É mudando o mundo que a gente se transforma


Entrevista, concedida a Júlia Magalhães 

Um disjuntiva atormenta, não raro, aqueles que buscam superar o capitalismo, em época de incertezas e após o fracasso do socialismo estatista. Onde concentrar energias, para a construção do “outro mundo possível”? Na mudança pessoal das atitudes, que pode contagiar pelo exemplo? Ou transformando as estruturas que, por multiplicarem a lógica do lucro máximo, produzem permanentemente desigualdade, alienação e depredação da natureza?

Talvez a pergunta (e a angústia despertada por ela) sejam desnecessárias e até contraproducentes, pensa alguém com décadas de ativismo junto aos movimentos sociais. Carlos Alberto Libânio Christo, o “Frei Betto” considera que ambas respostas, se absolutas, podem conduzir a um labirinto. A crença na mudança apenas “a partir das estruturas”, desenhou o fracasso da União Soviética e das experiências que seguiram seu projeto. Mas esquecer as grandes reformas, e focar apenas no indivíduo, produz ilusões como a da igreja católica – de cujos colégios, muito bem intencionados, “continuam saindo políticos corruptos”…

Frei Betto tem uma alternativa a estas duas escolhas apartadas. Ele quer ver as mudanças de atitude pessoal convertidas em esforços pela transformação mais ampla do mundo. Uma como complemento da outra, nunca enquanto oposição. Para demonstrar que é possível, recorre a alguns exemplos.

Que tal uma reforma agrária? O Brasil é, junto com a Argentina, um dos dois países das Américas que nunca rompeu com o latifúndio. Ao permitir que milhões de produtores praticassem a diversidade, tendo acesso à terra, esta transformação não estimularia práticas sustentáveis e orgânicas, opostas às do grande agronegócio?

Se nos desencantamos tanto com a colonização das instituições pelo poder econômico, por que não imaginar uma grande reforma política – profunda o suficiente para proibir os grupos privados de financiar campanhas eleitorais, e “comprar” parlamentares e governantes? Diante de uma mídia que age como partido político, sonega informações aos cidadãos e ataca, na prática, a liberdade de expressão, a saída não seria uma redistribuição das concessões públicas de TV e rádio, e programas de incentivo à produção de conteúdos na blogosfera?

Frei Betto lança, em suma, um desafio. E se a mesma criatividade capaz de produzir atitudes pessoais transformadoras for mobilizada para desenhar políticas públicas de sentido oposto às atuais? E se nossas visões de mundo – que valorizam a igualdade, a colaboração, novas relações entre ser humano e natureza – puderem ser traduzidas, também, em grandes mudanças estruturais?

Ligado à Teologia da Libertação, escritor e assessor de movimentos sociais, Frei Betto já tinha uma longa história de luta política quando se tornou assessor especial do presidente Lula e coordenador de mobilização social do programa Fome Zero, em 2003 e 2004. Preso pelos militares entre 1969 e 1973, recebeu em 1982 o Prêmio Jabuti pelo livro Batismo de Sangue, em que descreve a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura. A entrevista publicada a seguir é o resultado de um diálogo com a jornalista Júlia Magalhães, no âmbito da pesquisa sobre a participação política no Brasil que o instituto Ideafix realizou para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).


Qual é sua percepção sobre a participação política do cidadão brasileiro?

Diria que, no geral, o brasileiro se interessa pouco por política e acaba entrando no engodo dos políticos, que procuram passar o sentimento de nojo pela política. Quem tem nojo da política é governado por quem não tem. Tudo o que os maus políticos querem é que a gente tenha bastante nojo, para que fiquem à vontade nas suas maracutaias.

Contudo, me surpreendeu a mobilização através das redes sociais no 7 de setembro [de 2011]. Até então, só evangélicos, gays e os que são a favor da liberação da maconha ocupavam as ruas. Foi muito positivo ver em várias cidades do Brasil a manifestação contra a corrupção, pela transparência dos votos dos deputados e senadores, pela reforma política, pela reforma agrária, pela auditoria da dívida externa.

