Material de Construção da Dupla Porta dos Hospitais Universitários










Reproduzo matéria do BlogSaúdeComDilma, de grande relevância. Leiam. Reflitam.

Lígia Bahia é categórica: a dupla porta divide os cidadãos em "pagantes" e "não pagantes"
*vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).

A instituição de duas filas nos hospitais universitários públicos expressa uma das mais visíveis anomalias da sociedade brasileira. A inversão do critério do atendimento prioritário aos portadores de problemas de saúde mais graves em favor do acesso facilitado para quem tem maior capacidade de pagamento, desnatura o caráter público dos hospitais universitários. Mais grave ainda: a introdução da lógica do mercado por hospitais públicos, mesmo que apenas em parte de suas instalações, representa um claro desacato ao texto constitucional, segundo o qual saúde e direito de todos e dever do Estado. A relevância do problema exige o exame detalhado de suas causas para que as instituições públicas de saúde possam ser devolvidas ao público. A edição e reedição de atos administrativos e a revelação do fato, especialmente de suas conseqüências são imprescindíveis, mas não bastam. É preciso que o ambiente favorável ao debate propicie uma reflexão aprofundada e corajosa sobre os componentes do material de construção das duplas
portas.
Entre os elementos que originaram as duplas portas de entrada destacam-se, para além do sub-financiamento do SUS, a concepção sobre a existência da divisão da população brasileira para fins de atenção à saúde em ?não pagantes" e pagantes e a noção sobre a legitimidade e virtuosidade da ?venda? de serviços de hospitais públicos. O primeiro elemento decorrente das restrições fiscais às políticas públicas é, indubitavelmente, o grande responsável pela privatização de hospitais públicos. De fato, só recentemente o Ministério da Saúde logrou encontrar uma fórmula de financiamento mais favorável aos hospitais universitários.
Os dirigentes dos HU's que optaram por abrir uma porta a entrada de clientes de planos privados de saúde enfrentam problemas de endividamento decorrentes da necessidade de contratação de pessoal. O segundo e o terceiro componente da matéria prima da dupla porta, embora guardem relação com o primeiro, apresentam uma natureza distinta. São menos tangíveis, mas acionam concepções e práticas profundamente incrustadas entre nós. Trata-se de uma derivação da velha e sempre renovada fórmula de oferecer políticas sociais distintas para pobres.
Se os hospitais, inclusive alguns públicos, são vistos locci de venda de serviços e existem compradores que
pagam valores diferenciados pelo mesmo procedimento, nada mais lógico do que vender para quem paga mais.
Seria ingênuo, portanto supor que as bases de construção de um arranjo institucional tão complexo foram erigidas sem apoio político, técnico e jurídico-legal. .Algumas dessas duplas portas foram, contraditoriamente, autorizadas pelo próprio Ministério Público que também as denuncia. Existe um projeto de lei na Câmara Federal que, se aprovado, lhes conferiria um estatuto legal. E, sobretudo, persiste entre profissionais de saúde e entidades sindicais, inclusive alguns extremamente bem intencionados, a certeza de que as duplas portas de entrada são benéficas, dadas as condições de penúria da maioria dos hospitais públicos. Nesse sentido, o desconhecimento sobre o conflito de idéias e as perspectivas diferenciadas sobre a organização do sistema de saúde brasileiro também cimenta a estratificação.
Se, pelo contrário, as múltiplas dimensões e interesses envolvidos com a estruturação das duplas portas de entrada forem considerados poderemos responder, ainda que parcialmente e progressivamente, ao desafio implícito que a privatização de hospitais públicos nos apresenta. Para onde ruma o sistema de saúde brasileiro? Ou em outros termos, um sistema universal de saúde de qualidade é viável? Os que defendem a plena implementação do SUS costumam formular essas mesmas perguntas com um sentido inverso. Um sistema de saúde orientado pelo mercado seria capaz de responder as necessidades de saúde da população brasileira?
