS.
Tradução
de MJS. .
Fonte: resistir.info.
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