Temos infelizmente uma democracia meramente delegativa: vamos às urnas a cada dois anos delegar a nossa representação a um vereador, deputado, presidente, mas temos muito pouco grau de participação. Estamos ainda longe de uma democracia verdadeiramente representativa, principalmente dos setores populares, e mais longe ainda de uma democracia participativa em que sociedade política e sociedade civil dialoguem de igual para igual.

Como o cidadão pode participar de forma mais efetiva?

Haveria dois canais prioritários: primeiro as escolas, que são unidades políticas, mas não têm consciência disso. Elas acabam deixando seus alunos vulneráveis à mídia, principalmente à tevê e à internet, em termos de formação política. O segundo seria a própria mídia, se ela tivesse interesse em formar cidadãos. Mas a mídia tem interesse em formar consumistas, porque é movida pela publicidade. A cidadania tem um espírito crítico, e o espírito crítico é um antídoto ao consumismo. A consciência cidadã da nação brasileira melhoraria muito se o ministério da Educação, os diretores e professores, os donos de escolas tivessem consciência de que a escola deve formar prioritariamente cidadãos, não consumistas e não mão de obra qualificada para o mercado de trabalho.

Você citou questões importantes. Quais os grandes temas que mobilizam a sociedade brasileira, hoje, a seu ver?

Infelizmente os temas que mobilizam a sociedade brasileira não são os que interessariam. Gostaria que a sociedade brasileira se mobilizasse pela reforma agrária, pela reforma política, por reformas de estrutura que o Brasil deseja desde que me entendo por gente. A estrutura fundiária do Brasil nunca foi mexida. Somos, com a Argentina, os dois únicos países das três Américas que nunca passaram por uma reforma agrária. As pessoas se mobilizam pela liberalização da maconha, por fatores evangélicos etc – tudo bem, é um direito delas. Mas infelizmente não se mobilizam por uma reforma política que acabe de fato com a impunidade e a imunidade dos políticos. Não adianta só sairmos nas ruas e gritar “abaixo a corrupção”. Qualquer pressão nesse sentido é positiva, mas insuficiente: a corrupção só vai acabar no momento em que houver mecanismos institucionais capazes de coibir e punir os corruptos e os corruptores. Falta essa consciência na sociedade brasileira.

Existe um discurso bastante presente na atualidade, que é de descrença nas instituições e busca por transformação através dos indivíduos. Qual é sua opinião a respeito?

A Igreja investiu durante séculos nessa utopia de que, mudando as pessoas, mudaríamos o mundo. Basta ver os colégios católicos, dos quais saíram notórios políticos corruptos. O método inverso foi tentado pelo socialismo soviético e não deu certo. Portanto, as estruturas e as pessoas mudam umas às outras.

A questão não é o que vem primeiro, o ovo ou a galinha: são as duas coisas. As pessoas só mudam mudando o mundo. Explico: não adianta querer que seu filho não jogue a caixa de chicletes na rua, se você joga um maço de cigarros, porque a criança é mimetista. Não adianta querer que os políticos não sejam corruptos se eles sabem que não há punição para a corrupção. Então precisamos criar um projeto de sociedade na qual desvios como a corrupção e o nepotismo sejam rigorosamente punidos – e mudar, ao mesmo tempo, os padrões do sentido da vida humana.

Hoje a vida humana está reduzida à busca do prazer, no sentido hedonista da riqueza, do poder, e não das virtudes subjetivas. Isso está levando a uma desumanização que é setorizada pelo crescimento do consumo de drogas. No fundo, o que o drogado está dizendo é: “quero ser feliz e sei que a felicidade não está fora de mim. Mas, como não tenho um sentido de vida que me provoque um ânimo, um entusiasmo, busco na química esse efeito”.

Como é possível mudar isso, você vê um caminho?