A realidade apresenta-se multifacetada. Por um lado os méritos decorrentes dos programas universais no Brasil são evidentes, basta mencionar o reconhecimento internacional do Programa de DST/AIDS. Por outro lado, a extensão dos atendimentos diferenciados segundo um gradiente de preferências, no qual os clientes são diferenciados por status sócio-econômico e não por suas condições clínicas sinaliza uma direção contrária a da universalização.
Esses questionamentos, adquirem matizes específicos no que diz respeito as duplas de porta de entrada dos hospitais universitários.
Essas instituições e seus profissionais estão vinculados ao MEC e a governos estaduais. A preservação da excelência desses hospitais está constantemente em xeque. A desvalorização destes profissionais pelas instituições públicas e a oferta de melhores postos de trabalho pelas privadas os afeta particularmente. As tentativas de preservar esses profissionais, não conseguiram contornar, a não ser em casos exemplares, a permissão para a dupla, tripla jornada de trabalho. Nesses termos, a dupla porta de entrada pode ser vista como uma expressão arquitetônica da impossibilidade de dedicação exclusiva em face aos baixos valores de remuneração do setor público e delegação ao corpo dirigente dos hospitais para resolver o problema.
Ao aceitar, para si a tarefa de buscar uma saída para resolver isoladamente as mazelas do sistema de saúde, os dirigentes dos hospitais universitários e secretários de saúde reafirmaram suas dificuldades de entendimento sobre o papel dessas instituições na rede de serviços do SUS.
Os hospitais universitários são as unidades de referência do SUS, sendo inadmissível que os critérios de entrada para qualquer de seus pacientes não sejam os estabelecidos pelo município, região, unidade federada ou mesmo pela União.
O funcionamento de duplas portas antepõe-se radicalmente a essa função dos HU´s. Pela porta privada são atendidos casos leves, moderados, diagnósticos que não compatíveis com o perfil de referência desses hospitais. Se batessem na porta SUS, esses pacientes seriam encaminhados para o atendimento em unidades de menor complexidade. Assim, os efeitos da dupla porta não se resumem apenas às diferenças absurdas no tempo de espera nas filas.
Os rígidos critérios de triagem dos pacientes da porta SUS não são observados para a admissão dos clientes de planos de saúde.
Depreende-se facilmente que a lógica dos hospitais privados que vendem serviços e admitem pacientes segundo critérios próprios colide com a inserção dos HU´s na rede SUS, ainda que seus defensores argumentem que a maior parte dos leitos está sendo utilizada pelos pacientes do SUS.
O corolário da tese pro dupla-porta é que a venda de serviços para os "pagantes" reverte em prol dos não "pagantes". Na prática, o que ocorre é uma "venda" por valores pelo menos de duas a três vezes menores do que os cobrados por estabelecimentos privados do mesmo porte, dotados dos mesmos equipamentos. Os preços pagos aos hospitais
filantrópicos lucrativos de ponta são muito superiores àqueles cobrados nas duplas portas. Mas, para os defensores da dupla porta, ainda que os HU´s sejam categorizados, como de terceira linha, pelas empresas de planos privados de saúde "vale a pena". os valores pagos por um ?não pagante do SUS? são em média três vezes menores do que os preços das internações remuneradas pelas empresas de planos de saúde. Esse raciocínio contábil de fechamento diário de caixa, que não é o adotado pelos hospitais privados, ignora o fato de que esses valores não contemplem o investimento em infra-estrutura, equipamentos e pessoal (que são os principais itens de custo dos hospitais).
Considerando a urgência de encerrar as duplas filas as propostas do Ministério da Saúde estão pautadas por uma duplo esforço. A negociação com o MEC, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde e Conselhos de Saúde e a abertura de portas para o debate voltado ao encontro de alternativas para a devida valorização dos HU´s na rede SUS. Essa guinada na rota de primazia do público não nos garantirá a conquista imediata de um SUS universal, mas nos aproxima do rumo e permite-nos vislumbrá-lo.

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