Volto a dizer: através da escola e da mídia. Mas, para isso, seria preciso ter um Estado que regulasse a mídia, ignorando essa falácia de que regular mídia é censura. Na verdade, censura é quando um determinado canal de televisão convoca um grupo de formadores de opinião para um debate e determina a exclusão de Frei Betto – porque ele é progressista, de esquerda, solidário a Cuba. Isso é censura, democracia da boca para fora. Na hora de debater o 11 de setembro, a crise econômica, a guerra da Líbia nos grandes veículos de comunicação, você não vê opiniões divergentes.

Um fato recente demonstra bem o que estou dizendo: enquanto os juros subiam, o Banco Central era autônomo. Agora que os juros caem, o Banco Central perde autonomia. Na verdade, a queda dos juros não interessa ao setor financeiro, então eles inventam essa falácia de que é perda de autonomia do Banco Central.

Esse é um discurso sobre liberdade bastante presente. Queria que você falasse mais sobre isso.

Por exemplo, você lê uma coisa no jornal e fica indignada: que liberdade de expressão tem para contestar? É liberdade deles, para eles. A população tem muito pouco canal de manifestação. A democracia existe para uma minoria que tem poder aquisitivo. Que liberdade tem uma faxineira cuja família mora no Nordeste de visitar essa família? Que garantia tem de que o filho dela vai chegar à universidade?

Estamos falando em liberdade para uma minoria, esses 8 milhões de brasileiros que pagam impostos – mas somos quase 200 milhões! Liberdade, hoje, no Brasil, é ir ao mercado escolher sua marca de cerveja. Não se pode escolher entre diferentes modelos de sociedade. Sequer é permissível que democracia e capitalismo não sejam considerados sinônimos.

O consumo é um grande tema, hoje?

Sim, porque estamos cada vez mais reduzidos a um consumismo exacerbado que esgarça as relações humanas, que substitui os valores humanos por objetos. Ou seja: sou, perante você, tanto mais valorizado quanto mais bens eu consumo, ou tanto menos quanto menos bens eu possuo. São as mercadorias que eu porto que me agregam mais ou menos valor social. Isso é um processo de reificação do ser humano, de desumanização brutal. Temos que lutar contra isso.

E de que forma esse apelo ao consumo se reflete na política?

O apelo ao consumo cria condicionamentos, cria consciência. Como os políticos são financiados por grandes empresas, são incapazes de proibir, no Congresso Nacional, que no Brasil uma criança possa ser ator ou atriz de peças publicitárias; ou que a publicidade de alimentos notoriamente nocivos seja veiculada nos meios de comunicação. Os políticos estão com o rabo preso com essas grandes empresas que financiam suas campanhas, e aí o silêncio é conivência.

Qual sua opinião a respeito da discussão sobre o controle social das mídias no Brasil?

A mídia radiofônica e televisiva pertence à União – embora seja gerida como se pertencesse a determinadas famílias. E as concessões, que têm prazo determinado, são renovadas automaticamente. Então é preciso, sim, um grande controle social sobre a mídia.

Para um médico que faz uma safadeza, como o Roger Abdelmassih, que abusava de pacientes mulheres, existe um conselho de medicina que pune. Isso não existe na mídia. Se uma revista arrasa com você, você vai levar anos tentando processá-la, e dificilmente terá recursos para obrigá-la a reconhecer que mentiu a seu respeito. Um jornalista que notoriamente falseia notícias, degrada a imagem de pessoas do bem, dificilmente será punido; não conheço um único caso. Agora, conheço o caso de um veículo que recorrentemente emite uma imagem execrável de pessoas de bem, como a revista Veja.

A criação de um conselho para fazer o controle social das mídias, por exemplo, seria uma forma de participação política da sociedade?

Claro. Deve ser formado por pessoas que sejam independentes dos veículos de comunicação e entendam de formação de opinião, de mídia. E essas pessoas existem. Qual é o sentido de um programa como o Big Brother? A meu ver, é um programa perverso, jamais deixaria um filho, com menos de 16 anos, assistir àquele programa. Ele sequer tem um momento em que se discute um poema do Drummond, da Adélia Prado, nada. É absolutamente permissivo, pornográfico, um programa de animalização do ser humano – e no entanto tem a maior audiência da tevê brasileira.

Como você vê o jovem nesse contexto?

Os jovens acabam convencidos de que essas figuras consumistas de Big Brother etc. são seus ídolos. Alguns são vulneráveis a esse apelo pelo poder, riqueza e beleza; e sofrem muito porque esse apelo é para um em cada 10 mil. Os demais sofrem uma grande frustração, que gera depois depressão e consumo de drogas, porque não conseguem realizar os anseios embutidos na mídia.

E a questão das redes sociais?

As redes são o que há de mais democrático para veicular informação e mobilização, embora também veiculem violência, pedofilia, pornografia. Dois governos foram derrubados graças às redes sociais, o da Tunísia e o do Egito. A internet é um veículo que convoca, mas é muito aleatória, por isso acho que deveria haver um controle, um sistema pelo qual se pudesse evitar convocação de violência, vandalismo.

É o momento das escolas introduzirem a educação para a internet nos seus currículos. Não tem educação para a leitura, saber o que é um clássico? Então, tem que ter educação para a internet, para a televisão, para o olhar. Estamos em uma era imagética, e, no entanto, na escola a educação literária é mais forte que a imagética. É preciso despertar na garotada esse espírito crítico diante da telinha, seja da tevê, seja do computador; senão eles vão sofrer com um fluxo muito grande de informações e deformações, não conseguem estabelecer a síntese cognitiva, e acabam sendo vítimas inconscientes do próprio veículo que utilizam. Ficam sem referências.

O sociólogo polonês Zygmund Bauman diz que segurança sem liberdade é escravidão, e liberdade sem segurança é caos. Você concorda com isso?

Concordo, o problema é que estamos cada vez mais em busca de segurança. Nossa liberdade hoje é muito restrita, as pessoas têm medo da rua, do público, estão cada vez mais engaioladas em prisões de luxo. Estamos abrindo mão de nossa liberdade em nome da segurança – e isso é grave.

Nesse contexto de transformações, quais as mais significativas da sociedade brasileira nos últimos anos?

Em primeiro lugar o governo Lula, porque tirou 30 milhões de pessoas da miséria, acabou com a dívida externa, tornou o país soberano e independente, principalmente frente aos Estados Unidos e ao bloco ocidental. Estabeleceu programas sociais com recursos consideráveis, o que governos anteriores não tinham feito, e o sistema de crédito. O que mudou a face do país e permitiu que o Brasil tenha passado, até agora, pela crise financeira desencadeada a partir de de 2008, foi justamente o fato de o governo Lula ter estabelecido um sistema de crédito e de políticas sociais que veio a aquecer o mercado interno, que é muito robusto no Brasil. Foi o que vi de mais significativo no Brasil nos últimos anos.

E com relação ao exercício da cidadania?

Cresceu a consciência de cidadania, dos diretos do consumidor, dos direitos humanos, mas ainda estamos muito distantes de vencer preconceitos, discriminações. Talvez esses acirramentos – espancamento de homossexuais, crimes previstos na Lei Maria da Penha –, tudo isso seja sintoma de que estamos avançando, porque antes essas coisas aconteciam mas ninguém falava, e agora elas são notícia, passíveis de ação policial. Então creio que vem crescendo, sim, a consciência de que temos direito à cidadania, à pluralidade cultural, à diversidade religiosa, e não devemos fazer do divergente o diferente. Não devemos cair no fundamentalismo de uma postura que quer se impor a outra, mas praticar tolerância.

Em relação ao mercado de trabalho: as pessoas trabalham cada vez mais, às vezes doze, catorze horas. Como isso interfere na construção de uma sociedade?

Interfere na construção das relações familiares, porque os pais não dão atenção suficiente a seus filhos, não é reservado tempo para lazer, para atividades culturais. Até porque os grandes aglomerados urbanos de classe média-baixa não têm acesso a equipamentos sociais que lhes permitam curtir o esporte, a cultura, a arte. Você vai pela periferia são prédios e prédios, casas e casas, casebres e casebres, raramente vê um campo de futebol, um teatro, cinema então nem pensar. Praticamente o lazer do brasileiro é ver telenovela ou ir ao culto, à igreja, onde ele entra em contato com o transcendente, o mágico. Isso tem uma força muito grande no universo popular porque o ajuda a emergir das dificuldades e sofrimentos. Só uma pequena minoria tem acesso a uma ociosidade criativa.

Como vê a relação entre política e religião?

A política é a forma de organizar nossa convivência social e a religião é a forma de imprimir à nossa resistência um sentido transcendente. São coisas que se complementam em nossas vidas, mas nem sempre é fácil estabelecer as distinções para fazer a sadia conexão. Há muito fundamentalismo de um lado e de outro: aqueles que querem fazer da sua religião uma proposta política e aqueles que querem fazer da política uma verdadeira religião, com partidos que têm papas, cardeais, bispos, crenças, dogmas intocáveis.

Que desafios a relação entre política e religião nos coloca, levando em conta a diversidade de religiões e crenças?

O desafio é desenvolver uma cultura de tolerância religiosa – mas estamos longe disso. Algumas confissões religiosas têm tamanho domínio da mídia que inoculam o horror ao espiritismo, às tradições afro-brasileiras, como a mídia americana cria horror ao islamismo. Hoje, uma pessoa que se diz muçulmana é vista como potencialmente terrorista, tanto que, após 2001, cresceu enormemente o número de muçulmanos agredidos com muita violência, nos Estados Unidos. O simples fato de alguém parecer um muçulmano já é fator de suspeita, de preconceito.

O Brasil é um país enorme, com uma diversidade gigantesca. O que seria uma nova política que representasse todos esses grupos e realidades?

Para o Brasil ser um país melhor, o ponto número um é fazer uma reforma agrária. Para além de 100 quilômetros dos grandes centros urbanos, ainda se encontra muita miséria, absoluto abandono de educação e saúde. Só vamos vencer esse contraste e evitar a inchação das cidades, como vem ocorrendo, no dia que houver reforma agrária. Ela é uma exigência de modernização do capitalismo brasileiro – não estou nem falando de socialismo.

Enquanto o Brasil não mexer na sua estrutura social, a desigualdade vai permanecer. Você pode até fazer essas políticas, como o Lula e a Dilma estão fazendo, de atenuar os grandes problemas. Atenuar, não resolver. Por exemplo, se o Bolsa Família acabar hoje, essas famílias que dependem da União vão voltar para a miséria, porque o Bolsa Família não conseguiu realizar aquilo que o Fome Zero se propunha fazer, que era tornar as famílias produtoras da própria renda. O próprio governo que criou o Fome Zero acabou com ele, transformou um programa que era emancipatório em um programa compensatório, como o Bolsa Família. Então você tem melhorias que não são estruturalmente asseguradas.

Você imagina novas formas de fazer política?


Quero uma reforma política que mude a estrutura do país: o financiamento público de campanha, fim do caixa dois, punição severa a quem praticar isso; fim dos lobbies do grande capital, de bancos, indústrias; Ficha Limpa rigorosa – isso seria uma reforma política. Também a proporcionalidade de representação da população de cada estado: é um absurdo um estado como o Amapá eleger o mesmo número de senadores de um estado como São Paulo. É preciso limpar a estrutura política brasileira, tem muito resquício da ditadura. Estabelecer a fidelidade partidária, acabar com o voto secreto – elejo um deputado e não sei como ele votou no processo da deputada corrupta que foi filmada prostituindo-se politicamente. Política tem que ser transparente e é preciso que haja uma lei garantindo isso – o que só vai acontecer com pressão popular.

Existem hoje mecanismos de “transparência” que disponibilizam as contas governamentais, mas a população muitas vezes não sabe nem fazer a leitura daquilo.

E mesmo fazendo a leitura, você jamais desconfiaria que no ministério dos Transportes houve desvio de 628 milhões de reais, porque o que está lá parece tudo certinho, depois é que a investigação mostra que não. É preciso aprofundar o sistema de transparência no país, como também a Comissão de Ética da República, que não pune ninguém, é sempre conivente e leniente com os corruptos.

Que valores caracterizariam esse novo modelo?

Primeiro, você jamais permitir que alguém com ficha suja ou processo na justiça seja candidato. Segundo, que, em sendo candidato, faça como foi aprovado agora na Espanha: seja obrigado a abrir sua contabilidade, seu patrimônio. Terceiro, que todas suas atitudes sejam públicas, nada secreto. Não sou especialista, mas como cidadão creio que é preciso uma reforma política que acabe com a impunidade e a imunidade desses políticos.

Você consegue identificar pessoas que possam refletir esses anseios?

Claro. Fábio Comparato, Dom Paulo Evaristo Arns, Ricardo Kotscho, Washington Novaes, Samuel Pinheiro Guimarães, Raduan Nassar, Chico Buarque, enfim, tem milhares de pessoas honestas, transparentes, corajosas. Uma Adélia Prado, Fernanda Montenegro, gostaria que elas fossem chamadas a opinar numa instância da República. O Brasil está cheio de pessoas íntegras, honestas, acima de qualquer suspeita.

Como você vê a vida e a coabitação das futuras gerações neste pequeno planeta?

A curto prazo, minha visão é pessimista. Acho que a crise financeira vai se agravar, os miseráveis vão invadir cada vez mais o espaço dos ricos, dos que estão bem de vida – porque não há muro, não há polícia, não há lei que detenha o fluxo do mundo do pobre para o mundo do rico. É uma questão de sobrevivência, e quando se trata de sobrevivência a legalidade vem abaixo. Vão crescer os grupos de direita, os governos despóticos, os preconceitos, os fundamentalismos de ambos os lados. Isso tudo vai se agravar daqui para 2020.

Não sei o que vai ser do futuro, mas talvez seja necessário passar por esse inferno para cair a ficha de que precisamos criar um novo modelo de sociedade. Uma sociedade baseada em outros parâmetros, e não no preconceito, na imposição, na guerra, no belicismo, no consumismo. Antigamente um rádio durava uma geração inteira, hoje um aparelho de última geração se torna anacrônico em dois anos, superado. O computador, então, nem se fala.

Estamos reciclando objetos, mas também estamos reciclando pessoas e valores. Hoje as relações pessoais estão sendo mercantilizadas. Isso já ocorria nas relações de trabalho, mas agora se transfere para a vida social. O outro passa a ser encarado como alguém que, de alguma maneira, deve corresponder aos meus interesses, sem que se criem vínculos de alteridade, parceria e solidariedade.


Uma sociedade baseada em outros parâmetros implicaria outro sistema de produção?

Claro, de produção e sobretudo de distribuição, para evitar que a excessiva riqueza seja acumulada nas mãos de poucos. Na minha opinião isso é um acinte, e não um direito. Precisaríamos promover a distribuição de renda, acabar com o direito de herança, pelo menos na proporção atual; no caso de herança acima de determinado patamar, 80% deveriam ir para o Estado, como o governo francês determinou em setembro de 2012 [75%].

Aplicar mais em educação e saúde. As pessoas pagam impostos excessivos, mas não têm um mínimo de direitos sociais, como acontece na Suécia, na Finlândia, na Alemanha – nesses países você paga muito imposto mas está seguro de que, precisando, vai ter retorno. Precisamos de mudanças profundas de institucionalização e de mentalidade.

Fonte: Plataforma Reforma Sistema Político

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